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terça-feira, 16 de dezembro de 2025

BARTLEBY E EU

 


Em um mundo onde valores como trabalho, eficiência e ambição se destacam, Bartleby, personagem de Herman Melville (1819-1891), com a frase I would prefer not to (preferiria não – em algumas traduções) está na contramão. São muitos os comentários sobre o que motivam a recusa. Os adeptos da psicanálise mencionam a possibilidade da depressão; na análise dos marxistas, revela uma postura anticapitalista; os liberais econômicos simplesmente o ignoram – como a todos aqueles que não se deixam explorar. Enfim, existe interpretações para todos os gostos.   

O jornalista Gay Talese preferiu seguir por outro caminho. Durante meu trabalho como jornalista e no extenso período em que morei na Cidade de Nova York, conheci muitas pessoas que, de um modo ou de outro, me fazem pensar em Bartleby. É gente que eu via regularmente, mas cuja vida privada permanecia privada. Nesse ritmo, ele abre um leque de identificação com aqueles que – por diversos motivos – estão invisibilizados no dia a dia. Ou seja, Talese produziu um grande número de reportagens enfocando porteiros, caixas de banco, recepcionistas, garçons, carteiros, zeladores, faxineiras e incontáveis balconistas em lojas de ferramentas, lavanderias, farmácias e outros lugares (...). Essa proposição reducionista merece reserva, pois esvazia a essência do personagem e fornece outra percepção para quem o vê como uma figura de contestação ao sistema autoritário (em diversas áreas: trabalho, economia, política, modo de vida).

De qualquer forma, são poucos os jornalistas que aceitam atualmente fazer esse tipo de reportagem, não só porque exige olhar atento para identificar o que se destaca na multidão e o transformar no ponto de partida de alguma história inusitada, mas também porque esse enfoque raramente conta com o apoio do jornalismo comercial, que defende outros interesses. Entretanto, nos anos 60/70, era uma forma inovadora de produzir um olhar minucioso sobre alguns segmentos da sociedade. Esse é o propósito do primeiro capítulo do livro – centrado na região de Wall Street, onde ficava localizado o Times, jornal que forneceu a base jornalística de Talese.

Na segunda parte do livro, Talese relata a epopeia que foi escrever o perfil de Frank Albert Sinatra (1915-1998) para a revista Esquire. Tudo o que consegue, em um primeiro instante, se resume em negativas, bloqueios e advertências. A rede de proteção do astro da música e do cinema era intransponível. Durante várias semanas, como se estivesse em um labirinto, Talese fez inúmeras tentativas de encontrar a saída. Todas resultam em decepção. Mais fácil conseguir entrevistar o Minotauro do que Sinatra. As alegações variavam entre gravações cinematográficas, ensaios musicais, compromissos com amigos. Quando o texto foi publicado, o que se lê são depoimentos de terceiros e o distanciamento típico de quem mistura jornalismo e literatura (new journalism). São os coadjuvantes que constroem a mitologia glamourosa, inclusive no momento que enfoca a luta de boxe entre Muhammad Ali (Cassius Clay) e Floyd Patterson, que aconteceu em Las Vegas, em 22 de novembro de 1965. Ali venceu no 12º round por nocaute técnico. Sinatra e Talese assistiram o combate, mas sequer conversaram.

O último texto aborda a vida do médico Nicholas Bartha, que decidiu explodir o prédio (o brownstone tinha quatorze cômodos e cinco andares) em que morava. Foi um protesto contra uma decisão judicial em favor de sua ex-esposa (Ele era obcecado pela casa. Era seu único hobby). Imigrante europeu, Bartha fazia questão de afirmar que Não vou deixar que ninguém me despeje como os comunistas fizeram na Romênia em 1947. Essa declaração tinha suas raízes na perda do patrimônio familiar (empresa de mineração de ouro), que fora confiscado pelos nazistas e, mais tarde, pelos soviéticos. Trata-se, obviamente, de um personagem com muitos problemas. Mas, contar essa história demanda contar a história das pessoas que faziam parte da vida de Bartha. Ou melhor, a história das pessoas que residiram no local, bem como diversas outras histórias acessórias (inclusive o julgamento). Para que isso aconteça, Talese repetiu o método utilizado na reportagem sobre Frank Sinatra. Mas o fez de forma um pouco diferente, porque neste caso precisou fazer algumas pesquisas históricas e, como compete a aqueles que procuram pelo que não é aparente, acabou achando um filão de ouro.                   

