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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A TETA RACIONAL

Em um universo literário, onde se misturam dezenas de questões relacionadas com os afetos familiares (principalmente as que envolvem mães, pais e filhos), os dez contos que integram A Teta Racional, de Giovana Madalosso, conseguem quebrar a espinha dorsal dos sentimentos e, simultaneamente, derrubar o muro que separa a hipocrisia de algumas das questões mais perturbadoras. Em cada uma das narrativas, com uma sinceridade que assusta os leitores despreparados para enfrentar as catástrofes, a(s) narradora(s) abre(m) a caixa de ferramentas e produz(em) um estrago considerável.

Contemplando a volatilidade dos afetos, a maternidade em primeiro plano, não há a mínima preocupação com o endeusamento do que está sendo descrito. A vida como ela é exige doses maciças de honestidade. Sem desculpas esfarrapadas, sem condescendências, sem estereótipos. Algo similar ao dizer que Mater Dolorosa é a puta que o pariu. Sem cuspe. Sem elegância. Da forma mais crua possível. Postura de lutador de boxe. Ignorando o sossego. Ou o anestésico. No máximo, revelando as benesses terapêuticas do distribuir uma meia dúzia de bons socos na acomodação.       

A maternidade coloca em xeque a organização do mundo. Ou melhor, coloca em dúvida a importância dos homens. Essa é ideia que movimenta XX + XY, conto que apresenta a perspectiva da mulher que, depois da gravidez, recusando a ajuda do pai da criança, precisa cuidar do filho. Ela escolhe esse percurso – sem emitir lamentos. Ao mesmo tempo, ao narrar a aventura, não esconde as dificuldades – que surgem a todo instante. Precisando enfrentar um mundo antagônico, onde trocar fraldas e, no meio da noite, tentar fazer a criança parar de chorar são questões diárias, a mulher consegue sobreviver. Apesar do cansaço. Ela descobre, da pior maneira possível, que na vida não há trégua. Nada é mais complicado do que ser autossuficiente e bem-sucedida ao mesmo tempo.  

Às vezes eu ficava olhando para o meu filho e pensando o que ia dizer quando ele me perguntasse como conheci o pai dele. Ou, pior ainda, o que ia dizer se ele me perguntasse em que situação foi concebido. Porque a verdade, claro, não envolve flores nem serenatas. Tampouco amizade ou o singelo desejo de maternidade por trás de uma inseminação. A verdade, eu teria que dizer para ele, é que a mamãe andava tão a fim de dar que abriu as pernas para um cara de quem ela nem sabia o nome.


No conto homônimo ao título do livro, essa mesma mulher (ou outra) se supera diante dos problemas que surgem na segunda frente de batalha: o trabalho. Para demonstrar que é uma profissional competente, por alguns instantes precisa esquecer que do outro lado do espelho está a maternidade.   

Estou trancada no banheiro da agência ordenhando. Ajeito a peça plástica em volta do mamilo, aperto a válvula com força, vejo o leite esguichar pela cânula e cair dentro da mamadeira. Eu poderia fazer isso de olhos fechados. Poderia fazer isso de olhos fechados assobiando o hino do Brasil. Faço isso quatro vezes por dia, cinco vezes por semana. Depois guardo a mamadeira na geladeira da copa e, à noite, volto para casa carregando os frascos a tiracolo, como um entregador de leite. No dia seguinte, a babá serve tudo para o meu bebê.


Por que será que até amar tem que ser tão difícil?, pergunta a narradora, em um desses momentos em que tudo parece ser crise, tumulto, incerteza. Enquanto tenta entender esse impasse, surge em cena – como um doppelgänger – o enfrentamento com a própria mãe. Que, obviamente, conjuga outra cartilha. Quer dizer, mesmo naquilo em que são semelhantes, as duas mulheres possuem valores opostos. Em Suíte das Sobras, o conflito torna-se uma constante. Somente o improvável consegue reaproximar duas pessoas tão diferentes.          

