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terça-feira, 27 de agosto de 2013

A MORTE COMO EFEITO COLATERAL

O Brasil desconhece a literatura da Argentina. Frequentemente, fazemos questão de ignorar nuestros hermanos – exceto aqueles que conquistaram um lugar no Olimpo literário: Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Roberto Arlt, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato, Macedonio Fernández. Algumas vezes, não muitas, aceitamos que há um mínimo de talento em meia dúzia de semideuses: Ricardo Piglia, Martín Kohan, Alan Pauls, Juan José Saer, Mempo Giardinelli e Cesar Aira. Como se fossem filhos de um vizinho que brigou com nossos pais, fazemos de conta que os demais não existem. Na pior das hipóteses, talvez por apresentarem a face criminal dos filhos bastardos, em inconteste ato de generosidade verde-anil, cabe-nos fornecer abrigo para escritores do nível de Tomás Eloy Martinez, Rodrigo Fresán e Rodolfo Fogwill. Raríssimas vezes alguém se lembra de Osvaldo Soriano, talvez o mais divertido de todos os escritores argentinos. Alguns anos atrás, por força do marketing e da cegueira masculina, uma legião declarou adoração por Pola Oloixarac – esquecendo que a beleza é transitória, ao contrário do talento.

Nesse ritmo um pouco desafinado, que não se decide por samba, tango ou jazz, Ana María Shua está destinada à exclusão. Um de seus romances, A Morte como Efeito Colateral, foi publicado no Brasil em 2004. Passou completamente despercebido.
Ana Mária Shua

Ernesto (Eni) Kollody assiste a lenta morte do pai. Câncer no intestino. Temporada no hospital, várias cirurgias, pós-operatórios dilacerantes. Em um lugar não tão secreto do meu coração, eu desejei para papai uma morte muito doce, e nem por isso me senti culpado. O fim de tudo, a tranquilidade desejada, não acontece. Ao contrário, a vida se estende por muito tempo, uma eternidade retratada em 208 páginas, sem economizar detalhes ou sentimentos. Não é fácil para Eni aceitar que a história humana funciona em outro diapasão, diferente daquele que tinha sido imaginado. Essa falha nos planos multiplica os elementos desencontrados do enredo. Alguns bastante desagradáveis. O fracasso possui razoável nitidez, principalmente quando, depois de tantos anos, confrontado com a força paterna reflete aquilo que costuma ser negado com veemência.  Estou próximo demais da velhice para pensar na morte – em qualquer morte – apenas como alívio. Tenho medo.

Buenos Aires. Futuro não muito distante. Mundo apocalíptico. Classes econômicas em constante atrito. Ricos escondidos em condomínios fechados. Vivendo em separado dos pobres – que a todo instante saem às ruas para morrer pelo que nunca terão. A violência, amparada pelas drogas e a ausência do Estado, insufla a barbárie – uma palavra que causa calafrios mesmo antes de ser pronunciada.

Personagem-narrador, Eni dirige o seu relato para uma mulher ausente. O monólogo interior disfarçado como se fosse uma longa carta, entrecortada por capítulos, reflete as sutilezas que devoram o discurso. A descrição pretérita supera os momentos de ação. As pausas no ritmo permitem a respiração, um golpe astuto para não sufocar o leitor com tamanha angústia. A proposta filosófica do pensar e falar se destaca e adquire relevância mais significativa do que o fazer. Assim era o nosso contato: a paixão era sua, os excessos emocionais; a mim correspondia certa frieza sorridente, uma calma de esgrima intelectual que me permitia observar seus flancos descobertos, e poderia ter me conduzido à estocada definitiva se não fosse porque, de repente, por uma hábil torção de discurso, seu entusiasmo fazia voar as palavras-espadas pelo ar e já não era esgrima, mas uma luta de corpo a corpo na qual você sempre ganhava.

