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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXIII)

 

A Pedra (São Paulo: Lote 42, 2017)


Alguns livros aparecem no mundo sem que se possa lhes oferecer classificação adequada. É o caso do romance do pernambucano Yuri Pires. Narrativa doida (e doída) parece ser a primeira impressão, ou melhor, expressão a ser usada pelo leitor depois que chega à última página, sem saber exatamente o que dizer ou sentir, tamanha é a confusão que se estabelece na mistura de frases, parágrafos, capítulos e emoções.

Aos que possuem algum conhecimento na área do fantástico, cabe lembrar Murilo Rubião e José J. Veiga (aquele de A Máquina Extraviada, conto canônico e canoro nas literaturas que forjam o Brasil). Os dois escritores estão presentes no texto de Yuri. Um pouco de cada um, sem se saber onde e em que quantidade. Mas há também um algo a mais, qualidade particular, e que se traduz em originalidade e inventividade. E se define na construção do nonsense, que chega devagar, modificando o realismo inicial, que parece duradouro, mas que vai erodindo lentamente. Surge uma nova gramática textual, e, em certa medida, uma visão apocalíptica. Átropos, a mais cruel das Moiras, sente prazer ao fechar as cortinas do espetáculo.

O primeiro fascínio é a linguagem. Os diálogos, que preservam o coloquialismo regional fornecem musicalidade, miríades de expressões que não são de uso comum mais ao sul do país – obrigando, aqui e ali, uma espiada no dicionário, que é para não perder o espírito da prosa, gosto estranho, mas saboroso.

Depois, os personagens. Quanta gente! A narrativa está centrada em Ambrósio, criado pela mãe e pela avó (como tantos outros). Ele vai aprendendo aos poucos, como se fossem socos no estômago, que a dor é o principal ingrediente da educação sentimental. Ao se apaixonar por Carminda, a prostituta, demora a entender a lição – e, como compete aos ingênuos, conserva a esperança de que existirão dias melhores.

Ao lado de Ambrósio está Felipe, o menino-bomba. Também aparecem em cena o pastor messiânico, o professor com as teorias da conspiração, o homem que é abandonado pela esposa e se torna alcoólatra, o jornalista que não tem partido (apenas interesses financeiros), a mulher que conversa com os livros porque não acredita mais nas palavras das pessoas. Ao longe, como se fossem guardiões do Estado, encontram-se os coronéis políticos, os Cavalcanti, uma dinastia que se perpetua no poder.

E há a pedra, esse monólito que surge sem qualquer explicação no meio da praça e vai contaminando lentamente a população de Lemuri (antigo distrito de Santa Cruz do Riachão). A imagem catastrófica, se, por um lado, lembra o Césio-137 (Goiânia, 1987) e as explosões dos reatores nucleares (Chernobyl, 1986, e Fukushima, 2011), também produz o reflexo especular do rompimento das barragens mineiras (Mariana, 2015, e Brumadinho, 2019). As situações são semelhantes em suas diferenças, centenas de mortos, a perplexidade tomando conta de tudo e reduzindo a vida ao nada.

Das muitas leituras possíveis, pode-se escolher entre a alegoria que antecipa o embotamento político, a fábula da perda da razão, a parábola sobre a religiosidade capenga e a metáfora que une o capitalismo oportunista e a destruição da vida. Por fim, a lição de que somos constituídos de matéria inorgânica, pedra.   


Yuri Pires

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