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sexta-feira, 31 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXXI)



Tenho medo de Marcel Proust (1871-1922) e Karl Ove Knausgård (n. 1968). São escritores que, ao estabelecerem ligações com o passado, escreveram vários livros com 500, 600 páginas. Nesses formidáveis exercícios memorialísticos declaram que a concisão é ato inútil. As frases se estendem na direção ao infinito, umas emendadas nas outras por essas pontes que são as vírgulas, o pensamento fica flutuando, feito nuvem que invade o azul, reverberações de uma literatura que se projeta no espaço, elimina o tempo e desconstrói tudo, forjando o novo a partir das ruínas. 

Nem tudo é verdade. Nem tudo é mentira. Nem tudo é ficção. Nessa mistura, onde os papeis convencionais estão deslocados, autor e personagem fundidos em oração profana, um aceno aos deuses pagãos, cabe ao leitor aceitar que está pisando em areia movediça e que a qualquer descuido pode acontecer o inesperado – inclusive o tédio total.

Os livros, “A Procura do Tempo Perdido” (sete volumes) e “Minha Luta” (seis volumes), compõem a página inundada por tinta e sentimentos diversos e contraditórios, mistura de dor e alegria, e isso, de certa forma, fornece cansaço por tanta verborragia, parece que tudo o que precisa ser dito nunca chega ao fim. Talvez não tenha fim, tempestades de palavras, um jogo, onde as cartas são distribuídas aleatoriamente, blefes surgem sempre que for possível, confirmando que a literatura é trapaça, truques para apresentar no picadeiro do circo, e para quem não entendeu o básico, eles não perdem tempo e, sem qualquer rede de proteção, mostram que o equilibrismo é mórbido.

E lá se vai mais um dia, constelação de páginas esparramadas em leituras que não saciam essa sede por algo que ninguém consegue definir, não basta dizer que é fluído ou difuso ou amorfo ou líquido ou qualquer outro substantivo, tudo se revela esforço inútil porque ainda não inventaram palavras com tamanho poder de expressão.

Proust, diante das provas para correção, em lugar de procurar por erros ou fazer as mudanças necessárias, ignorava a tarefa e incluía mais texto, as frases sendo inseridas entre as linhas, uma necessidade de incluir mais e mais, porque a narrativa estava incompleta, ou melhor, ainda está incompleta, sempre há a possibilidade de acrescentar mais algum trecho, a imaginação não possui limites.

Knausgård ignorou a economia narrativa e, através das histórias familiares, produziu uma reflexão sobre a fragilidade humana. Quer diluir as fronteiras entre a memória e a invenção, como se fosse possível produzir algum projeto literário hibrido, a necessidade de recuperar o que acredita ter se perdido em histórias pessoais que não se realizaram. Sonhos não envelhecem e, em tom desafinado, voltam à tona, pronunciando abracadabras que deveriam ter ficado esquecidas.

Nos livros de Proust e Knausgård voltar um capítulo ou dois se faz necessário a todo instante, inevitável que algum sentido ou direção escape, fios soltos na tessitura textual, o leitor como garimpeiro de símbolos, significados e significantes, a algaravia construindo a Torre de Babel e mandando o bom senso para o Beleléu. 

Se o interesse for por histórias de amor, favor passar longe – é o que dizem em cada palavra do que escreveram.   





 


quinta-feira, 30 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXX)


Foto: Dmitri Arruda

Sigo nas minhas rotinas de quarentena. Evito acumular louça suja na pia, passo um pano molhado no chão da cozinha, distribuo água sanitária no banheiro, peço comida pelo telefone, tomo banho duas vezes por dia, escrevo um pouco, leio sempre que possível, ouço jazz e MPB, durmo cerca de oito horas, e, para não perder o costume, compro alguns livros de vez em sempre.

Alguém pode alegar que as minhas energias estão concentradas em coisas miúdas. Concordo. A vida no isolamento social é isso mesmo, um conjunto de banalidades. Assim como a poesia, esses elementos são essenciais para manter a sanidade. Como complemento, gosto da monotonia, porque sempre há a possibilidade de mandar tudo para a Cochinchina (um eufemismo que minha mãe usava nos momentos de cólera). A estabilidade é a porta de entrada para as contravenções – e isso me anima. Ao mesmo tempo, estimula o postergar – que é um verbo muito ao meu gosto.

Meu plano para 2020 não poderia ser mais prosaico: quero continuar vivendo. Se a meia dúzia de pessoas de quem gosto seguir esse projeto, ficarei ainda mais contente.

(Parêntese necessário: tenho afeto por muito mais do que seis pessoas, mas, para manter as características do personagem que interpreto, convém evitar ser confundido com alguém simpático e gentil).