A compra do brownstone não foi pacífica: alguns dos inquilinos se recusaram a ir embora e impediram o início das reformas. Embora todos tem sido despejados judicialmente, o desgaste emocional foi intenso. (...) depois que a família [se] livrou (...) dos inquilinos, Nicholas nomeou a si mesmo empreiteiro geral para poder supervisionar tudo o que os empregados faziam na reforma da casa. (...) Escolheu as cores das tintas para as paredes, decidiu onde peças e móveis seriam colocados e deixou claro que tudo devia ficar onde ele tinha posto e que ninguém deveria mudar nada de lugar. Era um workaholic.   

Para custear as melhorias no edifício, Bartha precisou trabalhar em dois ou três hospitais (alguns relativamente distantes) e isso significou ficar menos tempo em casa, com Cordula, a esposa, e as filhas. Não podia tirar férias ou desfrutar de algum entretenimento (cinema, teatro, concertos musicais, eventos esportivos). Obviamente, o casamento foi desgastando e, em algum momento, o divórcio se tornou inevitável. Mas, não foi uma demanda pacifica. Ao contrário, teve discussões acaloradas e cenas de psicopatia (a esposa foi acusada de comunista, nazista, déspota). Por fim, a esposa e as meninas saíram de casa. Cordula contratou uma advogada e o processo se arrastou por um bom tempo.

Quando o juiz decidiu a causa em favor da esposa, Bartha surtou. Passou a morar sozinho e a cultivar manias e reclamações contra os vendedores de rua, contra os vizinhos, contra o mundo. Diante do despejo iminente, mandou um e-mail de despedida para alguns amigos e para a ex-esposa. Abriu as torneiras do gás de calefação. Esfacelado pela explosão, destruído em tamanho e forma, o prédio tinha vaporizado numa caótica miragem cascateante, um amontoado abrasador de pisos desmoronados que cobriam sem falhas a calçada e o meio-fio com uma montanha ascendente de restos carbonizados e estilhaçados de acessórios domésticos e bens pessoais do dr. Bartha.

O médico foi resgatado inconsciente pelos bombeiros. Tinha queimaduras de segundo e terceiro grau em 80% do corpo. Morreu cinco dias depois.

Bartleby e eu (Editora Companhia das Letras, 2025. Tradução de Laura Teixeira Motta) estabelece um novo conceito para o personagem de Melville, embora... É também um manual do jornalismo enviesado que precisa trabalhar com fontes secundárias e/ou terciárias. Ao escavar o periférico – sem atingir o cerne – oferece elementos que, de outra forma, estavam destinados ao esquecimento.  


Gay Talese (n. 1932)


segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A VINGANÇA É MINHA



Era época dos dias escuros de gelo e neblina em Bordeaux. Susane, obscura advogada, é contratada para defender Marlyne, autora de triplo infanticídio (os filhos tinham seis anos, quatro anos e seis meses, respectivamente). O marido, Gilles Principaux, alega não gostar do advogado da família – então ele e a esposa optaram por procurar outro profissional.

Susane carrega dentro de si alguns fantasmas, um deles a conduz aos seus dez anos, quando pode (ou não) ter acontecido algo que ela bloqueou, mas que muitos anos depois ainda a atormenta. A isso se soma o ressentimento contra o seu pai, as discordâncias com a mãe, a tentativa de resolver o problema de documentação de Sharon, a empregada (imigrante das Ilhas Maurício), e Lila, a filha do ex-marido, projeção do relacionamento amoroso fracassado.

O narrador onisciente do romance optou pela aspereza ficcional, com pouca fluência, que parece não querer avançar, várias páginas procurando por desvios. Nesse ritmo, o texto vai sendo conduzido para lá e para cá, sem permitir que se saiba exatamente qual será o desfecho – inclusive porque isso está meticulosamente escondido.

A vingança é minha, de Marie NDiaye (Editora Todavia, 2024. Tradução: Marília Scalzo), não é romance que se deve recomendar para apressados ou para aqueles que querem deslizar pelo texto como se estivessem em parque de diversão. A demora premeditada em explicar os eventos narrativos vai alargando a história, introduzindo estranhamento, criando uma atmosfera sombria e repleta de penduricalhos.

O relato dessas minúcias elabora o painel dos acontecimentos: o marido que parece não ter ficado surpreso com a morte dos filhos (Principaux apenas não parecia suficientemente “emocionado”), a esposa quase catatônica, os depoimentos dos policiais que atenderam a ocorrência, os relatos dos companheiros de trabalho antes de Marlyne se casar (era professora de francês), o antagonismo da família dela com Gilles (Ele se impunha, vinha da burguesia, era bastante autoritário, apesar de seu ar descontraído).