Sentamos debaixo de um desses balanços. Eu sei por que ficamos o almoço todo em silencio, só ouvindo o balanço ranger, cansadas demais para puxar algum assunto que forjasse o nosso desconforto. Desde que acordamos, o clima entre nós estava estranho, uma espécie de ressaca do que dissemos e, principalmente, do que não chegamos a dizer uma para outra no farol. Além disso, não dava mais para esconder: havia dezesseis anos de afastamento entre nós. Era impressionante o quanto eu podia ser tão intima e tão distante de uma pessoa ao mesmo tempo. Enquanto comia, fiquei pensando sobre o que ela e minha irmã deviam conversar: roupas, negócios, amigos em comum, e que é a partir de estruturas assim, corriqueiras, que se constrói o amor.


Mesmo percebendo que a intolerância precisa ser afastada para que a intimidade surja, ainda há grandes dificuldades, muitas feridas abertas. Inexplicavelmente, o mesmo não acontece quando se trata do relacionamento da filha com o pai. Em Jardim, a cumplicidade aparece em tom menor, quase inadvertida, com a delicadeza de um bonsai.

A amizade – um tipo de afeto que não precisa se restringir às obrigações familiares –, ou melhor, a celebração da amizade está espelhada em A Paraguaia. Trafegado entre o logos (razão) e o pathos (paixão, sofrimento, dor), as duas amigas, colegas no curso de jornalismo, percebem que Eros tem as melhores cartas na mão (e na manga). Ou seja, elas procuram viver, enquanto podem, la loca vida loca dos bares, das festas, dos namoros inconsequentes.

Entramos no carro e abrimos o embrulho. A taca era enorme, valia pelo menos o dobro do que pagamos. A paraguaia se olhou no retrovisor. Perguntei se ela estava pensando em sair com o Cadão. Quem sabe, ela disse. Contei para ela sobre a maconha dentro da caixa de som. Ela riu. Se for sair com ele, vai ser só uma vez, apenas para dizer que tenho um traficante sem dedo no currículo. E aumentou o som.


São tantos equívocos, são tantas as complicações, que o desfecho desse conto – muitos anos depois – parece um clichê. Obviamente, há sutilezas. Nem tudo pode ser definido pela primeira impressão.

O estranhamento (momento de perplexidade) surge em Roleta-Russa” e Idiota Outra Vez, duas narrativas que colocam em discussão a homossexualidade masculina. Na primeira, uma travesti, HIV positivo, é convidada para participar de uma orgia. Na segunda, situada na Turquia, a identidade religiosa contrasta com a identidade de gênero. Nos dois casos, falta felicidade para esses personagens – eles não pertencem ao espaço em que se movimentam.          


Embora o enredo de cada um dos dez contos de A Teta Racional não possa ser classificado como inovador, a grande qualidade do livro está no não-conformismo de seus personagens que (unindo raiva e afeto) em nenhum momento desistem de fracassar socialmente – e da maneira mais esplendorosa possível.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O CASAMENTO: CINQUENTA FRASES (MALDOSAS)


– Nenhum homem deveria se casar antes de ter estudado anatomia e dissecado o corpo de uma mulher. (Honoré de Balzac)

– Há casamentos bons, mas não os há deliciosos. (François de La Rochefoucauld)

– O casamento é a única aventura ao alcance dos covardes. (Voltaire)

– O casamento é uma tragédia em dois atos: civil e religioso. (Barão de Itararé)

– Todas as tragédias terminam em morte e todas as comédias em casamento. (Lord Byron)

– A felicidade conjugal é extremamente difícil. Mas, quando existe, é extraconjugal! (Millôr Fernandes)

– O fardo do casamento é tão pesado que precisa de dois para carregá-lo – às vezes, três. (Alexandre Dumas, fils)

– Há homens e mulheres que fazem do casamento uma oportunidade de adultério. (Carlos Drummond de Andrade)

– Se você tem medo da solidão, não se case. (Anton Tchekhov)

– Sabe o que significa voltar para casa à noite e encontrar uma mulher que lhe dá amor, afeto e ternura? Significa que você entrou na casa errada, só isso. (Henny Youngman)

