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segunda-feira, 22 de abril de 2024

AVISO DE INCÊNDIO

 

Head of a girl (óleo sobre tela, 1976). Lucian
Michael Freud (1922-2011). Coleção particular. 


Dentro do ônibus urbano. Todos ouviram a voz forte da mulher. 

– Tenho 200 anos e dois meses. É muito tempo nessa terra. Estou cansada. Todos esses motoristas e cobradores são meus bisnetos. Vou pegar o facão e atorar o meu coração. Assim acabo com essa feiura. 

Ela não tinha 200 anos, talvez um pouco mais de 60, mas o sofrimento estava estampado no seu rosto. Isso, de certa forma, explicava todo o esforço que estava fazendo para semear a tempestade. A dor compartilhada em alto e bom som.  

Estava sozinha – ou assim parecia. Repetia as frases em tom monocórdio. Parava um minuto ou dois e depois recomeçava. As mesmas palavras – como se estivesse escolhendo a decoração perfeita para aquele ambiente estranho. A audiência (ou seja, os passageiros) fingia não estar participando do espetáculo, preferia virar o rosto para o outro lado e mergulhar no mundo do faz de conta. A realidade imediata estava proibida de atrapalhar a existência de quem queria apenas chegar em casa ou no trabalho.

A imagem, como se fosse uma pintura trágica, dessas que estão abrigadas nas paredes dos museus, ficou pendurada na mente do homem quando ele desembarcou do ônibus. Não era a primeira vez que se deparava com esse tipo cena. Muitas pessoas estão afogadas por dentro. Falar constitui uma forma de voltar à tona, de respirar, de mostrar que querem continuar vivendo (mesmo quando dizem o contrário).  

Caminhou lentamente os quase 100 metros que o separava do apartamento. O ônibus sumiu na distância – e com ele, a mulher e o vocabulário áspero. Mas isso não trouxe alivio. Ao contrário. Sobrou um resíduo, uma angustia de espessura indefinida. O homem percebeu que não seria fácil esquecer o incidente. Inclusive porque não conseguiu aplicar à mulher um daqueles adjetivos que são usados para manter intacta a zona de conforto. A vida não gosta de respostas solúveis – prefere algo mais palpável. Mesmo que isso implique em conflito.

O que fazer? Esta é a pergunta que vale um milhão de dólares. De qualquer forma, o afastamento é terreno minado, areia movediça, armadilhas diversas. Ninguém consegue escapar sem algum tipo de perda.

Foi nisso que o homem pensou ao entrar no prédio. Será que o futuro que estava surgindo ali na esquina do tempo estava sinalizando para alguma coisa? Não era o momento adequado para alimentar a paranoia – disse para si mesmo. Em todo caso, enfrentou os degraus da escada com cuidado. Quem mora no primeiro andar não precisa usar o elevador.

Teve dificuldade para abrir a porta. Demorou um pouco para perceber que estava usando a chave errada. Entrou no apartamento e, depois de fechar a porta, foi para o escritório. Sentou no sofá e ficou olhando para algum lugar indefinido. Demorou uns dez minutos, talvez um pouco mais. Levantou-se e caminhou na direção da cozinha.

Voltou para o sofá com uma caneca de chá. Enquanto molhava os lábios com a bebida quente, o mundo começou a desmoronar.      


quinta-feira, 18 de abril de 2024

CINCO ESQUINAS

 


Jorge Mario Pedro Vargas Llosa (Prêmio Nobel de Literatura, 2010) possui rara habilidade para escrever ficção. Alguns de seus livros estão entre as melhores narrativas latino-americanas (A cidade e os cachorros, Conversas no Catedral, Tia Júlia e o escrevinhador, Pantaleão e as visitadoras, entre outros). Mas, como acontece com frequência entre escritores, é uma pessoa detestável politicamente. O admirador do socialismo e da revolução cubana se transformou em um conservador liberal. Alguns de seus artigos publicados em jornais e revistas de Espanha (onde reside) se aproximam das ideias defendidas por Tomás de Torquemada (1420-1498), o grande inquisidor.