Não tenho (e não quero ter) alcance para consertar (concertar, também) o mundo com ações épicas, gestos grandiosos e batalhas contra moinhos de vento. O tempo dos heróis ficou preso nas páginas de Os Três Mosqueteiros (Alexandre Dumas) e de Scaramouche (Rafael Sabatini), entre outros clássicos literários. O que me restou como costume ordinário foi o uso da ironia e, aqui e ali, algumas piadas de gosto duvidoso. Não é muito, admito. É a parte que me cabe neste latifúndio.

Hoje, no final da manhã, depois de alguns dias de chuva e frio, o sol apareceu no horizonte com timidez e desfaçatez. Uma ou duas horas foi o tempo com que me iludi. O vento se encarregou de levar o calor embora e tingiu a cidade – mais uma vez – de cinza (essa cor melancólica). Na sacada do apartamento, caneca de chá na mão, fiquei pensando em quanto é bom morar em um vilarejo do interior de um estado do interior, lugar onde a natureza costuma ser um espetáculo ininterrupto. Evidentemente, não vou escrever poemas elegíacos sobre esse tema (deus me livre!), mas a sensação estética provoca prazer substantivo.

É isso. As trivialidades possuem o aspecto de bilhete premiado da loteria. Tenho sorte.  

 



quarta-feira, 29 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXIX)



A vida é movimento? Sim. Nada está em repouso. Todas as ações estão conectadas com a velocidade. Rapidez e lentidão são variáveis da existência humana. 

O Covid-19 surgiu como uma espécie de freio. Diminuir as atividades, impondo um ritmo mais vagaroso, menos agitado, deveria servir como um ponto de reflexão sobre o que nos levou (em vários momentos) até esse beco sem saída. Não foi o que aconteceu, não é o que está acontecendo. Ao contrário, todos (no mínimo, aqueles que dependem da atividade econômica) estão ansiosos para voltar à normalidade.

Esquecem que é impossível restabelecer uma situação que deixou de existir. O normal e o novo normal são construções utópicas – delírios de quem ainda não percebeu que não há um ponto de retorno. É você que ama o passado / e que não vê / que o novo sempre vem, como cantou Belchior, profeta menor nessa terra de desastres maiores.

Depois que for encontrada uma vacina (e a possibilidade de isso não acontecer existe), teremos uma situação inédita, algo semelhante às ruínas deixadas por uma guerra ou a erupção de um vulcão. Será necessário reconstruir a terra arrasada.

Essa visão realista parece não estar conectada com as ações dos governos – que estão tentando reabrir as áreas comerciais (com algumas restrições). Mas, convém ressaltar, esse tipo de ação não representa falta de informação ou algum tipo de discussão sobre estratégias alternativas. Como sempre acontece em situações-limite, falta coragem, determinação, coerência e vontade política. Diante da ameaça de que parte da economia pode entrar em colapso, os gritos de empresários são acalmados com concessões e promessas de financiamentos com juros insignificantes. A política se transformou em apêndice da economia.

Nesses termos, ao contrário do que seria sensato promover, que é a proteção da população em geral, os governos decidiram sacrificar a força de trabalho. A constante movimentação de uma massa de trabalhadores pelas ruas das cidades terá como consequência a circulação mais efetiva do vírus e, consequentemente, o aumento no número de infectados e de mortos. Mas essa questão (assim como o colapso do sistema hospitalar) não é considerada como prioridade. O que importa é o tilintar das caixas registradoras.

No outro lado da corda, qualquer manifestação contrária e ou movimento grevista costumam receber tratamento diferenciado: gás lacrimogênio, bala de borracha e cassetete. O autoritarismo, depois dos atos de violência, costuma – como se isso não representasse um grande problema – pedir que todos contribuam para a causa comum, o que, obviamente, representa achatamento salarial, aumento de impostos e das horas trabalhadas e, em tempos de pandemia, risco de morte.  

Na equação em que aqueles que estão em posição de liderança não conseguem encontrar um resultado que seja satisfatório para todos, a produção econômica (independente das relações de consumo) surge como o acelerador da velocidade social.

Sic transit gloria mundi.



terça-feira, 28 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXVIII)



Dos estrangeirismos vigentes no Brasil, o mais engraçado é o tal do spoiler, derivado do verbo to spoil (estragar, arruinar) e que muita gente adotou como uma regra social impeditiva de revelar algum fato que esteja incluído no conteúdo de livros, filmes, série ou jogos. 

Comigo isso não funciona. Nasci estraga-prazer. Se o fulaninho acredita que vou comprar um livro ou assistir um filme sem saber do que se trata, pode tirar o cavalinho da chuva, que eu não tô nem aí. Costumo procurar as resenhas, as críticas e as entrevistas. Sou um curioso da indústria cultural. Aliás, ao escolher uma formação acadêmica estruturada na literatura, considerei como vantagem poder comentar (em muitos casos, dissecar) este ou aquele livro, filme, série, sem precisar me importar com a opinião de quem ficou magoado porque o objeto perdeu a graça

Quando me contam sobre alguma particularidade de um texto ou de um filme, minha curiosidade dobra. Quero ter a possibilidade de conferir a avaliação de quem passou pela experiência antes de mim. Muitas vezes, esse destaque é fundamental para uma melhor compreensão do todo. Ou então para ter certeza de que quem fez a indicação não entende nada do assunto. 