Eni, ao mesmo tempo em que descreve a tirania patriarcal, a demência da mãe, a ausência de maturidade da irmã, vai tecendo a história da decadência familiar. Com afirmações contundentes, essa espécie de boneca enrugada, como um trapo mal passado, de cor amarelada e olhos desesperados, que tinha sido nossa mãe, estabelece o andamento sem comiseração do seu relato. Quer transmitir a quem endereça o seu texto o máximo de “verdade” que seja possível. 

Maquiador profissional, Eni está escrevendo um roteiro de cinema. Quem o contratou foi Goransky – um milionário que vive imerso em seu próprio mundo de ficção, entre as imagens dos seus sonhos. Ou seja, um sujeito que se realiza intelectualmente no cinema que nunca filmará. Mas que se diverte imaginando essa possibilidade. É através do imobilismo que imagina filmes de aventuras, romances, ficções científicas – todos situados na Antártida. O roteiro, peça mutante, que nunca assume forma objetiva, instrumentaliza a brincadeira.

Meu pai cheira a merda. Entre os odores medicinais e antissépticos, odores perfumosos, da Unidade de Terapia Intensiva, é possível sentir um suave rastro que vai se acentuando ao se aproximar de sua cama. No mundo das sensações, a morte se apresenta de maneiras diferentes. Talvez a mais cruel seja a que chamamos “vida”. Sofrimento, reclamações, desgostos e suplícios se misturam em proporções desiguais. Contra isso não há nenhum anestésico. A partir de certa idade, de certo grau de invalidez, a verdadeira prisão é o corpo e qualquer outro confinamento não é nada mais que uma compensação menor.

Quando o pai pede para morrer em casa, Eni – por alguma razão pouco plausível ou por desejo de vingança inconsciente – resolve sequestrá-lo da Casa de Repouso. Quer oferecer uma morte digna ao velho torturador. A sequência dos eventos mostra que – mais uma vez – nada ocorre como planejado. De qualquer forma, uma metáfora significativa da degradação humana.

A Morte como Efeito Colateral, exercício técnico de romance realista, apresenta uma surpresa a cada página. E todas – as surpresas e as páginas – são ótimas. O que significa dizer – embora isso nada queira dizer – que o patético, assim como o humor negro, acompanha a morte.



TRECHO ESCOLHIDO


Em meu desespero de compartilhar cm você tudo o que nos era possível compartilhar, falei muitas vezes do meu pai. Você me ouvia sem me escutar, sem impaciência entretanto, e eu nunca consegui adivinhar se você ficava entediada. Em compensação, eu me precipitava sobre cada resto, cada vaga palavra dita por você que pudesse me dar mais informações sobre sua vida, seus gostos, sua história. Saber, por exemplo, que você sempre, desde muito nova, odiou a cor verde foi um dado surpreendente. Cada vez que escolhia um presente para você, nosso segredo me obrigava a refletir sobre sua personalidade: meus presentes clandestinos tinham que passar por escolhas suas. Era fácil presenteá-la com livros, discos, vídeos de clássicos do cinema ou desses filmes velhos e ruins que por algum motivo nós dois recordávamos e que eu sabia como conseguir. Mas às vezes eu precisava dar-lhe um presente que me levasse mais para perto do seu corpo. Eu me decidia, então, por uma echarpe, um cinto, uma camisa de seda de qualquer cor, desejando que você apreciasse com quanta intensidade eu evitava o verde.

Eu falei muitas vezes do meu pai, mas as palavras impõem limites. É preciso ter participado – por engano ou interesse – nos jogos que meu pai propõe, e nos quais só ele ganha, para entender certas estruturas da realidade que a linguagem não pode imitar. Falei demais: era lógico que o poder dele sobre mim aguçava sua curiosidade. Descansando com sua cabeça sobre meu ombro e um meio sorriso distraído, você me escutava muito mais e muito melhor do que eu nunca me atrevi a desejar.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

MEU CORAÇÃO DE PEDRA-POMES

Wanda Escapulária, 19 anos, coração puro como o gelo, adora sexo. Autointitulada Lawanda (pronúncia correta: Laúanda; pronúncia errada: Lavanda), imagina que o encontro entre uma vagina bem lubrificada e um pau duro resulta em fortuna, beleza, gozo. Sabe que viver está relacionado com o usufruir desse doce suplício. Tanto que diz: caminho rebolando, como qualquer mulher que aceitaria ser infeliz para sempre por ser bem penetrada. Sem remorsos, sem responsabilidades, sem pecados ou beijos gelados. Prefere os molhados – saliva, excitação, arrepios. Sempre restará como alternativa, nos momentos de crise afetiva ou econômica, trabalhar em um bordel.