Nesse emaranhado de relatos – que parecem não levar a nenhum esclarecimento – Susane, com meticulosidade, vai adentrando no âmago da situação, e, como se fosse um detetive policial, tenta entender o que está por trás do crime. Ao visitar sua cliente na prisão, escuta um testemunho incoerente, um misto de comiseração pela dor do marido e o sentimento de ter se libertado da opressão doméstica (no pano de fundo, o discurso estrutural da feminilidade submissa parece gritar nos ouvidos do leitor). Gilles, todas as vezes que visita o escritório de Susane, exalta a felicidade familiar e se mostra reticente aos motivos que levaram à morte dos filhos. Ao mesmo tempo em que declara amor incondicional à esposa (e quanto isso o faz sofrer), revela a banalidade do macho provedor que ignora o que está acontecendo diante de seus olhos.

Susane percebe que existe um abismo faminto nessa situação, uma falha geológica que separa o território afetivo em metades irreconciliáveis. Por mais absurdo que pareça, em determinado momento, Susane deixa de lado a neutralidade jurídica e, em mero exercício aritmético, percebe que o marido sufocou a vida interior de Marlyne – e a impulsionou para a autodestruição. Matar os filhos, mais do que um sintoma do adoecimento, surge como uma rota de fuga da gaiola de ouro que mimetiza o casamento.

Em alguns momentos de A vingança é minha se torna difícil distinguir quem está mais atormentada: a assassina ou a advogada. O onírico carrega a tendência de criar fantasias, de expandir o poder de influência do inimigo (seja real, projeção ou apenas medo). As duas mulheres estão acompanhadas pelo mal-estar, pela sensação de habitarem um não-lugar – espaço em que precisam encontrar forças para existirem, para superar as obrigações sociais (a maternidade, a perda da identidade). A intimidação atinge tal ponto que a personalidade feminina vai sendo diluída até só restar a servidão absoluta. Ou a revolta catastrófica.


Marie NDiaye

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

MAR DA TRANQUILIDADE

 


Na face visível da Lua existe uma região composta por lava basáltica e que é denominada de Mare Tranquillitatis. O módulo lunar Eagle, da Apolo 11 (tripulado por Neil Alden Armstrong e Edwin Eugene “Buzz” Aldrin Jr.), foi o primeiro veículo espacial a pousar no local em 20 de julho de 1969.

No romance de ficção científica Mar da Tranquilidade, de Emily St. John Mandel (Editora Intrínseca, 2025. Tradução de Débora Landsberg), a área foi povoada por habitantes da Terra (três complexos residenciais), depois que a vida no planeta se tornou complicada (super população, descontrole ambiental). Como acontece em todos os empreendimentos imobiliários, um deles, com o passar do tempo, foi perdendo as suas características iniciais e se tornou um lugar decadente. Alguns dos personagens da narrativa moraram, em diferentes épocas, na Colônia dois.     

Os vários eixos narrativos de Mar da Tranquilidade estão unidos pelo conceito de viagem no tempo. Partes do romance ocorrem em diferentes locais (na Lua, na Terra), e em vários períodos cronológicos (1912, 1918, 1990, 2008, 2203, 2401). Esses deslocamentos temporais são o leitmotiv do livro.  

Um grupo de cientistas resolve investigar momentos de séculos diferentes [que] estão vazando uns nos outros. Para entender as razões do fenômeno, enviam Gaspery-Jacques Roberts ao passado. Entretanto, as viagens no tempo encerram um perigo: qualquer mudança – por mais insignificante que seja – pode alterar o fluxo histórico. Os acontecimentos como são conhecidos tomarão outro rumo e essas modificações, eventualmente, criarão situações catastróficas.

Gaspery-Jacques, irmão de Zoey (uma das coordenadoras do Instituto do Tempo), também é um personagem de Marienbad, romance escrito por Olive Llewellyn. Quando ele assume a posição de narrador, relata que visitou vários lugares, conheceu várias pessoas e, mais importante, descobriu o que aconteceu. Em cada uma das viagens temporais, ele se desdobra, se multiplica – e projeta, como se fosse a sombra de si mesmo, a figura literária do Doppelgänger.

Um nobre inglês exilado no Canadá, uma mulher que procura entender o desaparecimento de sua amiga, um compositor obscuro de música clássica, uma escritora em turnê de divulgação de livro. São esses personagens dispares que Gaspery-Jacques encontra em seus deslocamentos temporais. Todos eles precisam enfrentar as diversas dificuldades que envolvem o afeto: doença mental, pandemia, solidão, exílio, perda, luto. Nesse mar não há tranquilidade.  

