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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXV)




Passei o fim de tarde de sábado e quase todo o domingo deitado no sofá, relendo Persuasão, um dos seis romances de Jane Austen. Durante a semana me assustei com as manchetes dos jornais virtuais, resolvi diversas questões familiares e econômicas, escolhi um tema para um pequeno ensaio. Enfim, cheguei ao fim de semana cansado de mim mesmo. Precisava de um momento de trégua.

Assim, fui procurar o descanso na história de Anne Elliot, uma mistura de Patinho Feio com Gata Borralheira. Perto de suas duas irmãs (Elizabeth e Mary), tudo o que ela quer é não ser envolvida em conflitos competitivos. A forma com que o narrador vai conduzindo a história parece induzir o leitor a pensar, em um primeiro momento, que Anne (ao aceitar uma vida sem grandes prazeres e voltada ao auxílio de quem dela precise) está destinada ao ingresso em convento ou à canonização – o que vier primeiro. Falsa impressão, evidentemente.

Com determinação, escrúpulo e lentidão (armas pouco eficazes em outras mãos), Anne – metáfora literária da aranha caçadora – vai tecendo a teia, preparando o terreno para enredar as vítimas. Na hora adequada, tudo se resolve como se fosse ocasional – mas não o é, porque há todo um trabalho (consciente ou não) de transformar o que parecia subserviência em triunfo da microfísica.

Mas esse efeito não ocorre por cálculos refinados de enxadrista talentoso (que, em determinado momento, consegue visualizar a situação final com um olhar e o resto da partida é apenas a concretização do plano previamente esboçado). É o contrário. A passividade de Anne é que vai fornecendo a cadência, e, ao mesmo tempo, alterando o pensamento daqueles que estão ao seu redor. Aos poucos todos percebem que a virtude não é algo evidente, cristalino, e que muitas vezes está escondida atrás da timidez.

Uma das cenas que altera a ordem dos acontecimentos ocorre na praia de Lyme. A conduta dos diversos personagens diante do acidente de Louisa Musgrove determina o restante do andamento narrativo. Mas, evidentemente, não é só isso, há muitas outras coisas em cena, com o agravante de não haver humor. E isso é um problema, porque personagens excêntricos permitem uma maior fluência no desenvolvimento textual. Atribui-se parte do sucesso de Orgulho e Preconceito e Emma a algumas trapalhadas ou situações em que os personagens cometem admiráveis lances de insensatez.  

Como é comum nos romances de Jane Austen, tudo gira em torno de casamento(s). A regra geral diz que a(s) protagonista(s) precisa(m) superar as dificuldades e encontrar o(s) futuro(s) marido(s) e, de preferencia, que seja(m) rico(s). Não há felicidade sem dinheiro, parece afirmar quem narra o texto, embora destaque que o amor é condição indispensável (sempre com bastante conforto). Por isso, esses romances estão repletos de descrições de viagens, jantares, bailes, caminhadas, piqueniques, cavalgadas e acidentes. São os encontros sociais que determinam quem vai casar com quem.  

Na última página, há o encanto. E o fio da harmonia, aquele que sugere que foram felizes para sempre. Nada mal para 310 páginas onde quase nada de importante aconteceu.

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P.S: uma das várias adaptações de Persuasão para a televisão foi realizada pela BBC, em 2007. Sally Hawkins e Rupert Penry-Jones nos papéis principais.   

  






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