– Acredito no nó indissolúvel do casamento – desde que ele esteja bem atado em volta do pescoço da mulher. (W. C. Fields)

– O melhor no casamento são as brigas. O resto é mais ou menos. (Thornton Wilder)

– O casamento já levou mais de um homem ao sexo. (Peter de Vries)

– O único encanto do casamento é tornar uma vida de decepções algo absolutamente imprescindível para ambas as partes. (Oscar Wilde)

– A tragédia do casamento é que, enquanto todas as mulheres se casam pensando que seu homem irá mudar, todos os homens se casam pensando que sua mulher nunca mudará. Ambos invariavelmente se desapontam. (Len Deighton)

– Voltar a casar é o triunfo da esperança sobre a experiência. (Samuel Johnson)

– O problema com certas mulheres é que elas ficam excitadas com qualquer bobagem – e aí se casam com ela. (Cher)

– Casar-se é como comprar uma coisa que se passou anos admirando na vitrine. Você pode adorar a compra e só então descobrir que ela não combina com o resto da casa. (Jean Kerr)

– O casamento é uma aliança entre duas pessoas – uma que nunca se lembra dos aniversários e outra que nunca os esquece. (Ogden Nash) 

– Quando uma mulher se casa, troca as atenções de muitos homens pela desatenção de um só. (Helen Rowland)

– O amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira. É preciso muito cinismo para que um homem deseje a mãe de seus próprios filhos. (Nelson Rodrigues)

– Quando estiver a fim de se casar com um sujeito, convide a ex-mulher dele para almoçar. (Shelley Winters)

– O casamento ocasiona múltiplas dores, mas o celibato não oferece nenhum prazer. (Samuel Johnson)

– Quando se vê com quem algumas mulheres se casaram, dá para entender como elas odeiam ter que trabalhar para viver. (Helen Rowland)

Algumas pessoas querem saber qual é o segredo do nosso longo casamento. É simples: jantamos fora duas noites por semana. Um belo jantar à luz de velas, com música suave, perfeita para dançar. Ela vai às terças-feiras e eu às sextas. (Henny Youngman)

– Um dos objetivos da benção nupcial é a de punir ambas as partes. (H. L. Mencken)

– Nunca me casei, porque nunca precisei. Tenho três bichinhos que, juntos, perfazem um marido: um cachorro que rosna de manhã, um papagaio que fala palavrões o dia todo e um gato que volta de madrugada para casa. (Maria Corelli)

– Todo homem se descobre sete anos mais velho na manhã seguinte ao casamento. (Francis Bacon)

– Fui casado por um juiz. Deveria ter pedido um júri. (George Burns)

– O casamento vem do amor, assim como o vinagre do vinho. (Lord Byron)

– O amor é uma insanidade temporária que se cura com o casamento. (Ambrose Bierce)

– Casamento é legal, mas acho que é levar o amor um pouco longe demais. (Texas Guinam)


– O casamento é um souvenir do amor. (Helen Rowland)

– O casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de puxar uma enguia. (Leonardo da Vinci)

– Quanto mais um homem sabe, e quanto mais viaja, mais arriscado está de casar com uma moça da roça. (George Bernard Shaw)

– O casamento é uma cerimônia em que dois se tornam um, um se torna nada e nada se torna suportável. (Ambrose Bierce)

– O casamento é o meio de vida mais comum para as mulheres – e a quantidade de sexo indesejado que elas suportam deve ser maior no casamento do que na prostituição. (Bertrand Russell)

– Se os homens soubessem como as mulheres passam o tempo quando estão sozinhas, nunca se casariam. (O. Henry)

– Minha mulher vai ficar uma fera quando souber. Ela não me permite sair por aí casando com outras pessoas. (Damon Runyon)


– O casamento é uma cerimonia em que anéis são colocados, um no dedo da garota, e, outro, no nariz do cavalheiro. (Herbert Spencer)

– Um homem e uma mulher se casam porque não sabem o que fazer consigo mesmos. (Anton Tchekhov)