Metáfora complexa da história humana, Mar da Tranquilidade utiliza-se de mundos alternativos para construir uma estrutura que contrasta com o determinismo cartesiano. A jornada de Gaspery-Jacques, que interfere no próprio destino e no de alguns personagens, mostra que é possível construir outra história, menos cruel, mais flexível. E isso, mais do que um ato de rebeldia contra o sistema, configura um exercício de liberdade.   

Nas cenas finais há o encaixe, aquele momento em que a amarração dos fatos narrativos se completa. Tudo passa a ter explicação (ou não). Mas isso obriga a releitura de algumas páginas, pois o desfecho da trama se parece como um quebra-cabeças cuja imagem revelada ao leitor não corresponde às expectativas.

 

Emily St. John Mandel

Emily St. John Mandel também escreveu o excelente Estação Onze (Editora Intrínseca, 2015).    


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

NOTÍCIAS DO TRÂNSITO

 


Como deve reagir o pai quando o filho anunciar que está fazendo a transição de gênero? Sejam progressistas ou conservadores, raros são aqueles que conseguem administrar essa situação com o necessário equilíbrio. Cadão Volpato precisou escrever um livro para tentar exorcizar a aflição emocional.

Letrista, cantor e guitarrista da banda Fellini (anos 80 em São Paulo, pós-punk), ex-trotskista, ativista estudantil na ECA-SP e na FFLCH-USP, jornalista cultural, apresentador de televisão. Parece fácil resumir a biografia de Cadão Volpato em uns poucos itens. Embora não seja um perfil tradicional, supõe-se que possui as necessárias condições intelectuais para compreender a diversidade cultural, social, econômica, sexual de um mundo em constantes mudanças. No entanto, a vida está repleta de nuances e, entre uma atividade e outra, existem vários interstícios. Em Notícias do trânsito (Editora Seja Breve, 2025), em relato autobiográfico, Cadão procura preencher alguns dos espaços vazios de sua história. O acontecimento que produziu a ruptura entre o privado e o público foi um telefonema (seguido de várias mensagens pelo Whatsup). Um de seus quatro filhos (três rapazes, uma moça) anunciou que estava em trânsito – que tinha decidido atravessar a estrada das convenções e mudar de gênero.

Foi um choque traumático – porque coloca em xeque as questões que emolduram a masculinidade e, consequentemente, o machismo. Em dado momento, Cadão confessa: Eu era essa pessoa, esse Casanova de segunda categoria. (...) E quando sento com velhos amigos é das mulheres passadas que lembramos (...). É a velha história que os homens gostam de repetir – incansavelmente. Mas não é para impressionar a plateia, e sim para convencer a si mesmos que a virilidade (mesmo quando inexistente) é um valor a ser preservado. E os Homens (com H maiúsculo) sentem orgulho de se comportarem como Homens e enumerar as mulheres que fizeram parte de suas vidas.     

Mudar de gênero, nesse contexto, implica em infração, inflamação no tecido social, um tumulto carregado de preconceitos, dúvidas, confusões, medo. Os laços que instituem a masculinidade foram rompidos – principalmente quando o pai é fruto de uma geração que se declara autolimpante, que dispensa ajuda de psicólogos, de terapia, e que, por não ter coragem de assumir determinadas questões, internaliza as dores. Esse conflito lancinante não se resolve facilmente. É o aprendizado (ou não) que resulta em aceitação ou rejeição.


O que faço com seu nome antigo? Me diga.

Eu sei o que você vai dizer, e não vai insistir muito.

Sou uma pessoa do século 20, e vou deixando coisas pelo caminho, menos seu nome de poeta italiano universal, o de perfil adunco no meio do caminho desta vida.

(...)

Mas de repente eu não saberia mais como chamar você. Nome, pronome.

Agora sei, embora ainda não consiga – não como sua irmã, seu irmão, sua namorada, seus amigos. E não sei como sua mãe está chamando você.

 

Nome, pronome. Mudanças. Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura / ché la diritta via era smarrita (Em tradução informal: No meio do caminho desta vida / me vi numa floresta escura, / porque estava perdido), escreveu Dante Alighieri, na Divina Comédia. Esses versos, de certa forma, traduzem a perplexidade do pai diante da decisão do filho. E, seguindo poema, cabe-lhe dizer, depois de algum tempo: Allor fu la paura un poco queta / che nel lago del cor m’era durata / la notte ch’ï passai con tanta pieta // E come quei che con lena affannata / uscito fuor del pelago a la riva / si volge a l’acqua perigliosa e guata (em tradução informal: Então o medo que existia no lago do meu coração se acalmou, / na noite que tomou minha alma inquieta; // e como alguém que, com respiração ofegante, redivivo, / saindo do mar / se volta para a água perigosa e a contempla).    