Mas, como é de conhecimento geral, não se deve confundir a obra artística com os posicionamentos ideológicos do autor. Nesse sentido, o romance Cinco esquinas (publicado no Brasil em 2016), embora não tenha o mesmo brilho de A Festa do Bode (publicado no Brasil em 2011), aborda um tema significativo: os regimes absolutistas que resultam do esfarelamento das democracias. No caso de Vargas Llosa, uma pequena vingança contra um de seus inimigos, Alberto Kenya Fujimori – que governou o Peru entre 1990 e 2000 e o derrotou nas eleições presidenciais de 1990.

O livro inicia erótico, evolui para um caso policial e termina com o cinismo de sempre. Por alguma razão, talvez asco, Vargas Llosa em nenhum momento menciona Vlademiro Ilich Lenin Montesinos Torres, chefe do Serviço de Inteligência Nacional do Peru e eminência parda do governo Fujimori. Atualmente, assim como o seu chefe, o Doutor está preso e, talvez, pelo resto de sua vida.

Um cidadão de bem, empresário de sucesso, Enrique Cárdenas, cometeu uma “pequena” transgressão. Participou de uma orgia regada com álcool e cocaína. Era uma armadilha e o sujeito foi fotografado no exercício de algumas manobras sexuais capazes de ruborizar frade de pedra (como se dizia outrora). Dois anos depois do deslize, a conta bateu na sua porta. Rolando Garros, dono de uma revista de quinta categoria, Revelações, de posse das fotografias, pede um “patrocínio” (100 mil dólares) para a sua publicação. Indignado, o milionário o expulsa. Indignado, o jornalista publica as fotos. Escândalo na sociedade peruana. E que é ampliado quando o cadáver de Rolando Garro aparece em uma rua escura do subúrbio. Seguindo a regra geral, prendam os suspeitos de sempre, o empresário amarga alguns dias em uma cela fétida. Com exceção do trauma, tudo se resolve com rapidez. Um bode expiatório assume o crime, o caso é abafado e a paz volta a reinar entre os homens (e as mulheres) de boa vontade.

Enquanto isso, a revista, sob nova direção, segue na direção de novos escândalos (e, o mais importante, financiada pelo Doutor). Alguns políticos se tornam alvo dos boatos e acusações. Ou seja, para eliminar a oposição nenhuma arma é excessiva. Como a História é dinâmica, o reinado de Fujimori termina abruptamente, a revista publica um relato mais ou menos fiel aos acontecimentos e rompe com o governo. Os tempos que surgem no horizonte são outros.  

O caso lésbico, que envolve a esposa do empresário e a esposa do advogado, evolui para um ménage à trois. Ou, como sugerem as páginas finais do romance, um ménage à quatre. Os escrúpulos desaparecem. Parece que, depois do horror, todos adquiriram uma couraça e que, assim protegidos, nada mais os impede que exerçam os privilégios oferecidos pelo dinheiro e pela classe social.

Cinco esquinas mistura a crítica de costumes e os esquemas mais sórdidos da política. Enfim, uma boa combinação literária.  


Jorge Mario Pedro Vargas Llosa (Arequipa, Peru, 1936)

 


quarta-feira, 10 de abril de 2024

COELHO MALDITO

 


Tornou-se prática comum elogiar livro ruim. Influenciadores literários virtuais (ou não), principalmente aqueles que são “parceiros” das editoras, se desdobram em encontrar (e anunciar) qualidades nos livros que recebem. Alguns, os mais preguiçosos, nem isso. Preferem copiar algum trecho da orelha ou da quarta capa e publicar como se fosse uma crítica literária altamente qualificada.

Os contos da sul-coreana Bora Chung foram recebidos no Brasil com fogos de artifício e elogios tão retumbantes que parece que a escritora está prestes a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Como diriam os antigos, devagar com o andor, que o santo é de barro. A tendência editorial, que aposta na literatura que reúne no mesmo balaio o terror gótico e a fantasia (muitas vezes disfarçada de realismo mágico), não consegue perceber que Coelho Maldito (editora Alfaguara, 2024) é um livro pavoroso – e, para que não reste dúvida, isto não é um elogio.