A lista de temas literários ou cinematográficos é limitada, uns dez no máximo, sendo que os mais importantes são o amor e a morte. Se João deixou Maria para poder casar com Clara, ninguém vai estragar o meu entendimento sobre o texto/filme porque me contaram essa fofoca. Então, o que importa quando decidimos assumir a persona do leitor/espectador? O projeto estético, ou seja, a maneira como esse tema é tratado, qual foi a linguagem escolhida, o ângulo da abordagem. O charme de Dom Casmurro não está na história de uma presumida traição amorosa. O pulo do gato está na escolha de um narrador em primeira pessoa que não é confiável. Em nenhum momento ele permite que a acusada se defenda. Como se trata de uma visão unilateral, tudo fica no plano da especulação. 

No caso dos clássicos, o spoiler não faz o menor sentido – exceto, obviamente, para o ignorante (aquele que ignora). Se o sujeito não conhece a Ilíada, de Homero, convém impedir comentários sobre a paixão de Helena e Páris, e que é esse fato que desencadeia a Guerra de Tróia? As aspirações pequeno-burguesas de Emma Bovary precisam ser esquecidas para não incomodar um provável leitor? É necessário omitir que, na última cena de Casablanca (Dir. Michael Curtis, 1941), Rick Blaine permite que o amor de sua vida, Ilsa Lund, viaje para os Estados Unidos com o marido, Victor Laszlo, e ele fique sozinho – ou melhor, na companhia do Capitão Louis Renault? 

Ah, quantas bobagens se comete em nome do politicamente correto! O spoiler é anti-intelectual na medida em que cerceia a informação e inibe a debate. É ideológico porque exige uma pureza impossível de se concretizar.
 



P.S: Não vou perder meu tempo destacando o quando considero ridículos esses estrangeirismos em uma língua tão rica e diversificada como é o português.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXVII)


Adolescência. Óleo sobre tela, 1941. Salvador Dali.

Todo mundo sonha. Dizem. Das coisas alheias pouco sei – exceto o que me contam e o que leio. O que posso afirmar com segurança é que nos últimos tempos tenho dormido quase oito horas ininterruptas e em suave serenidade infantil. Raramente há interrupções no sono.  

Em outros tempos, tinha sonhos recorrentes com a família. Hello, darkness, my old friend / I’ve come to talk with you again. O eterno conjunto de desacertos que a vida nos presenteia. Em algum momento, talvez tenha apertado o parafuso frouxo (como dizia minha avó) e solucionado o problema. Nunca mais apareceram.

Também era comum a sensação do déjà vu, a ilusão de reconhecer um lugar em que nunca estivemos. Ao acordar, ficava tentando lembrar daquilo que parecia próximo e não era. Bizarro.

O surrealismo foi o movimento artístico que mais valorizou os sonhos. Anarquistas, eles acreditavam que a arte não deve ficar atrelada à lógica e à razão – cabe à imaginação ultrapassar essas barreiras e estar receptiva para todas as possibilidades da mente humana. Nas pinturas de Salvador Dali (1904-1989) e René Magritte (1898-1967) percebe-se o radicalismo desse posicionamento.  

Recentemente, sonhei que estava em sala de aula. Não consegui descobrir se estava lá como aluno ou professor. Era um daqueles dias de sol escaldante, todo mundo de bermuda e camiseta. Muita gente entrando e saindo da sala, conversas paralelas ensurdecendo o mundo. Pareceu-me que algum rock comportado dava o tom da trilha sonora. Sentado em uma carteira estava um ex-colega do segundo grau. Faz muito tempo que perdemos o contato e, salvo banalidades, nunca tivemos interesses convergentes. No sonho, ao contrário, parecia que éramos amigos íntimos. E o mais estranho, o tempo ainda não tinha produzido muitos estragos em nossos corpos. Éramos alegres e cabeludos. Tínhamos 16, 17 anos. Depois de trocar algumas palavras com ele e algumas pessoas que não conheço, deixei a sala, caminhei pelo corredor e... acordei.

Durante a manhã, procurei por alguma coerência nesse sonho. Não precisei ir longe. No ritmo da automedicação, conclui que não era caso de internamento psiquiátrico, tampouco havia motivo para marcar consulta com o doutor Sigmund – o bisbilhoteiro do inconsciente humano. Também lembrei que, em tempos longínquos, fiz uma disciplina de pós-graduação com o Sergio Medeiros (Onirismo e Nonsense). Foi uma bagunça. Alunos demais. Quem chegava atrasado não conseguia lugar para sentar. O ar condicionado não estava funcionando. As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e alguns limeriques. Acho que foi isso.