Meu Coração de Pedra-Pomes não é romance pornográfico. Enganou-se quem pensou tal bobagem. Com o narizinho empinado de princesa etrusca, desbocada, sem papas na língua, que a língua está reservada para outras utilidades, outros sabores, Lawanda não conjuga corretamente as inúmeras declinações do erotismo comercial. Principalmente naqueles momentos em que arremessa engraçados coquetéis Molotov nas 109 páginas em que protagoniza e ironiza os cinquenta tons de fruição literária. Meu coração é um bandido, até a mim tem traído, deixa escapar em momento sentimental. Foda-se quem aposta nas boas maneiras e no processo civilizatório. Que vá para a puta que o pariu quem imagina que primeiras, segundas, terceiras impressões, fantasias, miragens, utopias, significam alguma coisa.

A matéria humana, carne e ossos, cérebro e alma, exige calma em qualquer hora. Mesmo quando percebe que Há certas manias incompartilháveis. Adeus socialismo barato. Hello, glamour! Poética imagem. Segredinho particular. Sem romance as pessoas se tornam esquecíveis. Para ser lembrado nesse vale de lágrimas urge desfilar pelas passarelas carcomidas da futilidade burguesa.

Foda mal dada é um perigo para o humor, explica Lawanda, aquela que adora ser arregaçada por José Júnior, o amante adúltero que a faz gozar com fúria bíblica. Quando ele me come de quatro, pode ver suas pendências. Depois de gozar, chora e jura voltar para a mulher original sem pecado capital. Os homens são todos iguais – embora diferentes.

Lawanda, aquela que perdeu as chaves, a carteira, o relógio. Tudo, menos a razão, talvez esteja internada no hospital, um lugar que tem um cheiro de vidas infelizes de cinema e onde, por diversos motivos, os doentes param seus gemidos e reclamos e assistem, incrédulos, ao (...) espetáculo. Trabalha como faxineira. Esfregão, balde d’água, desinfetante. O chão brilhando. Como exige Lucrécia, a cruel chefe do serviço de limpeza.

Nas horas vagas, Lawanda exerce a mui digna e rentável profissão de contrabandista. Frango à passarinho, batatinha, refrigerante. Algumas vezes fornece salvo-conduto para visitas furtivas, fugas líricas, danças antes da meia-noite. O cliente, ou melhor, o doente (particular ou terminal) solicita e é atendido. Serviço profissional. Feito por uma amadora. A irresistível vontade de trocar amor por muitos dinheiros. Breve resumo da merda que, em dias melhores, chamo de vida.

Ando pelos corredores fazendo carinho no corrimão, bem devagar, como se ele fosse um bicho manso. O bombom humor recheado de surpresas derretendo na boca como um convite ao pecado. Durante as madrugadas, nos quartos da casa de saúde, acontecem situações mirabolantes, encantadores delitos, fábulas apocalípticas. Poucos percebem a nuance. É triste quando temos nossa vida para cuidar e perdemos a dos outros.

Alucinações, rompimento amoroso, demissão do emprego, sequestro de seus besouros de estimação, despejo da casa da fanática religiosa Vandercília – complicações e mais complicações. Um vendaval de confusões. Perda de foco, imagens embaralhadas, capítulos escandalosos de novela, vida de artista, lance surrealista. Será que Lawanda continua se recusando a tomar os remédios? Será que adicionou nas traquinagens diárias uma coleção de alucinações persecutórias? Gosto dos escritores. Eles não têm culpa dos seus delírios. Por fim, enfim, o desentendimento com o policial: Devo me lembrar de adicionar no meu balanço elegíaco essa nova tragédia.