A retomada de alguns temas conhecidos (duplo, rebelião dos robôs, escatologia, morbidez, fantasmas, magia negra, vingança, incesto, ganância, antropomorfismo) nem sequer caminha na direção da originalidade. O que se percebe é que algumas das narrativas foram modernizadas, adotaram o verniz da sociedade tecnológica, mas sem abdicar do antigo propósito: causar medo. Outras adotam o discurso das lendas asiáticas, onde o paradoxo ganha substância e dilui o real. Nesse tipo de literatura que flerta com o trash, a ciência, em lugar de produzir segurança, atemoriza; a religião não leva à serenidade, mas ao pavor; as relações comerciais não produzem bem-estar social – corrupção é a sua característica mais expressiva. Tudo é frágil, apenas o horror se mostra palpável.

A ausência de racionalidade não se cansa de proclamar as ações violentas através de descrições exaustivas sobre sangue, fezes, escuridão, tortura, mutilação, crianças imaginárias. Os espaços onde acontecem as narrativas são estranhos: banheiro, dentro de um carro que está afundando na lama, hospital, florestas, caverna, apartamentos inóspitos. Tudo contribui para causar sentimentos desagradáveis e aflição.  

Quase todas as dez histórias transitam em torno de personagens femininas. Mas, não se trata de traduzir as estruturas narrativas em defesa do feminismo ou do matriarcado. É o contrário. As principais questões das mulheres são substituídas por efeitos dispersivos e que visam chocar, ampliar o desconforto. Em alguns casos, o sobrenatural se impõe (A armadilha, Lar, doce lar); em outros, as violências cometidas por outras mulheres estabelecem a competividade como estratégia pontual (A cabeça, Dedos gélidos, Menorreia).

O conto mais angustiante, e o mais longo, Cicatriz, mostra a trajetória de um menino que é sequestrado e mantido isolado em uma caverna escura. É constantemente bicado por alguma entidade não nominada. A liberdade acontece em algum momento, vários anos depois. Como o rapaz não encontra correspondência no mundo (uma variação grosseira de Kaspar Hauser), torna-se um lutador de rua. Um homem, também inominado, agencia esses combates – e o controla apertando o seu pescoço, onde há uma cicatriz (uma espécie de calcanhar de Aquiles). A salvação nas lutas em que está em desvantagem surge com elementos do fantástico: braços que empedram, asas que aparecem inesperadamente. No momento em que deixa de ser útil é abandonado na floresta. O que se segue, seguindo o formato das narrativas circulares, procura explicar os diversos pontos em aberto na narrativa – uma espécie de começo e fim complementares, mas pontuado pelo absurdo. E com um agravante, o final evoca alguma lenda sul-coreana obscura e isso torna a narrativa mais bizarra, como se tudo não passasse de um pesadelo.

A morbidez, quando repetitiva, em lugar de produzir uma reflexão sobre a fragilidade humana, causa cansaço e tédio. E produz uma literatura que se afasta do afeto e exalta a brutalidade, além de estimular dramas imaginários, ignorar a realidade e convidar ao exercício da apatia sobre algumas questões políticas. Todas essas características, espelhadas nas formas literárias, contribuem, a médio prazo, para favorecer os abusos do autoritarismo e a consequente desumanização dos indivíduos.     


sábado, 30 de março de 2024

A CORNETA

   

 

Sem se ater aos esquemas rígidos do realismo, que exigem verossimilhança de todos os acontecimentos narrados, o romance A corneta, de Leonora Carrington (1917-2011), se concentra nas peripécias de Marian Leatherby, 92 anos – que foi internada pela família em uma instituição para senhoras idosas.

É um texto anárquico, repleto de esquisitices, de onirismo. Mais do que um recorte de um mundo em transformação, onde tudo se mostra absurdo e a presença do duplo é uma constante, o ponto alto está em algumas passagens, quando o texto está dentro de outro texto, transformando o enredo principal em secundário – para várias páginas depois retomar o andamento inicial.