Posso estabelecer algum tipo de ligação entre essas aulas e o sonho? Sou da turma que acredita que nada acontece por acaso. Sempre há um fio solto dentro do labirinto e que raras vezes aponta para a saída. O usual costuma ser um convite para tomar chá com o Chapeleiro Louco (Mad Hatter) e a Lebre de Março (March Hare). Como ainda não descobri o que há de errado com os passeios oníricos – exceto, claro, os gritos da Rainha de Copas (que ordena, a todo instante, Cortem-lhe a cabeça) – quero continuar sonhando. Será pedir muito?


The blank signature. Óleo sobre tela, 1965. René Magritte. 


domingo, 26 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXVI)



Conta a lenda que  Sherazade (Xerazade, Scheherezade) casou com um rei (sultão?) persa (árabe?) que tinha o hábito pouco saudável de matar as esposas depois da noite de núpcias. Para tentar fugir desse destino, ela começa a contar algumas histórias – mas com a particularidade de interrompê-las ao amanhecer. O monarca, curioso para saber o desfecho de cada uma dessas narrativas, se deixa envolver pelo ardil e permite que a mulher viva, desde que continue entretendo-o. Depois de mil e uma noites (que deve ser lido como um número aleatório), o soberano desiste de executá-la.

A história de todo escritor se assemelha com o mito de Sherazade. O texto precisa despertar o interesse do leitor. Não deve induzir o tédio. Se isso se concretizar, a narrativa perde a importância como transmissora da experiência humana – e possivelmente será descartada (guardadas as devidas proporções, uma forma de morte).

Pouco importa se a história aconteceu ou foi inventada – o leitor, diante do texto, encontra o encantamento. O poder criativo da literatura permite que a formiga converse com a cigarra, que Marco Polo se torne amigo de Kublai Khan, que uma mulher se vista de homem no sertão mineiro e que a peste devore parte da população de Oran.

O milagre literário não está condicionado com o realismo ou com o verossímil. Ou seja, não precisa estar escorado em esquemas cartesianos. Verdade ou mentira são convenções ideológicas que visam fornecer um ordenamento para o mundo. Diariamente, a vida está cheia de contradições – nos noticiários (espelho dos acontecimentos) impera a violência, a insensatez, a fome, o horror. Então, por que exigir que a literatura seja um exercício retilíneo e esteja amparada em fatos comprováveis?

No conjunto de contos que Sherazade conta para o rei (sultão) estão presentes as histórias de Simbad, o Marujo, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, entre outras. Todas essas narrativas possuem elementos “mágicos”, formulas de atração do olhar do leitor.    

Na literatura, “o como” é mais importante que “o que”. Isto é, a habilidade narrativa se impõe sobre o que está sendo contado. A história mais boba adquire relevância se a estrutura for montada adequadamente (domínio da linguagem, indução de emoções, controle do fluxo de informações). Ninguém reclama de um romance de 500 páginas se surgir um elo afetivo entre o leitor, os personagens e a ação narrativa.

Algumas “criaturas de papel” se tornaram imortais porque conseguiram ultrapassar o suporte literário e adquirir uma densidade “física”, próxima da humana: Elizabeth Bennet, Gregor Sansa, Molly Bloom, Holden Caulfield, Anna Karênina, Clarissa Dolloway, Yuri Jivago, Maria Capitolina Santiago (Capitu), Macunaíma, Macabéa, Paulo Honório, entre outros.

Milhares de dramas e comédias acontecem todos os dias. A aventura literária consiste em transmitir essas histórias para o leitor.


sábado, 25 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXV)



Sei que é absurdo dizer que alguém se perdeu na cidade em que nasceu. Infelizmente, isso aconteceu comigo. Fui comprar máscaras descartáveis. Não me adaptei com as de tecido. Dois meses atrás, Mítia me levou – de carro – em uma loja lá na Humberto de Campos. Depois, fomos a uma farmácia de manipulação, na Avenida Camões. Esses são os fatos que estruturam o início da peripécia.

Ontem, sai de casa no meio da tarde. Aproveitei o sol forte, fato raro no inverno. Escolhi ir caminhando pela Avenida Presidente Vargas. No meu imaginário, a loja das máscaras estava localizada no Coral. Isso me permitiu a desculpa de passar na padaria localizada na XV de Novembro (rua em que morei, no século passado). Algo como reunir a fome com a vontade de comer (como dizia a minha mãe). Habitualmente, faço esse trajeto em 30, 35 minutos. Não é longe – para quem gosta de caminhar.

Fui procurar as máscaras. Só encontrei a farmácia. Percorri metade da Humberto de Campos e nada. Tentei lembrar o nome da loja, assim poderia pedir alguma informação. Claro que isso não aconteceu. A única certeza que tinha é que precisava encontrar um prédio verde.

Abrigado em uma sombra e, sem alternativa, telefonei para Mítia.

– Cara, estou perdido. Não consigo achar a loja.

– Onde você está?