Lawanda: alegria de quem dança na chuva e não seca o céu.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O ANJO ESMERALDA: EXERCÍCIOS DE VIOLÊNCIA



Leon Zhelezniak, ciente de que Os dias eram todos iguais; os filmes, não, gasta a vida e as esperanças dentro das salas de cinema. Três, quatro, cinco sessões por dia. Em algum momento impreciso, há um desvio de rota. Leo (é assim que sua companheira, Flory, o chama) descobre – como se fosse o reflexo de um espelho – que outras pessoas também vão ao cinema com frequência. Uma mulher se destaca na multidão. Alterado o ordenamento obsessivo, Leo começa a persegui-la. Vai aos filmes que ela escolhe, senta perto, quer estar perto dela, quer entender porque ela vai ao cinema. Um dia, dentro do banheiro feminino, conversam. Ou melhor, se separam. Certos filmes não comportam finais felizes.

A Famélica, um dos nove contos da coletânea O Anjo Esmeralda, de Don DeLillo, descreve o desespero tranquilo de Leo, que, na beira do precipício emocional, está prestes a pular na direção do desconhecido. Entre o real e o imaginário sobram poucas escolhas. Esse também é entendimento das irmãs de caridade Edgar e Grace, personagens do conto homônimo ao título do livro e que se refere a uma situação peculiar: a vida marginalizada das crianças nas periferias urbanas. Enfrentando os múltiplos perigos, ladrões, traficantes, estupradores, cabe ajudar. Ajudar ao Outro, mesmo que à força, como quer irmã Grace. Ajudar ao Outro, com doçura, como quer Irmã Edgar. Nos dois casos, a vida foge pelo vão dos dedos. Outro grafite irá decorar o muro das lamentações na periferia de uma grande cidade. A salvação humana não depende de boas intenções. Ou de pequenos milagres – tábua de salvação para almas corroídas pela brutalidade.

A barbárie humana está visível nas pinturas sobre a morte de Ulrike Meinhof e Andreas Baader. Nesse cenário, composto por tristeza incontida, ausência de entendimento, perplexidade, o encontro amoroso que não se completa. Não se trata de um corpo em contato físico com outro corpo. Prazeres circunstanciais são insuficientes para delimitar a vida e as promessas vazias que a agasalham. A solidão se alimenta de momentos truncados, ausências, pequenas tragédias, banalidades imperfeitas. Situação difícil de aceitar. Impossível acertar o tom desse drama que se repete a cada instante, agulhada na carne, dor intensa.

Os valores do capitalismo (poder econômico, ausência de escrúpulos, mercantilização sexual) se expõem em Criação. Casal em férias não consegue voltar para casa. Momento repleto de mal-entendidos e apetites insuspeitos. Traição amorosa. A vida de vários personagens se fragmentando. Como cobras que trocam de pele, deixam destroços pelo chão, vestígios do que se perdeu.

Nos nove contos de O Anjo Esmeralda os sentimentos são substituídos pela aridez. Não há envolvimento. O distanciamento narrativo incomoda – é o efeito desejado, marca registrada da boa literatura.


Don DeLillo, um dos mais importantes escritores estadunidenses, escreveu Submundo, Ruído Branco, Cosmópolis, Os Nomes, Homem em Queda, entre outros romances de incontestável qualidade.

 

TRECHO ESCOLHIDO

Flory tinha opiniões a respeito da vocação de Leo. Naqueles primeiros anos, entre um e outro trabalho como atriz, locutora, vendedora e passeadora de cachorro, de vez em quando ela o acompanhava, às vezes três filmes no mesmo dia, até mesmo quatro, a novidade daquilo, a loucura inspirada da coisa. Um filme pode ser prejudicado pela pessoa que está assistindo conosco, ali no escuro, um efeito cascata, a cada sequência, a cada tomada de cena. Ambos sabiam disso. Sabiam também que Flory não faria nada que comprometesse a integridade do projeto dele – nada de cochichos, cutucadas, sacos de pipoca. Mas ela não exagerava sua consciência de premeditação cuidadosa. Não era uma pessoa banal. Compreendia que ele não estava transformando um entretenimento rotineiro numa espécie de obsessão infernal.

