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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

BERNICE CORTA O CABELO


O universo ficcional de Francis Key Scott Fitzgerald (1896-1940) se concentra na vida dos belos e malditos, um grupo de jovens milionários que usa o dinheiro de seus pais para promover diversão e tragédia. Usualmente conseguem alcançar as duas metas. O conto Bernice Corta o Cabelo (Bernice Bobs her Hair), que foi publicado em 1920, de certa forma não foge desse esquema – embora a sintonia seja outra.     

A edição brasileira mais recente de Bernice Corta o Cabelo, de 2016, com o selo da editora Lote 42, passou quase despercebida. O livro tem formato pouco usual (30 cm x 10,5 cm), provavelmente para se destacar na estante. A tradução e o posfácio são de Juliana Cunha. O volume também conta com (belas) ilustrações de Mika Takahashi.

A carpintaria ficcional não apresenta grandes complicações. Um narrador onisciente, em terceira pessoa, coordena o andamento  narrativo e vai distribuindo as informações para o leitor em ritmo de conta-gotas. O uso de elipses contribui para separar as cenas e demarcar a passagem do tempo.

O conto revela duas forças antagônicas. Bernice, linda e rica, acredita na feminilidade. Sua visão do mundo envolve elementos básicos como um bom casamento, filhos e uma casa para administrar. Querer mais do que isso implica em ultrapassar barreiras perigosas. Sua prima, Marjorie, bela e rica, acredita em uma espécie muito particular de feminismo. Por isso, contrariando todas as regras de bom comportamento da época, prefere comandar o espetáculo. Ela não consegue viver se não for o foco da atenção masculina. Ter os homens aos seus pés produz uma forma peculiar de gozo.

O local de encontro dos jovens é o clube de golfe, onde acontecem algumas reuniões sociais, ou melhor, jantares dançantes. Ao longe, os adultos observam a movimentação das moças e dos rapazes. Querem evitar que aconteça algum tipo de “acidente”. Evidentemente, dançar está liberado. E as moças mais populares dançam mais, flertam mais, namoram mais e, claro, são mais vigiadas.

Bernice dança pouco. Falta-lhe empatia. Não consegue despertar a atenção dos garotos. Mas, isso sempre lhe pareceu secundário. Sabe que tudo se arranjará no devido tempo. 

Esse proceder irrita Marjorie. Em conversa com a mãe, despeja todo o rancor que a prima lhe causa:

–  Ela é o fim! – Era a voz de Marjorie. – Ah, eu sei o que você vai dizer! Tanta gente já lhe disse o quanto ela é bonita, boazinha, que sabe até cozinhar! E daí? Ela é chata. Os rapazes não gostam dela.


Por um acidente de percurso, Bernice escuta parte dessa conversa. Embora fique magoada, resolve mudar. Sem muitas alternativas plausíveis, solicita auxílio da prima.

O pacto é simples: Bernice precisa fazer algumas coisas – e nem todas são sensatas. Para surpresa geral, a moça se torna rapidamente a estrela do espetáculo. O motivo?

Engolindo o orgulho, virou-se para Charley Paulson e mergulhou de cabeça.

 

– O senhor acha que eu deveria cortar meu cabelo bem curtinho, senhor Paulson?

 

Charley a encarou surpreso:

 

– Mas por quê?

 

– Porque estou considerando a ideia. É um jeito prático e infalível de chamar a atenção.

 

Charlie sorriu com simpatia. Não tinha como saber que o comentário fora ensaiado. Respondeu que não entendia grande coisa sobre cortes de cabelo. Mas Bernice estava lá para ensiná-lo.

 

– Quero ser uma vampira da sociedade, entende? – anunciou friamente, acrescentando que as madeixas mais curtas seriam o prelúdio necessário. Afirmou ainda que se lhe pedia a opinião era porque soubera que ele era muito crítico com as mulheres.

 

Charley, que entendia tanto de psicologia feminina quanto de estados mentais de budistas contemplativos, se sentiu vagamente lisonjeado.


Seguindo uma frase atribuída a Oscar Wilde, tudo o que podemos fazer pelas pessoas é alimentá-las, diverti-las ou chocá-las, Bernice se mostra espirituosa, surpreendente. E isso significa que todos os rapazes querem dançar com ela, todos querem ouvir alguma frase espirituosa, todos querem estar presente no dia em que cortará o cabelo.


Eis o problema. Ou melhor, dois problemas. O primeiro, mais fácil de ser identificado, está enraizado no ciúme. Marjorie percebe que está perdendo a audiência. Ela não gosta de ver os rapazes implorando por migalhas de atenção da prima. Na agonia que envolve criador e criatura, Bernice se tornou uma rival. E isso precisa ser anulado.

O segundo obstáculo surge como consequência do primeiro: Bernice não pretende cortar o cabelo. Foi apenas um mot d’esprit, uma brincadeira, uma fantasia com o imaginário masculino. Mas,... 