– Resta saber se o casamento é um dos sete sacramentos ou um dos sete pecados capitais. (John Dryden)

– Todos os casamentos são felizes. Tentar viver juntos depois é que causa os problemas. (Shelley Winters)

– As pessoas falam muitas bobagens sobre casamentos felizes! O homem pode ser feliz com qualquer mulher, contanto que não a ame. (Oscar Wilde)

– Muitos homens se casam por cansaço; as mulheres, por curiosidade. Ambos se decepcionam. (Oscar Wilde)

– Não consigo me acasalar em cativeiro. (Gloria Steinem)


– A opulência e a felicidade um dia se casaram – quando a relação acabou a opulência estava na miséria e a felicidade, desgraçada. (Millôr Fernandes)

– Claro que o casamento é apenas um hábito – péssimo, por sinal. Mas o problema é que lamentamos a perda até mesmo dos piores hábitos. Talvez sejam estes que mais nos fazem falta: são parte essencial de nossa personalidade. (Oscar Wilde)

– O casamento não se compõe apenas de uma comunhão espiritual e de abraços apaixonados; compõe-se também de três refeições por dia, lavar a louça e lembrar-se de pôr o lixo para fora. (Joyce Brothers)

– O casamento é a última forma de escravidão legalmente aceita. (do filme 27 Dresses)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

MANSFIELD PARK, DE JANE AUSTEN, EM QUARENTA E TRÊS FRAGMENTOS

– Não há no mundo tantos homens ricos quanto mulheres bonitas que os mereçam.

– Ela sabia tão bem poupar o seu quanto gastar o dos amigos.

– Se esse homem não tivesse doze mil [libras] por ano, seria um sujeito bastante estúpido.

– Todos devem pensar numa futura união, desde que o casamento lhes traga algumas vantagens.

– E como tudo se aproveita quando o amor começa a insinuar-se, valia a pena apreciar até a bandeja de sanduíches que o Sr. Grant fazia a honra de servir.

– Devia fazer muito bem aos chefes de família obrigarem as pobres criadas e aos lacaios a abandonarem o trabalho e o prazer para fazer as orações aqui duas vezes por dia, enquanto eles inventavam desculpas para se ausentar.

– O nada da conversa tem suas gradações, espero, assim como o nunca.

– Entrar na faculdade de Direito! Fala com a mesma naturalidade como se dissesse para eu entrar neste bosque.

– Sou um ser muito prático, franco, e talvez me expressasse de maneira infeliz numa conversa de meia hora, repleta de argumentos engenhosos, e não conseguisse dizer nada que me fizesse sobressair.

– Sentar-me à sombra num lindo dia, vendo tanto verdor é o melhor remédio.

– A inovação, se não é um erro pelo seu significado, sempre o será pela despesa.

– Aproximou-se com olhares de alegria que pareciam um insulto.

– A presteza e o silêncio ocultavam-lhe a mente ausente e ansiosa.

– Ciúme e amargura ficaram em suspenso: o egoísmo perdeu-se na causa comum.

– O fato de Henry Crawford segurar-lhe a mão em um momento como aquele, um momento de prova e importância tão singulares, valia séculos de dúvida e ansiedade.

– Tentava participar do alvoroço sem nada ter com o que se preocupar, esforçando-se por se fazer imprescindível numa ocasião que requeria apenas tranquilidade e silêncio.

– Foi obrigado a dar-se por satisfeito com a convicção de que quando se tratava do prazer momentâneo daqueles aos quais amava, a bondade dela às vezes lhe superava o bom senso.

– Parecia quase tão receosa de ser notada e elogiada quanto às outras mulheres têm de ser desdenhadas.

– Tornou-se fria o bastante para buscar todo o reconforto que lhe podiam proporcionar o orgulho e a vingança.

– Em algumas regiões sabemos que a variedade consiste nas árvores que mudam as folhas, mas nem por isso é menos surpreendente que o mesmo solo e o mesmo sol nutram plantas que diferem na regra e lei básicas de sua existência.

