Em um mundo onde valores como trabalho, eficiência e ambição se destacam, Bartleby, personagem de Herman Melville (1819-1891), com a frase I would prefer not to (preferiria não – em algumas traduções) está na contramão. São muitos os comentários sobre o que motivam a recusa. Os adeptos da psicanálise mencionam a possibilidade da depressão; na análise dos marxistas, revela uma postura anticapitalista; os liberais econômicos simplesmente o ignoram – como a todos aqueles que não se deixam explorar. Enfim, existe interpretações para todos os gostos.
O jornalista Gay Talese preferiu seguir por outro caminho. Durante meu trabalho como jornalista e no extenso período em que morei na Cidade de Nova York, conheci muitas pessoas que, de um modo ou de outro, me fazem pensar em Bartleby. É gente que eu via regularmente, mas cuja vida privada permanecia privada. Nesse ritmo, ele abre um leque de identificação com aqueles que – por diversos motivos – estão invisibilizados no dia a dia. Ou seja, Talese produziu um grande número de reportagens enfocando porteiros, caixas de banco, recepcionistas, garçons, carteiros, zeladores, faxineiras e incontáveis balconistas em lojas de ferramentas, lavanderias, farmácias e outros lugares (...). Essa proposição reducionista merece reserva, pois esvazia a essência do personagem e fornece outra percepção para quem o vê como uma figura de contestação ao sistema autoritário (em diversas áreas: trabalho, economia, política, modo de vida).
De qualquer forma, são poucos os jornalistas que aceitam atualmente fazer esse tipo de reportagem, não só porque exige olhar atento para identificar o que se destaca na multidão e o transformar no ponto de partida de alguma história inusitada, mas também porque esse enfoque raramente conta com o apoio do jornalismo comercial, que defende outros interesses. Entretanto, nos anos 60/70, era uma forma inovadora de produzir um olhar minucioso sobre alguns segmentos da sociedade. Esse é o propósito do primeiro capítulo do livro – centrado na região de Wall Street, onde ficava localizado o Times, jornal que forneceu a base jornalística de Talese.
Na segunda parte do livro, Talese relata a epopeia que foi escrever o perfil de Frank Albert Sinatra (1915-1998) para a revista Esquire. Tudo o que consegue, em um primeiro instante, se resume em negativas, bloqueios e advertências. A rede de proteção do astro da música e do cinema era intransponível. Durante várias semanas, como se estivesse em um labirinto, Talese fez inúmeras tentativas de encontrar a saída. Todas resultam em decepção. Mais fácil conseguir entrevistar o Minotauro do que Sinatra. As alegações variavam entre gravações cinematográficas, ensaios musicais, compromissos com amigos. Quando o texto foi publicado, o que se lê são depoimentos de terceiros e o distanciamento típico de quem mistura jornalismo e literatura (new journalism). São os coadjuvantes que constroem a mitologia glamourosa, inclusive no momento que enfoca a luta de boxe entre Muhammad Ali (Cassius Clay) e Floyd Patterson, que aconteceu em Las Vegas, em 22 de novembro de 1965. Ali venceu no 12º round por nocaute técnico. Sinatra e Talese assistiram o combate, mas sequer conversaram.
O último texto aborda a vida do médico Nicholas Bartha, que decidiu explodir o prédio (o brownstone tinha quatorze cômodos e cinco andares) em que morava. Foi um protesto contra uma decisão judicial em favor de sua ex-esposa (Ele era obcecado pela casa. Era seu único hobby). Imigrante europeu, Bartha fazia questão de afirmar que Não vou deixar que ninguém me despeje como os comunistas fizeram na Romênia em 1947. Essa declaração tinha suas raízes na perda do patrimônio familiar (empresa de mineração de ouro), que fora confiscado pelos nazistas e, mais tarde, pelos soviéticos. Trata-se, obviamente, de um personagem com muitos problemas. Mas, contar essa história demanda contar a história das pessoas que faziam parte da vida de Bartha. Ou melhor, a história das pessoas que residiram no local, bem como diversas outras histórias acessórias (inclusive o julgamento). Para que isso aconteça, Talese repetiu o método utilizado na reportagem sobre Frank Sinatra. Mas o fez de forma um pouco diferente, porque neste caso precisou fazer algumas pesquisas históricas e, como compete a aqueles que procuram pelo que não é aparente, acabou achando um filão de ouro.
A compra do brownstone não foi pacífica: alguns dos inquilinos se recusaram a ir embora e impediram o início das reformas. Embora todos tem sido despejados judicialmente, o desgaste emocional foi intenso. (...) depois que a família [se] livrou (...) dos inquilinos, Nicholas nomeou a si mesmo empreiteiro geral para poder supervisionar tudo o que os empregados faziam na reforma da casa. (...) Escolheu as cores das tintas para as paredes, decidiu onde peças e móveis seriam colocados e deixou claro que tudo devia ficar onde ele tinha posto e que ninguém deveria mudar nada de lugar. Era um workaholic.
Para custear as melhorias no edifício, Bartha precisou trabalhar em dois ou três hospitais (alguns relativamente distantes) e isso significou ficar menos tempo em casa, com Cordula, a esposa, e as filhas. Não podia tirar férias ou desfrutar de algum entretenimento (cinema, teatro, concertos musicais, eventos esportivos). Obviamente, o casamento foi desgastando e, em algum momento, o divórcio se tornou inevitável. Mas, não foi uma demanda pacifica. Ao contrário, teve discussões acaloradas e cenas de psicopatia (a esposa foi acusada de comunista, nazista, déspota). Por fim, a esposa e as meninas saíram de casa. Cordula contratou uma advogada e o processo se arrastou por um bom tempo.
Quando
o juiz decidiu a causa em favor da esposa, Bartha surtou. Passou a morar
sozinho e a cultivar manias e reclamações contra os vendedores de rua, contra
os vizinhos, contra o mundo. Diante do despejo iminente, mandou um e-mail de
despedida para alguns amigos e para a ex-esposa. Abriu as torneiras do gás de
calefação. Esfacelado pela explosão, destruído em tamanho e forma, o prédio
tinha vaporizado numa caótica miragem cascateante, um amontoado abrasador de
pisos desmoronados que cobriam sem falhas a calçada e o meio-fio com uma
montanha ascendente de restos carbonizados e estilhaçados de acessórios
domésticos e bens pessoais do dr. Bartha.
O médico foi resgatado inconsciente pelos bombeiros. Tinha queimaduras de segundo e terceiro grau em 80% do corpo. Morreu cinco dias depois.
Bartleby
e eu
(Editora Companhia das Letras, 2025. Tradução de Laura Teixeira Motta)
estabelece um novo conceito para o personagem de Melville, embora... É também
um manual do jornalismo enviesado que precisa trabalhar com fontes secundárias
e/ou terciárias. Ao escavar o periférico – sem atingir o cerne – oferece elementos
que, de outra forma, estavam destinados ao esquecimento.
![]() |
| Gay Talese (n. 1932) |