O quê, então, ele estava fazendo?

Flory propunha teorias. Ele era um asceta, dizia ela. Essa era uma das teorias. Haveria algo de santo e louco em seu empreendimento, um toque de abnegação, de penitencia. Ficar sentado no escuro reverenciando imagens. Os pais dele eram católicos? Os avós dele iam à missa todo dia, antes do raiar do dia, em alguma aldeia nos Cárpatos, e ficavam repetindo as palavras de um padre com uma longa barba branca e um manto dourado? Onde ficavam mesmo os Cárpatos? Flory falava tarde da noite, normalmente na cama, os corpos em repouso, e ele gostava de ouvir essas ideias. Eram ficções impecáveis, sem que ela fizesse nenhuma tentativa de saber de que modo ele via a situação. Talvez ela soubesse que era algo que teria de sair pelos poros, mais uma febre na pele do que o produto de uma mente consciente.

Ou então Leo era um homem que estava fugindo do passado. Ele precisava dissipar em sonhos uma lembrança lúgubre da infância, alguma desventura da adolescência. Os filmes são sonhos que temos acordados – devaneios, dizia ela, uma proteção contra o coice daquela maldição antiga, aquela praga. Flory parecia estar recitando as falas de uma remontagem desastrosa de uma peça que outrora fizera sucesso. O som terno de sua voz, o faz de conta que ela conseguia desenvolver, por vezes perturbava Leo, que começava a sentir uma ereção a zumbir por baixo das cobertas.

Ele estava no cinema para ver um filme, perguntava ela, ou talvez, de modo mais restrito, mais essencial, apenas para estar no cinema?   


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

DOIS FILMES E UMA PAIXÃO

Psicose (Psicho, Dir. Alfred Hitchcock, 1970), um dos cem melhores filmes de todos os tempos, modificou (para melhor) a linguagem cinematográfica. Inclusive porque ultrapassa as contradições que existem entre a tradição e a invenção. A famosa cena do chuveiro se tornou um ícone pop do mesmo nível da Mona Lisa, do relógio derretendo de Salvador Dali ou da lata de sopa Campbell’s, pintada por Andy Warhol.

No entanto, entre a redação do roteiro, baseado no livro de Robert Bloch, e a filmagem muitos obstáculos precisaram ser transpostos. O principal – como sempre acontece na indústria cultural que se transformou o cinema – foi o financiamento. Nenhum estúdio queria gastar dinheiro com aquele que, segundo Alma Reville, a esposa de Hitchcock, era apenas um filme barato de terror. Sem alternativa, Alfred hipotecou a própria casa para garantir as filmagens.

A história de como Psicose se tornou um clássico está relatada no divertido Hitchcock (Dir. Sasha Gervasi, 2012), filme baseado no livro Alfred Hitchcock and the making of Psicho, de Stephen Rebello.

A filmografia de Alfred Hitchcock rompe com algumas normas clássicas. Em Psicose, enquanto maneja com competência os fundamentos técnicos, aposta todas as fichas na estrutura narrativa inovadora: a morte da personagem interpretada por Janet Leigh na primeira parte da projeção, os assassinatos que ampliam o suspense, a angústia que acompanha a trilha musical, o desfecho inesperado e pedagógico. Contra todos os prognósticos, as peças se encaixam e formam um belíssimo filme.

Hitchcock é um exercício de metalinguagem, um filme dentro de outro filme, as fagulhas deste ameaçando incêndios naquele. Parte desse clima pirotécnico se deve às atuações de Anthony Hopkins (Alfred Hitchcock) e Helen Mirren (Alma Reville). A dupla, em perfeita sintonia, consegue transformar diálogos inteligentes, alfinetadas em grande estilo, em uma aula de interpretação.

Enquanto retrata os bastidores de Psicose, uma produção independente, de baixo orçamento, há o esforço para conseguir um distribuidor e, não menos importante, driblar a censura – o código Hayes impedia cenas de nudez e violência.