– Nem sempre se devem julgar nossas estações pelo calendário. Às vezes, podem-se tomar liberdades maiores em novembro que em maio.

– Uma grande renda é a melhor receita para a felicidade.

– Seja honesto e pobre, por quaisquer meios, mas não o invejarei. Acredito que sequer o respeitarei. Tenho muito mais respeito pelos que são honestos e ricos.

– Seu grau de respeito pela honestidade, do rico ou do pobre, é precisamente com o que não tenho de me preocupar. Não pretendo ser pobre. A pobreza é a exata situação que decidi combater. A honestidade, em um nível intermediário, na situação mediana em relação às circunstancias materiais, constitui tudo pelo qual almejo que você não encare com desprezo.

– Nada me diverte mais do que ver a tranquilidade com que todos estipulam a riqueza dos que têm menos que eles próprios.

– O amor fraternal às vezes quase tudo é, em outras, pior que nada.

– Tente encarar como uma dessas adversidades que todo marinheiro enfrenta, como o mau tempo e a vida difícil, com a vantagem de que terminará um dia, chegará um tempo em que não terá de suportar nada parecido.

– A ausência de alguns não deve impedir a diversão de outros.

– Mas acabamos por conhecer Shakespeare sem saber como. Faz parte da natureza de todo inglês. Seus pensamentos e belezas encontram-se tão espalhados pelo mundo todo que roçamos neles em toda parte e nos tornamos íntimos do dramaturgo e poeta por instinto. Ninguém com um pouco de cérebro abre grande parte de uma de suas obras sem logo captar-lhe o fluxo dos pensamentos.

– Creio que não deveria ser considerado como algo certo que um homem tem de ser aceito necessariamente por toda mulher de quem por acaso venha ele a gostar.

– Ainda mostrava uma mente extraviada e aturdida, e sem a menor desconfiança de que fosse assim; sombria, mas imaginando que irradiava luz.

– Sua felicidade era do tipo calmo, profundo, intimo e, embora jamais uma tagarela, nos momentos em que tinha sentimentos mais fortes, sempre tendia ao silêncio.

Tentava ser útil, a irmã percebia, e que tudo, ruim como era, seria pior sem sua intervenção.

– Não sinto ciúmes de individuo algum. O que me dá ciúmes é a influência do mundo elegante e opulento, são os hábitos luxuosos que temo.

– Ela criou para seu uso um estilo muito respeitável e detalhista em lugares-comuns, de modo que lhe bastava um assunto insignificante para ampliá-lo.

– Era como uma brincadeira de sentir medo.

– Vivia de cartas e passava o tempo todo entre os sofrimentos de hoje e aguardava os de amanhã.

– Há tanto tempo separadas e situadas em posições sociais tão diferentes, os laços de sangue se haviam transformado em pouco mais que nada.


– Verniz e dourados podem esconder muitas manchas.

– Varria toda a paisagem com o olhar, os prados e plantações do mais viçoso verde; as árvores, embora ainda não de todo coberta de folhas, mostravam-se naquele estágio encantador em que a gente sabe que mais beleza se aproxima e em que, embora muito fato se proporcione à visão, muito mais permanece para a imaginação.

– Do fundo do coração, desejava-lhe o bem e, com toda a sinceridade, esperava que ela logo aprendesse a pensar com mais correção e não tivesse de dever o mais valioso dos conhecimentos que qualquer um de nós pode adquirir: o conhecimento de nós mesmos e de nossas obrigações, às lições de desgosto.

– Uma felicidade tão grande que, se não houvesse deixado amargas lembranças depois da partida, talvez ele corresse o perigo de aprender a abençoar o mal que proporcionara tanto bem.

– Curiosidade e vaidade se uniram, e a tentação de um prazer imediato foi forte demais para um espirito desabituado a fazer qualquer sacrifício à retidão.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O FILHO DE MACHADO DE ASSIS

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), considerado como a figura mais emblemática da literatura brasileira, costuma ser transformado em protagonista em diversas narrativas contemporâneas. Faz parte do show (embora seja difícil saber se isso é bônus ou ônus). Basta lembrar, entre outros, Memorial do Fim (1991), de Haroldo Maranhão, Por Onde Andará Machado de Assis? (2004), de Ayrton Marcondes, e Machado (2016), de Silviano Santiago.