Forneci as coordenadas e ouvi (embora ele não tenha pronunciado) alguma coisa parecida com nada como um dia depois do outro. É que muitas vezes reclamei dos trajetos que ele escolhe para se deslocar pela cidade. Em seguida, para completar o desagrado, digo para ele consultar o GPS, o mapa, a bússola, o astrolábio, o sextante, os sinais de fumaça, o barulho do tambor, qualquer coisa que possa indicar um caminho mais rápido, menos convencional. Enfim, a velha encheção de saco.

– Você está muito longe. É mais para baixo, bem depois do supermercado.

Agradeci e, para não perder a viagem, fui primeiro à padaria. Salvar o lanche da tarde, naquele momento, se tornou a prioridade. Comprei sanduíches de ciabata e os inevitáveis “travesseiros” com nutella. Depois, segui pela XV de Novembro até a Walmor Ribeiro e voltei para a Humberto de Campos.

A geografia da cidade permite que o deslocamento humano seja prazeroso, detalhes que se somam com detalhes. Basta estar munido com a curiosidade. Lembro que fiquei me perguntando se o homem com a camiseta do Batman era mais infantil que o menino que estava fantasiado de Homem Aranha. Deixei os dois para trás e encontrei a loja.

A inflação mostrou presença no preço das máscaras. Coisas do capitalismo, a oferta e a procura dando as cartas em jogo viciado. Paguei com cartão, opção crédito, o saldo bancário no vermelho, final de mês, essas coisas que dão colorido ao exercício da vida.

Desci a rua, com as sacolas na mão. Em uma das esquinas, encontrei um conhecido. Trocamos meia dúzia de palavras, mantendo a devida distância, as máscaras abafando o som das vozes. Em um bar, mais adiante, vi vários rapazes tomando cerveja. Fiquei com a impressão de que – para eles – não existe motivo para preocupações.

Na Avenida Duque de Caxias, tomei o caminho de casa. A Avenida Belisário Ramos, margeando o rio Cahará, parece abraçar (e separar) partes da cidade.

Deveria ter sido uma caminhada de hora e vinte, mais ou menos. Levou duas horas e meia. Cheguei em casa cansado. E um pouco mais humilde.  


sexta-feira, 24 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXIV)



A quarentena se transformou em período de hibernação? Abro a janela do escritório para confirmar que o mundo não congelou e que o tempo segue caminhando. Agasalhado pela luz do sol, encontro o antídoto contra a possibilidade (certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos) de me transformar no fantasma de Rip van Winkle.   

No conto de Washington Irving (1783-1859), para fugir da esposa rabugenta, o marido entra na floresta. Depois de vários eventos, resolve descansar por algum tempo. Ao acordar, 20 anos depois, encontra um mundo que não reconhece – e que não o reconhece.

Esse estranhamento parece se repetir na atualidade – o que havia anteriormente foi engolido pelas palavras vírus, doença, pandemia, quarentena, pânico. O progresso tecnológico se revelou insuficiente para entender os fatos. A empáfia mostrou o ridículo. A noção de que tudo era possível fracassou. O crepúsculo se instalou e a modernidade regrediu aos tempos da peste negra, na Idade Média. De forma trágica, 2020 será classificado na linha histórica como um interregno, um período vazio.  

O ser humano não consegue se reconhecer nesse espelho embaçado. Como anotou Albert Camus (1913-1960), a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. Presos em casa, os indivíduos constatam que a dor da solidão parece não ter fim. Nesse paradoxo, mesmo que a ciência apresente – em médio prazo – alguma solução para a crise, ninguém poderá negar que o que ontem se apresentava como ficção científica, hoje retrata uma metamorfose do abismo.

Santo padroeiro dos colapsos, Franz Kafka (1883-1924) poderia construir um novo castelo. Não aquele em que o homem é impedido de se aproximar, mil obstáculos a superar. Outro. Que não imitaria labirintos e não apresentaria insetos monstruosos. Talvez o modelo ideal para concretizar essa ideia seja o tenente Giovanni Drogo, aquele que fica olhando para o horizonte, linha que se mostra imutável. Dia após dia, tudo é igual no deserto (dos tártaros). Não há mudanças. Em algum momento, diante do tédio, o desespero pode se apresentar transversalmente no desejo de passear na barca de Caronte. Certamente, como manda o roteiro kafkaniano, esse lenitivo não será concedido.

Ao longe, como se fossem voyers, os escritores contemporâneos tudo farão para entender essa loucura. Seguindo a vocação de fornecer documentos de época (alguns falsificados), em algum momento aprisionarão a enfermidade em milhares de palavras (contos, crônicas, novelas, romances). Os escombros da memória projetarão (como nostalgia, como advertência) um tempo que desconhecia o medo. Mas, em movimento simultâneo, também serão (serão?) capazes de projetar outro tempo. Tempo em que a esperança não estará presa no fundo da caixa de Pandora.