Marian Leatherby está surda (uma forma de alienação do mundo real). Sua amiga milionária, Carmella, a presenteia com uma corneta auditiva. Desta forma, o silêncio, que era uma espécie de refúgio, passa a ser rompido nos momentos em que ela quer saber o que está ocorrendo ao seu redor. Evidentemente, isso não evita o exílio. Lamentando a falta dos charutos escuros, das pastilhas com essência de violeta, de não poder levar os gatos e a galinha, ela não entra em depressão. Ao contrário, entende que as perdas fazem parte do jogo e que não deve se lamentar pelo que não está mais sob controle.

Eu nunca estou sozinha, Galahad. Ou melhor, eu nunca sofro de solidão. Sofro muito com a ideia de que minha solidão possa ser tirada de mim por um monte de pessoas impiedosamente bem-intencionadas.

As nove hospedes da instituição comandada pelo dr. Gambit apresentam características peculiares, um leque que vai da timidez até a loucura paranoica. Ninguém é normal. O mesmo vale para as residências (castelo, chalés suíços, vagões ferroviários, bangalôs, prédios em forma de cogumelo, bota, múmia egípcia), que exploram o kitsch como uma manifestação artística. O fato que interessa é que o nonsense está presente em cada instante, em cada cena do romance. As imagens refletidas no espelho, o aparecimento de improváveis travestis, o assassinato sem explicação de uma das moradoras. A soma desses episódios significa muita diversão para o leitor – que encontra no estranhamento um humor delicado, mas que, a todo instante, pisa nos calos da política estatal. O autoritarismo, o cuidado com os idosos, as questões feministas, a precariedade dos trabalhadores, o descuido com as questões climáticas – todos esses temas, uns de forma explícita, outros de maneira sutil, estão contemplados na narrativa. 

Carmella, a personagem que surge em todos os momentos em que Marian precisa de ajuda, parodiando as narrativas triunfalistas, pode ter sido inspirada em Remedios Varo, a melhor amiga de Leonora Carrington. Suas intervenções providenciam comida, conforto, solidariedade. Além disso, garante que o pacto do afeto não seja rompido.   

Um dos pontos altos da narrativa se concentra em uma pintura que está na parede do refeitório. Marion imagina que a abadessa retratada está piscando. O sorriso de canto de lábio zomba de todos e de tudo. É como se de estivesse dizendo coisas que são incompreensíveis aos homens. Diante do quadro, Marion (instrumentada por Leonora Carrington) coloca em perspectiva a posição subversiva e excêntrica do feminino” (para usar as palavras de Olga Tokarczuk, no posfácio). Não é por acaso que muitas mulheres foram rotuladas como bruxas. Ao masculino escapa essa piscadela, esse olhar que abraça o que está fora do entendimento cartesiano, que institui outra ordem na confusão cotidiana.  

 

Mary Leonora Carrington Moorhead nasceu em Clayton-le-Woods, Lancashire, Inglaterra, em 1917. Depois de uma temporada em Paris, mudou-se para o México em 1941. Foi namorada de Max Ernest, mas rompeu com os modernistas europeus por questões feministas – isso não a impediu de criar um conjunto artístico surrealista. Teve uma vida repleta de aventuras e desventuras. É a mais importante artista plástica mexicana depois de Frida Kahlo. Amiga de Remedios Varo e Elena Poniatowska. Faleceu em 2011 (pneumonia).       

 

The meal of Lord Candlestick. Óleo sobre tela, 1938. Coleção Particular. 


TRECHO ESCOLHIDO

“Você quer dizer que estamos entrando em outra era do gelo?” perguntei, sem qualquer alegria.

“Por que não? Aconteceu antes”, argumentou Carmella. “Devo dizer que sinto que é justiça poética se todos esses governos terríveis morrem congelados nos seus respectivos palácios governamentais ou parlamentos. Na verdade, eles estão sempre sentados na frente de microfones, então há uma boa chance de que todos congelem até a morte. Isso seria uma boa mudança, depois de empurrar as nações pobres para a matança total desde mil novecentos e catorze.