Em paralelo, parte de Hitchcock está centrada na crise conjugal, nos problemas de saúde do diretor e nos desentendimentos entre os atores que integram o elenco. Além disso, para desespero de Alma Reville, Alfred tinha uma complicada fixação platônica por louras (Vera Miles, Janet Leigh).

Entremeando o passado inventado e o passado ocorrido, Hitchcock festeja o cinema como arte, entretenimento e inteligência.

P.S.: Gus Van Sant dirigiu um remake de Psicose em 1998. Não convenceu. 


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

ALGUMAS LEMBRANÇAS SOBRE OS IRMÃOS ROMANO

Ivone, Dalva e Tia Têre. Raul e Mara
Nunca soube como se deve agir quando morre alguém que, em determinado momento, fez parte de nossa história. Imagino que algumas dessas reações estão conectadas com a intensidade do afeto e com aqueles momentos (engraçados ou trágicos) que vivem se perdendo na escuridão da memória. De qualquer forma, nada é suficiente para diminuir a tristeza.

Na manhã de uma segunda-feira, uma de minhas duas irmãs, Mara, me telefonou para informar que “Tia Têre” estava hospitalizada. Pediu notícias. Tão logo foi possível, telefonei para todos os hospitais. Não consegui obter informações. Era tarde demais. Tereza de Jesus falecera dois dias antes.

Tia Têre foi uma figura importante na história de minha família. Pensando bem, não foi só ela. Todos os irmãos Romano (Rogério, Sebastião, Ivone, Dalva e Terezinha) tiveram uma cota de participação na infância dos quatro filhos da família Arruda.

Fomos vizinhos. No bairro da Brusque. Um buraco na cerca que dividia os dois lotes invalidava fronteiras e fortalecia a amizade. Na casa ao lado da nossa, um sobrado de madeira, o cheiro de café moído no pilão contrastava com o aroma do pão, das bolachas, das roscas de polvilho e coalhada. No quintal, peras e uvas. Um universo de sabores. As melhores desculpas para esquecer, depois da escola, de voltar para casa.

Ivone ajudava minha mãe com os filhos menores. Tia Terê e Dalva eram empregadas domésticas. Não lembro em que trabalhavam Rogério e Sebastião, mas isso, naquele tempo, não me parecia importante porque eles eram leitores vorazes de livros de bolso, principalmente os de faroeste. Eu também. Nas tardes de domingo, depois do cinema, costumava comprar um ou dois desses livrinhos (que eram muito baratos). Dois ou três dias depois, após a leitura, costumava levá-los para os vizinhos. Rogério e Sebastião sempre tinham outros exemplares e que eu ainda não havia lido. Lembro que um dia, com uma pilha debaixo do braço, subi a escada que conduzia ao quarto de Sebastião. Ele me recebeu com um sorriso largo e me indicou uma pilha que estava encostada na parede. Leve o que quiser, me disse, enquanto olhava as capas dos que eu tinha deixado em cima de uma mesa. Voltei para casa com muito mais do que tinha levado!

Em 1969, mudamos para perto do Aeroporto Velho e para longe dos irmãos Romano. Não tenha certeza, mas Rogério, que era o mais velho, já havia falecido (doença pulmonar ou cardíaca).

De uma forma ou de outra, na medida do possível, os laços de amizade foram mantidos. Mas, à distância. Encontros ocasionais. Eles venderam a casa e também foram para longe. Ivone casou. Sebastião foi para o Mato Grosso. De qualquer forma, não voltou. Sua morte ainda é um mistério a ser resolvido. Logo depois (ou foi antes?), Ivone também faleceu. As datas se confundem na minha memória, falta precisão, sobram névoas.

As crianças de ontem se tornaram os adultos. Todos nós crescemos – de uma forma ou de outra. Mara casou. Foi morar no Mato Grosso. Ana, minha outra irmã, também casou. Foi morar no Paraná. Dispersos pelo mundo, perdemos o contato com a nossa própria história.