Em condições normais, o inverno é substituído pela primavera.  


quinta-feira, 23 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXIII)



Três dias e 379 páginas. Não sei se isso significa que li rápido demais ou devagar. Faz muito tempo que perdi esse tipo de parâmetro. Sou da turma da fruição, aqueles sujeitos que se preocupam com o prazer da leitura e deixam a velocidade para quem encontra nas estatísticas a razão para viver.

Alguns anos atrás, quando li, em espanhol, o romance O Clube de Leitura de Jane Austen (publicado no Brasil pela Editora Rocco), da Karen Jay Fowler, uma das cenas que mais me chamou a atenção foi aquela em que um dos personagens sugere a outro a leitura dos romances de Ursula Kroeber Le Guin (1929-2018). Como defendo a tese de que um livro está ligado ao outro, fui buscar essas narrativas. A surpresa foi grande. Por dois motivos. O primeiro, muito pouco da obra de Le Guin está traduzida no Brasil. O segundo, A Mão Esquerda da Escuridão (Editora Aleph) é um livro magnífico. Talvez esse adjetivo seja insuficiente para qualificar o texto. Mas, isso é conversa para outro dia.

Também estão traduzidos no Brasil dois volumes do infanto-juvenil Ciclo Terramar (O Feiticeiro de Terramar e As Tumbas de Atuan – Editora Arqueiro) e, em edição mais recente, A Curva do Sonho (Editora Morro Branco). Alguns contos estão espalhados em diversas antologias, o que significa que o trabalho de garimpo pode ser exaustivo.

Ler Os Despossuídos (Editora Aleph) foi uma espécie de correção a uma das minhas falhas literárias. O livro ficou morando na estante por quase um ano. Aproveitei esse momento de pausa na correria do dia a dia e resolvi mergulhar no texto. Como ocorre nos romances de ficção científica, a descrição é um dos elementos importantes na construção da trama. Depois que o leitor consegue se situar no tempo e no espaço do enredo é que a ação propriamente dia se desenvolve. Dependendo da habilidade do escritor, isso pode ir longe.



Os Despossuídos está centrado em dois planetas gêmeos. Em determinado momento, uma parte da população de Urras imigrou para Anarres e construiu uma sociedade igualitária, onde os valores econômicos e o patrimônio não existem. Todos têm direito à alimentação, moradia, trabalho e serviços de saúde. Associações sindicais, através de reuniões e proposições, devem tentar solucionar os problemas coletivos.

Em Urras, é o contrário. Sociedade de consumo, baseada em valores do capital, divide-se em proprietários e empregados – e reprime violentamente qualquer infração que vise alterar esse projeto político-econômico.

No meio desse confronto de ideias e propostas, encontra-se Shevek, um físico teórico brilhante, morador de Anarres. Ele está trabalhando em um projeto complicado e que pode resultar em nova forma de transporte espacial. A questão fundamental está situada em um impasse: marginalizado em Anarres, muitas vezes precisando exercer trabalho braçal, Shevek descobre que o seu planeta não quer que ele desenvolva a teoria. Em contrapartida, Urras informa que tem interesse. O impedimento mais importante, nessa situação, é que, depois da imigração, nunca um habitante de Anarres esteve em Urras.

A típica situação do homem dividido entre o dever e a opressão do Estado encontra nesse romance uma boa construção narrativa. A viagem para Urras equivale a um despertar da consciência (qualquer semelhança com o “mito da caverna”, de Platão, não é mera coincidência). Ao entender que o idealismo não se sustenta como proposta de vida, Shevek cresce como individuo e intelectual.

No conflito entre Eros e Thánatos, o prazer se mostra mais forte. E essa é a grande proposição de Os Despossuídos.


quarta-feira, 22 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXII)



Na quarentena, todos os dias parecem iguais. Simples ilusão de ótica. Estar em casa me ensinou que a rotina não é estática. Algumas mudanças, mesmo quando parecem imperceptíveis, alteram a ordem geral dos acontecimentos.

Hoje mudei o aparelho de televisão de lugar. Tirei do meu quarto e a coloquei em outro. Por algum motivo que foge da minha compreensão, a Rede Globo estava fora do ar. Alguém é capaz de dizer que tenho sorte por não assistir essa emissora “comunista”. Talvez, talvez. Mas, em contrapartida, ninguém merece ver os telejornais do SBT e da Record. Chamar aquilo de mundo-cão é elogio. E ultimamente só ligo a TV para ver o noticiário ou para induzir o sono. A televisão aberta (todos os canais) adotou o aborrecimento como conduta geral.

O que preciso destacar é que tenho me recusado a assinar os sistemas de transmissão a cabo. Não preciso disso. Sei que estou perdendo séries fantásticas, reprises de filmes maravilhosos e milhões de canais de entretenimento. Mas, também estou ciente do que estou ganhando. Administro a vida lendo, escrevendo, sonhando. Posso ficar algum tempo no sol, dormir oito horas por dia, escolher o que acessar na Internet. Enfim, gosto de fingir que sou livre.

