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domingo, 13 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLX)

 


Fui dormir depois das cinco horas da manhã.  Decidi terminar a releitura de 1984, o clássico distópico de George Orwell. Então, enquanto os olhos devoravam páginas e mais páginas de um livro angustiante (principalmente na parte final), o tempo foi sendo diluído e quando cheguei à última página (completamente atônito com as semelhanças com o mundo contemporâneo) estava amanhecendo.

Resultado: dormi a manhã inteira. E fiquei entediado o resto do dia. Nem mesmo o futebol me salvou do aborrecimento. O Santos jogou ontem à noite e não tenho interesse pelas outras equipes do campeonato da primeira divisão. Trocando em miúdos, a tarde e a noite foram uma interminável inércia dominical.  

Pensei em sair para caminhar, mas consegui controlar a ansiedade. Amanhã terei que resolver duas questões estressantes na rua, então o melhor a fazer foi ficar em casa, escutando música e assistindo vídeos de Big Bang Theory. O patético Sheldon Cooper me diverte. No intervalo entre uma coisa e outra, fiz o que costumo fazer nesses momentos: tomei chá, comi gelatina, fui para a sacada olhar o movimento na avenida, pensei em temas que podem ser desenvolvidos em algum texto.

Também acessei vários blogs (e canais no Youtube) de literatura – na vã esperança de encontrar alguma novidade, mas, infelizmente, quase todos parecem interessados em promover os livros editados por clubes de leitura (muitas reedições ou aquela água de flor de laranjeira que dá enjoo). Nada tenho contra o que está na moda. Ao contrário, o parquinho não deve ter restrições e a diversão está liberada para todos. O importante é ler. Quanto mais leitores, melhor o mundo. Evidentemente, tenho esperança de que o leitor de Agatha Christie ou de H. P. Lovecraft possa – em algum momento – mudar as referências e descobrir que existem outros autores no horizonte.

Antes que alguém me entenda de forma atravessada, informo que não estou defendendo (neste instante) os clássicos. Longe disso. Os livros canônicos são para outro público (ou talvez para o mesmo, mas essa é uma escolha que deve ser feita pelo leitor). Lembro que Mestre José Paulo Paes, nos anos 80, em ensaio exemplar, afirmou que a literatura de entretenimento estava em falta no Brasil. Passou muita água por debaixo da ponte nesses 60 anos. No momento existe outro panorama na literatura brasileira contemporânea. Foram publicados (na virada do século e depois) muitos romances e contos de ficção científica, góticos, fantasia, temas policiais (e similares). Quase todos estão disponíveis em e-book. Então, o problema não é o acesso.  

Voltando ao 1984, que devo ter lido no final da adolescência, o que me assustou foi a atualidade do livro (publicado originalmente em 1949). O leitor não necessita fazer analogias ou tentar decifrar as metáforas. O texto não utiliza esses recursos. As descrições são lineares, sem qualquer tipo de malabarismo narrativo. O que impressiona é a soma gradativa de tensões em cada linha, em cada parágrafo, e que deságua em lavagem cerebral. Outro tópico assustador é o sistema de vigilância, promovido pelo Estado, e que reflete algumas práticas cotidianas, câmeras de segurança em todos os lugares. Em nome da proteção da propriedade, a vida perdeu o significado e a intimidade desapareceu. A liberdade se transformou em conceito abstrato, mera figura de retórica.

Alguns leitores evitam esse tipo de literatura. Alegam que, em tempos de pandemia, não convém ampliar a depressão. É um argumento.   

 

George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair (1903-1950)




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