A novela O Filho de Machado de Assis, escrita por Luiz Vilela, pretende (na medida do possível) centrar as luzes dos holofotes literários em uma dos muitas versões historiográficas que margeiam a vida do “Bruxo do Cosme Velho”. Tentando desmentir a famosa frase que encerra Memórias Póstumas de Brás Cubas (– Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria), muitos ficcionistas (disfarçados de historiadores) imaginam as possibilidades que justificariam a tese de que o DNA do célebre escritor não foi extinto. Entre tantas maluquices, não falta quem atribua duvidosa paternidade ao Mário de Alencar, que poderia ser o fruto de uma “ligação perigosa” entre Joaquim Maria e Georgiana Augusta, esposa de José de Alencar. Como, até o momento, ninguém conseguiu provar nada, as versões continuam adquirindo consistência.

Luiz Vilela
A proposta da narrativa escrita por Luiz Vilela parte de outra hipótese – embora similar. O professor de literatura Simão (Bacamarte?), em conversa com Telêmaco (mais conhecido como “Mac”), o seu discípulo favorito, relata uma descoberta. Durante uma pesquisa que estava fazendo na Biblioteca Nacional, entre as páginas de inúmeros livros e revistas, Simão encontrou... Encontrou algo que, se comprovado, poderia mudar a biografia de Machado de Assis. A possibilidade de conjunção carnal, uma aventura da mocidade, do futuro Presidente da Academia Brasileira de Letras com uma negra teria gerado um descendente:

“Pois é. Negro da cor de azeviche. E esse – se não estou errado em minhas análises –, esse foi o principal motivo de ter o Machado ocultado, quem sabe até renegado por toda a vida, o filho.”


Descartada a discussão sobre o embranquecer de Machado de Assis (uma questão notória – e pouco glamorosa – na biografia do escritor), a ideia apresentada por Simão parece estar assentada em areia movediça. Sem acrescentar um único fato relevante, praticando a nobre arte da dissimulação, do uso das reticências e ambiguidades, o professor vai enrolando. São 105 páginas de muito blábláblá e nenhuma ação. O aluno queria estar na praia, na companhia da namorada, mas precisa ficar ali, no escritório de Simão, ouvindo a suave música do delírio.

Joaquim Maria Machado de Assis
As páginas finais da novela completam o ciclo do previsível. Depois que os dois homens se despedem, o aluno parte em uma viagem longa. Quando regressa, descobre que o Mestre faleceu.

A novidade, o filho de Machado, também foi enterrada. Como se nunca tivesse existido.

O Filho de Machado de Assis é um livro divertido, porém inócuo. A melhor lição que o leitor obtém quando termina a leitura é que, nos bons livros, não basta a habilidade de produzir diálogos de qualidade. É necessário mais. Muito mais. O livro de Luiz Vilela fica devendo.


TRECHO ESCOLHIDO


Toda conversa tem os seus pontos mortos, e havíamos chegado a um deles, com os dois de repente calados.

Essa hora um passarinho começou a cantar na árvore em frente à janela, nos chamando a atenção.

“É uma cotovia?”, perguntou o professor.

“Acho que é um sabiá, professor; mas como não sou otorrino...”

“Ornitólogo”, ele disse.

“Isso”, eu disse, “ornitólogo. Foi um ato falho. É que eu estava pensando aqui no otorrino que eu vou ter de consultar para a minha alergia...”

Uma mentira nunca fica só nela, já disse alguém. Se não disse, digo eu aqui agora...

“Ninguém”, disse meio de repente o professor, “ninguém pode estar tranquilo em suas certezas. Ainda mais no que se chama ‘verdade histórica’.”

“Por quê, professor?”, eu perguntei.