A prima deseja recuperar o prestígio perdido. E então arma uma cilada – um dia antes de voltar para casa, sem poder escapar, Bernice permite a tosa.

Assim como Sansão perdeu suas forças, Bernice se vê sozinha. O estrago não se reduziu a um mero corte de cabelo. Nenhum dos rapazes gostou do resultado final. 

A ruptura entre as primas se tornou definitiva  embora a boa educação não permita manifestações agressivas em público.

Sem alternativa, Bernice arrumou as malas, escreveu uma carta à tia, que deixou em cima do travesseiro, e decidiu ir embora no meio da noite.

De repente, prendeu o fôlego e uma expressão brilhou em seus olhos. Uma expressão que um analista mais experiente identificaria como aquela que ela exibira na cadeira do barbeiro. Ou um desdobramento dela. Era um jeito inteiramente novo de Bernice; e traria consequências.


Bernice, a outra, diferente daquela que estava visitando a prima, surge como fruto da experiência. A larva se transforma em borboleta.

Francis Key Scott Fitzgerald

Caminhou decisivamente para a escrivaninha e retirou um objeto que estava lá. Apagou as luzes e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Devagarzinho, abriu a porta do quarto de Marjorie. Podia ouvir a respiração suave e compassada de uma consciência tranquila.

 

Estava agora, calma e deliberada, à beira da cama da prima. Agiu depressa. Inclinou-se, achou uma das tranças de Marjorie, seguiu-a com a mão até o ponto mais próximo da cabeça e, deixando uma folga para que a dona não sentisse o repuxão, passou-lhe a tesoura. Ao segurar aquele rabicho, prendeu a respiração. Marjorie, ainda dormindo, murmurou alguma coisa. Bernice amputou a outra trança.


Carregando as malas, rumou para a estação ferroviária. Ao passar em frente da casa de Warren McIntyre, um dos namorados da prima, percebe que ainda está segurando as tranças.

Num impulso, largou a bagagem no chão, sacudiu as tranças feito dois pedaços de corda e atirou-as na varanda de madeira, onde aterrissaram com um baque surdo. Só então, incapaz de se conter, riu bem alto.

 

– Pronto! –, disse rindo descontroladamente – fique com esse escalpo de lembrança.

 

Pegou as malas e desceu correndo a rua enluarada.     

  

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P.S.1) Tomo as palavras de Juliana Cunha, no posfácio, para acrescentar um dado importante: O cabelo é ainda um símbolo de feminilidade tão importante que até hoje algumas pessoas se chocam quando uma menina corta os fios bem curtos. Na década de 1920, quando se passa a história, era bem pior. O cabelo curto era um manifesto agressivo assinado apenas por mulheres muito liberadas e seguras de si. Bernice, como sabemos, não era nem queria ser essa mulher.

P.S.2) Há sempre algum ruído em toda tradução. Muitas vezes, o barulho é ensurdecedor. No caso de Bernice Corta o Cabelo as semelhanças e diferenças aparecem de forma nítida comparando as traduções propostas por Ruy Castro e Juliana Cunha. Um exemplo está no seguinte trecho:

They stared at each other across the breakfast-table for a moment. Misty waves were passing before Bernice's eyes, while Marjorie's face wore that rather hard expression that she used when slightly intoxicated undergraduates were making love to her.

As duas se olharam por um momento. Brumas passaram diante dos olhos de Bernice, ao passo que o rosto de Marjorie ostentava aquela expressão dura que ela usava quando universitários ligeiramente bebuns a beijavam. (Ruy Castro)

Por um instante, as duas se encararam por sobre a mesa de café. Ondas de névoa turvaram os olhos de Bernice enquanto o rosto de Marjorie exibia a mesma expressão bastante dura que ela fazia enquanto transava com universitários levemente embriagados. (Juliana Cunha)


segunda-feira, 20 de agosto de 2018

MANUEL BANDEIRA: OITO POEMAS





CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.





TRAGÉDIA BRASILEIRA

 

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade

Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituta, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontra-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.





A MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE

Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.

Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa ou outra.
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue,
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente.

Mas agora não sinto a sua falta
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.

Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.  


 

 

PNEUMOTÓRAX

 

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire.
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.





PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.





MOMENTO NUM CAFÉ

 

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraído

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida

Confiantes na vida.

 

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.





VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe - d’água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.





ANTOLOGIA

 

A vida

Não vale a pena e a dor de ser vivida.

Os corpos se entendem mas as almas não.

A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

 

Vou-me embora p’ra Pasárgada!

Aqui não sou feliz.

Quero esquecer tudo:

– A dor de ser homem...

Este anseio infinito e vão

De possuir o que me possui.

 

Quero descansar

Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...

Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.

 

Quero descansar.

Morrer.

Morrer de corpo e alma.

Completamente.

(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

 

Quando a indesejada das gentes chegar

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.