Livro angustiante, mas escrito com emoção, empatia, acolhimento, e muitas referências literárias, musicais e cinematográficas, Notícias do trânsito se caracteriza pela coragem de discutir um tema comportamental estranho ao segmento social brasileiro que defende a pátria, a família e a hipocrisia.

É a voz do pai que atravessa o livro, é o afeto que une o pai e o filho: Você e o seu sonho de Quimera. Seu, não meu, seu e de mais ninguém. A sua quimera. 


Cadão Volpato


terça-feira, 4 de novembro de 2025

ODISSEIA ESTELAR

 


São raras as narrativas de ficção científica que abordam as relações amorosas. Outros temas possuem preferência: viagens espaciais, inovações tecnológicas, colonialismo em outros planetas, populações alienígenas, distopias fascistas. 

Trabalhando em sistemas solares diferentes, jovem casal planeja voltar à Terra para se casarem. Tudo está planejado, o local da cerimônia, a recepção, os convidados. Somente precisam chegar em Seul, Coreia do Sul, no dia agendado. Mas... como acontece em todas as histórias trágicas de amor, surgem inúmeros obstáculos e o que parecia, inicialmente, a projeção da felicidade se transforma em desencontro e angustia.

Esse é o enredo das duas primeiras histórias de Odisseia Estelar, de Kim Bo-Young (Editora Suma, 2025. Tradução de Luís Girão). Em uma série de mensagens (que, por disparidades temporais, estão desconectadas umas das outras), o leitor pode comparar a visão do noivo (Estou esperando por você) e a visão da noiva (Estou indo até você). Embora os dois contos estejam conectados pelo fio da esperança de que tudo terminará da melhor maneira possível, os personagens precisam lidar com situações muito diferentes. E isso resulta em afastamento. Os diversos incidentes (e acidentes) que relatam dificultam realizar o que prometeram um ao outro.

Do ponto de vista narrativo, a adoção da linguagem epistolar permite a abordagem temática através de visões unilaterais, onde os fatos expostos não sofrem interferência – ou reparos. Ao leitor cabe fazer as conexões, interpretar as decisões de cada uma das partes e lamentar o resultado dessa epopeia do desencontro e da solidão.

Metaforicamente, na odisseia encenada no imenso oceano que é o espaço sideral, Ulisses e Penélope jamais se encontrarão em Ítaca. A Terra, seguindo a vocação eterna para o caos, foi destruída por uma guerra civil. Só sobraram algumas poucas indicações de que, em algum momento, existiu uma civilização.

No terceiro conto, Pessoas a caminho do futuro (que se divide em quatro partes), um viajante espacial, Seongha, está procurando pelos confins do mundo. Para que isso seja possível precisa superar contratempos, loucura, isolamento e – o mais perigoso – outros terráqueos. Cada uma dessas ameaças exige habilidades que ele não dispõe. E isso significa que a morte sempre está próxima. Nessa tentativa de desbravar o infinito existencial, o vazio se projeta como resposta para todas as perguntas. Segundo o narrador, Tudo naquele universo estava morto. O tempo antigo, como uma doença, havia arrastado tudo o que era vivo para o abismo da morte. (...) Somente a “luz”, que vivia por tempos infinitos, continuava a sobreviver, transportando de um lugar para o outro imagens dos tempos em que o universo estava vivo. (...) Todas as estrelas mortas ainda brilhavam em algum lugar do cosmos. (...) Para a luz, o nascimento e o fim do universo significavam um único instante. A luz vivia por eras infinitas, mas morria no momento em que nascia. Ela ignorava até mesmo que um dia havia existido.     

Odisseia estelar não economiza em discussões sobre as muitas questões científicas relacionadas aos efeitos da física e da biologia nos humanos que estão navegando pelo mundo exterior: as viagens espaciais que ampliam as diferenças espaço-tempo, a possibilidade de atingir a velocidade da luz, o emprego de nanorrôbos sintéticos para preservar a vida, os efeitos da gravidade e da ausência de oxigênio, a existência da quarta dimensão, as naves espaciais individuais e coletivas quase autônomas. Essas abordagens com contornos futuristas são importantes para entender o romance, sendo que alguns trechos exigem entendimento científico além do trivial – mas isso não atrapalha a narrativa que propõe um cenário ad hoc, onde tudo se assemelha ao deslumbramento e, simultaneamente, ao horror.        


Kim Bo-Young