“Acha-se que uma coisa é verdadeira”, ele continuou, sem me responder, “e de repente sai um velho do fundo de uma biblioteca mais velha ainda e: ‘Ei, pessoal, não é nada disso que vocês pensavam; a história é bem diferente!’”

Eu ri. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

RITA LEE: UMA AUTOBIOGRAFIA

Desculpe o auê / Eu não queria magoar você, canta a paulistana com descendência estadunidense, imaginando que o triângulo escaleno “sexo, drogas e rock-and-roll” (em alguns momentos mais drogas do que sexo ou róquinrol) pode definir uma ou várias vidas – principalmente se a(s) vida(s) em questão for(em) de alguma(s) personalidade(s) do mundo musical.

Evidentemente, quando decidiu escrever (?!?!) a sua Autobiografia, Rita Lee Jones deve ter imaginado que alguém (quem?) ficaria ressentido, porque a impunidade não rima com a verdade (ou a mentira). E, em um mundo onde todos têm algum tipo de culpa no cartório, aquele que decide brincar de “verdade ou consequência” costuma cometer o pecado da inconfidência, e inevitavelmente deixa escapar, aqui e ali, alguma historia suja, daquelas que deveriam estar mortas e enterradas. Ressuscitada do esquecimentoessa deslealdade mancha de forma definitiva a reputação que nunca foi imaculada – mas que confiava na pouca memória dos sobreviventes daqueles tempos em que a loucura adolescente se misturava com a irresponsabilidade artística. Pois,...

Para quem não dispõe do necessário conhecimento sobre a cena musical brasileira nos anos 70, 80 e 90 do século passado, a Autobiografia de Rita Lee oferece a oportunidade da leitura como se fosse um texto de ficção. E isso não pode (nem deve) ser considerado um problema. Muito pelo contrário. Ela conseguiu utilizar uma linguagem bastante fluída, costurada por milhares de referências da cultura pop, e entrecortada pela autocomiseração, pela confissão pública de seus excessos com drogas (LSD, maconha, álcool). Os versos Foi quando me pai me disse / “Filha, você é a ovelha negra / da família” compõem a trilha sonora de uma vida agitada, repleta de altos e baixos, provavelmente mais baixos do que altos. Infelizmente, esse truque literário também serve para esconder muitas histórias escabrosas. Principalmente aquelas que se referem à vida familiar. Elogios são distribuídos a granel para o marido, Roberto de Carvalho.  O caso dos três filhos (que, acredite se quiser, jamais cometeram quaisquer deslizes) também não apresenta nenhuma novidade: com a mãe e o pai vivendo na estrada, um show atrás do outro, provavelmente o casal nunca conheceu os herdeiros (que foram criados por "agregados" e empregadas). De qualquer forma, salvo um ou dois momentos em que o filho do meio reclama do modo de vida autodestrutivo da mãe, uma breve separação física do marido e as dezenas de entradas e saídas de clínicas de reabilitação, a ideia geral do texto é a de transmitir a imagem de que a vida doméstica estava domesticada. Só os ingênuos (e os fãs) acreditam nisso.

Por outro lado, as farpas mais perigosas são disparadas contra o grupo Os Mutantes, as cantoras “viciadas no vício” e Ezequiel Neves.

Os Mutantes, 1968 (?)
Sobre os ex-companheiros de bagunça musical, Arnaldo Baptista e Sergio Dias, Rita Lee prefere atacar no varejo. Nas picuinhas. Não perdoa a falta de higiene do grupo (ela tem “nojinhos”!). Também critica (mas não muito!) o desbunde geral, as festas, o excesso. E, casualmente, deixa escapar alguns comentários sobre a vida sexual de Arnaldo (com quem foi casada): Os Mutas ensaiavam na sala da sua casa por ser a mais espaçosa, sempre lotada de instrumentálias e groupies. Nas pausas para “descanso”, Loki comia todas elas, enquanto eu dava umas voltas com Danny e fingia não saber, pois a tática arnaldense de sedução era justamente dar a entender que me corneava escondido. Hum,... O que será que o Sigmundinho diria sobre isso?