Liguei o aparelho e o milagre aconteceu. O canal desaparecido foi encontrado. Alguns minutos mais tarde, enquanto lavava a louça (não é a minha tarefa doméstica favorita), desenrolei o fio condutor para algumas hipóteses sobre o que motivou esse fenômeno. Imaginei que pode ter ocorrido algum tipo de interferência (qual?) ou defeito na antena. Também não descartei um improvável aviso das “forças ocultas” sobre o que tenho direito de visualizar em rede nacional. Obviamente, não concluí nada. Nem poderia. O meu conhecimento sobre esses assuntos beira a nulidade. Como se não bastasse, a “bola de cristal” deve estar com defeito.

Decidi deixar a máquina de fazer doido (na definição certeira do Stanislaw Ponte Preta) onde está. Em outro momento, tentarei o retorno ao meu quarto. Pode ser que essa mudança temporária sirva para bagunçar alguma coisa dentro do aparelho e... Sei lá, como dizia um filósofo que não recordo o nome, a ordem cósmica não depende dos fatores que estão conectados com a lógica. Além disso, preciso entender que ela pode ficar melhor onde a deixei hoje a tarde.  Nesse caso, só haverá acesso quando necessário. Assim posso evitar a dispersão na hora da leitura noturna.  

Amanhã tenho outra tarefa para realizar. Se a preguiça deixar, iniciarei um processo de desapego dos suplementos culturais que acumulei durante anos. Percebi que não tenho mais necessidade de conservar aquela montanha de papel. No espírito Marie Kondo, vou adotar a mágica da arrumação. Não sei se estou preparado (emocionalmente) para isso, mas quero enfrentar a aventura. No esquema tentativa, erro e acerto tentarei descobrir utilidades para esses dias de reclusão voluntária. Ou seja, planejo mudar a rotina, mesmo que seja de forma insignificante.


terça-feira, 21 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXI)



Algumas narrativas comovem mais do que outras. Quando a pandemia desaparecer, essas histórias ficarão gravadas no imaginário como exemplos do horror que estamos vivendo.

O estado de Israel tem promovido, nos últimos anos, uma serie de anexações nos territórios da Palestina. A situação de opressão aumenta a cada dia. A região costuma ser bombardeada por um dos exércitos mais eficazes do mundo. Os casos de tiroteios, violência física e prisões (inclusive de menores de idade) são incontáveis. A isso se acrescenta que o Covid-19 atinge principalmente aqueles que estão em situação de vulnerabilidade e que não dispõem de garantias de segurança. A situação hospitalar na Cisjordânia e na Faixa de Gaza foge de qualquer qualificativo que se possa chamar de humano. Por isso, a presença da Cruz Vermelha tem sido decisiva para tentar auxiliar a população – mas isso nem sempre é permitido pelas forças repressoras, que alegam medidas de segurança.  A ideia por trás desse bloqueio (que ultrapassa os limites da razoabilidade) é ampliar o cerco em torno das forças de resistência e sufocar qualquer forma de organização política palestina.



Rasmi Suwaiti, 73 anos, residente em Beit Awwa, na Cisjordânia, tinha leucemia e estava em tratamento quando contraiu Covid-19. No dia 16 de julho, cinco dias depois de sua hospitalização, faleceu no Hospital de Hebron. Parece um caso comum, nestes tempos sombrios que nos atingem. E, infelizmente, o é. As estatísticas, que agrupam números e ignoram os sentimentos, transformaram a morte em banalidade.

O diferencial, nesta situação específica, ficou por conta de seu filho, Jihad Al-Suwaiti, 30 anos, que era muito ligado a Rasmi e, durante os cinco dias, escalou a parede do hospital para poder fazer companhia a ela. Impedido de se aproximar da mãe, por conta do coronavírus, ele decidiu se instalar em uma janela do hospital (um lugar bastante precário). Aconselhado a desistir desse procedimento, não seguiu as recomendações e deu continuidade ao desejo de estar próximo à mãe até o momento derradeiro. Ele só voltava ao solo quando percebia que ela estava dormindo.



Apenas uma vez Jihad obteve permissão para entrar no quarto da unidade de tratamento intensivo para poder dizer adeus à mãe.

Entre os palestinos, as relações de afeto familiar são muito valorizadas, contrastando com a geografia árida, com a carência de bens de subsistência (inclusive água) e a destruição diária do país.



P.S: O nome próprio Jihad está envolto em curiosidade. Como não é possível, neste momento, averiguar a etimologia ou algum sentido muito específico no idioma árabe, a compreensão mais linear aceita como significado: guerra santa muçulmana contra os inimigos do Islã ou dever religioso de defender o Islã.  


segunda-feira, 20 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXX)



Tornaram-se recorrentes, nas redes sociais (talvez por conta da pandemia, o que motivou uma série de jogos de entretenimento), algumas brincadeiras com listas. Os dez melhores livros da literatura brasileira, vinte jogadores de futebol e dois goleiros, oito melhores atrizes da televisão, quinze filmes imperdíveis, as músicas que mudaram o mundo, as melhores pinturas de todos os tempos, etc. Normalmente, deve-se postar a foto de um desses elementos diariamente e escolher uma nova vitima para perpetuar esse esquema de pirâmide.