Foi no fim da década de 90 do século XX que as raízes voltaram a ter algum sentido. De vez em quando encontrava as duas remanescentes da família Romano pelas ruas da cidade. Descobri, por exemplo, que Tia Têre tinha casado e enviuvado. Fui feliz, me contou com aquela voz doce, sempre otimista.

Tia Têre era uma presença recorrente nas conversas – por telefone – que costumo ter com Mara. Minha irmã adora bisbilhotar a história de nossa família e gosta de “trocar figurinhas” sobre os tempos de antigamente. Isso significa que, invariavelmente, lembramos dos irmãos Romano – que sempre fizeram parte da nossa mitologia familiar.

Com a morte de Tia Têre, além da saudade, uma triste constatação: ficamos um pouco mais sozinhos. 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

IMPASSES LITERÁRIOS E NARRADORES MÚLTIPLOS

(...) nunca tive paciência para esses romances escritos como um quebra-cabeça. 

A frase pinçada no meio de O Gato Diz Adeus, novela de Michel Laub, publicada em 2009, sinaliza para um dos mais significativos impasses da literatura brasileira: será possível contar uma história banal sem que se assemelhe com uma história banal?

A história da literatura comprova que – nas situações de crise – a imaginação entra em cena. Testando alternativas. Ou reciclando alguns truques. Infelizmente, nem sempre há vitória. Aliás, a lista de frustrações é muito mais ampla do que a de sucessos. Habitualmente, a inventividade acompanha o malogro – principalmente quando ambiciona ser mais inteligente do que deveria (ou poderia).

Nesse sentido, a aparente astúcia dos pseudo-discípulos de William Faulkner e James Joyce não consegue entender o grau de perigo que envolve o canto das sereias (como no célebre episódio da homérica Odisseia). Diante da possibilidade de obter glória através de efeitos feéricos, poucos escritores possuem a presença de espírito do trapaceiro Ulisses – que resistiu às tentações amarrando a si mesmo no mastro do navio – e aceitam a anestesia proposta pela maviosa música.

Talvez o melhor exemplo da superficialidade que acompanha a pirotecnia narrativa esteja no uso polifônico do discurso textual. Com o auxílio dispersivo de uma multidão de narradores, a história se transforma em espelho estético do discurso que anuncia/enuncia o empobrecimento das ações narrativas. Nada acontece, exceto a repetição cansativa da mesma situação. Cada narrador propõe uma perspectiva diversa, dispersa, divergente, descontínua.

Ao mesmo tempo em que a linguagem organiza o real, o falsifica. E isso significa que o caráter humano da literatura poucas vezes se mostra capaz de entender a violência do discurso. A prática social (e, por extensão, literária) está embebida em rancor, ódio e sarcasmo – embora insista em declarar que caminha na direção oposta. Manejar esse paradoxo exige muita criatividade. Inclusive porque o problema maior da literatura não está nas contradições propostas pela linguagem – está na omissão ideológica. Todo texto é uma declaração política, uma forma de exercer o poder.  

Michel Laub, considerado como uma das vozes mais significativas da literatura brasileira contemporânea, tentou, nas 78 páginas de O Gato Diz Adeus, contar uma história amorosa. Dispensando a fórmula clássica (começo, meio e fim – nessa ordem), apostou na estilhaçar narrativo e no monólogo interior. Obteve a vacuidade de quatro vozes narrativas (Sergio, Roberto, Márcia e Andreia), que se dissolvem em solilóquios narcisistas. Na ânsia incontrolável de defenderem pontos de vista pessoais, multiplicam o infindável conflito de estar no mundo através do dramático.

A voz pretérita, oblíqua, utilizada por cada um dos narradores não resgata a memória, tampouco reorganiza as imagens do passado. No máximo, estabelece os principais temas da novela: paternidade, luto afetivo e agressões intrafamiliares. Todas essas questões são distorcidas sem o mínimo pudor. As promessas que a vida não manteve ressurgem através de fragmentos. O espaço lacunar se expande. A perda promove o litigio – e o distanciamento afetivo. A demanda amorosa se confunde com a insanidade porque se manifesta através da linguagem unilateral. Falta continuidade e complementariedade. Cada um dos narradores se apropria do espaço textual para estabelecer o domínio territorial e, ao mesmo tempo, ignorar o Outro como interlocutor. Somados não representam o todo, separados se parecem com um disco riscado, que repete ad infinitum uma arenga sem substância.