No geral, quando o assunto é o início da vida musical do grupo, há um visível pisar no freio. Rita Lee não quer atropelar ninguém. No máximo (!!) dar um susto naqueles que caminham despreocupados pela calçada. E isso ninguém (nem ela) pode negar. 

A expressão “viciadas no vício” foi invenção de Elis Regina. Imediatamente adotada por sua “melhor amiga”, permite adjetivar – sem designar nominalmente – as cantoras lésbicas. O divertido desse drible está na iconografia que acompanha o livro. Entre as páginas 224 e 225 há um dos quatro encartes fotográficos que ilustram o volume. Qualquer um pode somar dois mais dois e ver quem foi “humilhada e ofendida” pelas duas “certinhas” (do Lalau?).

Ezequiel Neves e Nelson Mota, 1979
Ezequiel Neves, diversas vezes citado pelos dois apelidos, Abominável das Neves e Rasputinho (trocadilho que mistura Grigoriy Yefimovich Rasputin [1869-1916] e a opção sexual do famoso produtor e crítico musical), é, definitivamente, o alvo mais visado, caso clássico de ódio à primeira vista. Mútuo. Foi ele que espalhou o boato que Rita estava com leucemia. E que o seu filho mais velho tinha pai desconhecido. Além disso, ele foi o responsável por várias outras maldades. Umas bastante apimentadas; outras, menos palatáveis. Como compete aos ressentidos, a vingança é um prato que se serve frio: Só pra constar: entrei na vaquinha quando o Abominável estava terminal num hospital e precisou da caridade de quem ele detestava, a minha. A gente “somos” ruins, mas a gente “temos” bom coração.

No setor de agrados, carinhos e festinhas, há o endeusamento das figurinhas carimbadas: Elis Regina, João Gilberto, Chacrinha, Rogério Duprat, Chico Buarque, Caetano Veloso e, os mais agraciados de todos, Gilberto Gil e Hebe Camargo. Não há uma linha sobre eles que os desabone ou permita uma leitura mais crítica. Também são criaturas perfeitas as duas irmãs, o pai e a mãe. Na categoria dos seres imprescindíveis estão os inúmeros animais (cães, gatos, onças, tartarugas) que foram adotados pela cantora, com destaque para a cadela Danny.

Jorge Ben, Caetano, Gil, Gal e Os Mutantes
No geral, Rita Lee: Uma Autobiografia é um livro careta. Falta molho. Falta conteúdo. O leitor termina as 269 páginas de texto imaginando quantas centenas de histórias interessantes foram omitidas. O caso da primeira prisão de Rita, por exemplo, está contado de maneira tão suave, tão história da carochinha, que parece que a cantora passou cerca de 50 dias em um spa, mil tratamentos de beleza, o descanso da guerreira. Mesmo se for verdade (e provavelmente o é) que a prisão foi uma armação da polícia, que estava se vingando por um depoimento que Rita fez contra policiais que haviam assassinado um menino durante um show, todo esse trecho do livro parece paranoia de maconheira, pois, nessa época, os índices de consumo da "erva maldita" eram estratosféricos e dia menos dia a casa iria cair, nem mesmo ela é capaz de negar essa obviedade. Em relação à segunda prisão, as páginas 263-264 estão riscadas, a versão da cantora está proibida de vir a publico. Provavelmente, há um processo criminal em andamento.

Outro fator que incomoda é a ostentação. As várias músicas que fizeram parte das trilhas sonoras das novelas da Rede Globo são citadas como se fossem a melhor parte de sua carreira artística. Hum... Essa submissão aos ditames do mercado capitalista parece ser uma confissão enviesada de que as discussões sobre a qualidade (seja lá o que isso for!) musical estão atreladas a um bom padrinho.


E então, terminada a leitura do livro, sobra o quê? Pouco, muito pouco. Umas duas ou três boas piadas e meia dúzia de comentários sobre os bastidores da música popular brasileira. O resto se assemelha a uma plantação de abobrinhas. O leitor merecia mais do que isso.