“É impossível entender como milhões e milhões de pessoas obedecem a uma coleção doentia de cavalheiros que se autodenominam ‘Governo’! A palavra, imagino, assusta as pessoas. É uma forma de hipnose planetária e muito insalubre.”

“Isso vem acontecendo há anos”, falei. “E apenas poucos ousaram desobedecer e fazer o que chamam de revoluções. E quando vencem suas revoluções, o que às vezes aconteceu, fizeram outros governos, às vezes mais cruéis e estúpidos do que os anteriores.”

“Os homens são muito difíceis de entender”, disse Carmella. “Vamos torcer para que todos congelem até a morte. Tenho certeza de que seria mais agradável e saudável para os seres humanos não se submeterem a qualquer autoridade. Eles teriam que pensar por si mesmos em vez de serem sempre informados quanto ao que devem fazer e pensar por anúncios, cinemas, policiais e parlamentos.” 


quinta-feira, 21 de março de 2024

QUEM MATOU MEU PAI

 


Algumas leituras são dolorosas. Momentos em que o leitor precisa fechar o livro durante alguns instantes, tomar fôlego, reler o trecho perturbador, repensar algumas coisas e perceber que existe um entrecruzamento entre o que está sendo narrado e o que viveu (ou que poderia ter vivido). É o caso de Quem matou meu pai, de Édouard Louis (Editora Todavia, 2023). 

Retomando um tema muito presente na modernidade, as relações entre filho e pai, Édouard Louis se afasta da possibilidade simbólica de reconstruir o parricídio (que tinha ocorrido em outra oportunidade) e se concentra em criticar os programas políticos que promovem a extinção dos mecanismos governamentais de assistência social. E cita, nominalmente, os responsáveis por essas ações:  Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy, François Holland, Emmanuel Macron, Manuel Valls, Xavier Bertrand, Martin Hirsch, Myriam El Khomri, entre outros. 

São essas figuras públicas que promoveram, ano após ano, governo após governo, a precarização da vida dos aposentados. Cada euro confiscado resulta em dificuldades para comprar remédios, alimentos, pagar aluguel, sobreviver. São essas figuras públicas que contribuíram para que a sociedade francesa seja dividida basicamente entre pobres e ricos – ampliando a desigualdade econômica e social. Nessas condições, somente os ingênuos acreditam que o corte de benefícios pode resultar em tranquilidade. Por isso, não existe surpresa quando surgem inúmeras greves, constantes depredações do patrimônio público, embates com a polícia. No contra-ataque, as forças de repressão usam as pautas legítimas dos trabalhadores para estabelecer que estão a serviço dos patrões.

O pai de Édouard sofreu um acidente de trabalho e ficou incapacitado para retornar ao emprego. Além das dores físicas e da estigmatização social por ser um inativo, precisou conviver com o salário cada vez mais escasso e sem a assistência médica necessária. É uma vida miserável. E que – muito antes – tinha se agravado com o alcoolismo, a separação da esposa e os consequentes problemas domésticos. A estrutura familiar não sobreviveu aos momentos de ruptura afetiva e econômica.

Por vias transversas, em uma espécie de ato de contrição (que reúne o arrependimento filial e a restauração da paternidade), o relato de Édouard Louis tenta reparar o esgarçamento familiar.  Ele sabe que não existe conserto para o que o passado estragou – no entanto, por pior que sejam as condições, sempre existe a possibilidade de estender a mão e ajudar aquele que está debilitado.

Um outro fator que interfere na organização textual se mostra claro na diferença que existe entre o filho intelectual (com posições políticas especificas) e o pai semianalfabeto (apático por qualquer causa social). Quando o pai deixa de se envolver com as questões fundamentais, ele autoriza que o opressor atravesse as fronteiras do bom senso. Mais do que isso, compactua com a adoção das medidas previdenciárias que, a curto prazo, vão debitar a sua própria existência. É um processo de autofagia.

Sintético e contundente, Quem matou meu pai tem a potência de um cruzado no queixo do neoliberalismo. Se não produz o nocaute, ao menos deixa o adversário atordoado. E avisa, caso alguém queira alegar desconhecimento, que a luta não está resolvida em favor daqueles que detém os meios de produção.