As boas intenções, assim como o gato do título, só aparecem nas primeiras páginas. Em O Gato Diz Adeus, as pontas soltas nunca se encontram – pedaços de um vaso partido que não podem mais ser colados. Sobram palavras, faltam ações.

William Faulkner, uma das influências de Michel Laub

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

FILHOS – TRINTA QUESTIONAMENTOS INDIGESTOS

– Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (Machado de Assis)

– Filhos? Oh, não! Que a minha carne pereça comigo, para que eu não transmita a ninguém o tédio e a ignomínia da vida. (Gustave Flaubert)

– Filho é bom, mas dura muito. (Marcelo Von Zuben, citado por Mário Prata)

– Maldita lei! A maioria dos meus concidadãos é o triste resultado de um aborto não realizado. (Karl Kraus)

– Os crocodilos é que estão certos: eles comem os seus filhotes. (James M. Cain)

– A primeira metade de nossas vidas é arruinada por nossos pais; a segunda, por nossos filhos (Clarence Darrow)

– Quando o sujeito é uma besta e não é capaz de fazer nada, faz filhos. (Nelson Rodrigues)

– A ingratidão é uma dívida que os filhos nem sempre aceitam no inventário. (Honoré de Balzac)

– Filhos... Filhos? / Melhor não tê-los! / Mas se não os temos / Como sabê-lo? (Vinicius de Moraes)

– A familiaridade gera o desprezo – e filhos. (Mark Twain)

– Ter um filho ingrato é mais doloroso do que a mordida de uma serpente. (William Shakespeare)

– Os dois maiores presentes que podemos dar aos filhos são raízes e asas (Hodding Carter)

– Você tem dezoito filhos? Puxa! Eu também fumo charuto, mas costumo tirá-lo da boca de vez em quando. (Groucho Marx)

– Um pai bem-sucedido é aquele cujo filho ou filha é capaz de pagar sua própria terapia. (Nora Ephron)

– Para compreender os pais é preciso ter filhos. (Sofocleto)

– Os filhos suavizam as penas, mas fazem mais amargas as desgraças. (Francis Bacon)

– Se você puder dar ao seu filho ou à sua filha um só presente, que seja entusiasmo. (Bruce Barton)

– É mais fácil passarmos aos filhos as nossas paixões que os nossos conhecimentos. (Montesquieu)

– A melhor maneira de segurar os filhos em casa é fazendo do lar um lugar agradável – e esvaziar os pneus do carro. (Dorothy Parker)

– No início, os filhos amam os pais. Depois de certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam. (Oscar Wilde)

– Nunca ocorre a um garoto que, um dia, ele será tão idiota quanto seu pai. (Laurence J. Peter)

– Não existem filhos ilegítimos – apenas pais ilegítimos. (Leon R. Yankwich)

– Os filhos se tornaram tão caros que, hoje em dia, só os pobres podem se dar ao luxo de tê-los. (George Bernard Shaw)

– Amamos as filhas por aquilo que elas são e os filhos por aquilo que prometem vir a ser. (Goethe)

– A maioria das crianças sofre de excesso de mães e da escassez de pais. (Gloria Steinem)

– O embaraço parece ser a única possibilidade de compreensão entre pais e filhos. (Heinrich Boll)

– Em princípio, não há nada que as mães desejem mais para os filhos do que vê-los casados, mas nunca aprovam as mulheres que eles escolhem. (Raymond Radiguet)

– Uma mulher leva vinte anos para fazer do seu filho um homem – outra mulher, vinte minutos para fazer dele um tolo. (Helen Rowland)

– A verdade é que a gente não faz filhos. Só faz o lay-out. Eles mesmos fazem a arte-final. (Luís Fernando Veríssimo)

– Uma comida não é necessariamente saudável apenas porque o seu filho a detesta. (Katherine Whitehorn)