Detesto listas. Simples assim. Habitualmente, as listas são métodos de comparação entre grandezas diferentes, onde a hierarquização contribui para referendar alguns preconceitos e inúmeros equívocos. Será possível dizer que Franz Liszt supera Gustav Mahler? Hendrik Johannes Cruijff jogou futebol com mais talento que Lionel Andrés Messi Cuccittini? A superioridade de O Pagador de Promessas sobre Bacurau pode ser contestada? Nenhuma dessas perguntas pode ser respondida com isenção intelectual. Inclusive, porque não tratam de questões significativas. A ação de cada um dos objetos está limitada pelas condições históricas de produção. Considerar que Manet pintava melhor do que Velasques é ignorar as dificuldades técnicas para se conseguir, por exemplo, os pigmentos adequados no século XVII – e isso significa, para dizer o mínimo, que qualquer cotejo entre os dois pintores é absurdo.

Participei de algumas brincadeiras com listas. Uma delas propunha o relacionar dos dez livros que mudaram a minha vida. Postei dez capas de livros, mas não escolhi ninguém para levar o divertimento adiante. Alguns dias depois, percebi que aquilo era inócuo.

Primeiro, porque é muito complicado atribuir a um livro as minhas resoluções. Claro que várias leituras foram importantes e me ajudaram a elaborar um pensamento mais organizado, com argumentos mais sólidos. Mas, fui eu que me desloquei na direção do aprendizado – o livro foi apenas um instrumento auxiliar.

Segundo, não acredito que a indicação de um livro (ou de dez) possa influenciar alguém a ler. A Internet se transformou em um oceano de imagens, onde, por exemplo, a capa de O Deserto dos Tártaros, do Dino Buzzati, não passa de uma fotografia que será esquecida cinco segundos após ser visualizada. Ninguém vai ler esse livro só porque eu o considero muito bom e o fiz integrar uma das minhas listas.  

Terceiro, que juízo de valor deve ser utilizado para fazer uma lista? Gosto pessoal? Conselho de fulano ou beltrano? As indicações da Veja? Nenhum desses critérios possui valor. São abstrações. Somente os inseguros se apoiam em listas, porque desta forma não precisam decidir – alguém já decidiu por eles.

Quando alguém pede para fazer uma lista sobre determinado assunto, as partes envolvidas precisam deixar transparente que o resultado tem valor de suporte e não de algo que se solidifica como absoluto. O paradoxo é esse: as listas costumam ser tomadas como algo estratificado, inconteste (porque reúnem e resumem uma proposta). É o contrário. O valor da lista está na transitoriedade, na possibilidade de ser desconstruída a qualquer instante, seja mudando os itens, seja alterando a ordem em que estão dispostos.  O mundo não vai mudar porque uma lista coloca o sagu de vinho em melhor posição do que a gelatina.


domingo, 19 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXIX)



A minha primeira quarentena foi consequência de uma crise hepática, lá por 1990 ou 1991, não sei ao certo, anulei muitas das lembranças desse período. Fiquei cerca de um mês deitado, assistindo televisão e reclamando da vida. A parte mais incômoda foi a abstinência alcoólica e de cafeína, que durou um ano. Nunca mais tomei café.

A segunda quarentena aconteceu no verão de 1997. Estava morando em Rio Tavares, sul da Ilha de Santa Catarina, e a situação financeira era caótica – para dizer o mínimo. Aluno do mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina, isolado do mundo, deveria aproveitar aqueles três meses para escrever a dissertação. Deveria.

Passava os dias lendo e ouvindo rádio (Itapema FM), escrevia umas resenhas para o jornal A Notícia (Joinville, SC), umas crônicas para O Momento (Lages, SC) e me alimentava de miojo e cerveja. Aos domingos, caminhava uns seis ou sete quilômetros no sol até o Centrinho da Lagoa. Almoçava um filé de linguado, comprava os jornais e voltava para o exílio – de ônibus.

As exceções nessa rotina foram minúsculas. Fui umas poucas vezes até a Universidade. Joguei um torneio no Clube de Xadrez. Aceitei o convite para jantar (duas vezes) com o casal Martin Afonso Palma de Haro e Kézia Lenderly. Ainda hoje evoco o sabor do salmão como uma tábua de salvação daqueles tempos de penúria.



A terceira quarentena foi imediata, mas em outro lugar. Residi durante seis meses em Meia Praia, Itapema. Era uma casa menor do que a outra, mas não tão isolada. Todos os dias, pela manhã, ia ler na praia. A cidade era uma espécie de deserto, só faltavam os rolos de feno rolando pelas ruas. A diversão era alugar filmes na locadora ou ir para Balneário Camboriú (impraticável para quem estava insolvente). Apesar das dificuldades, escrevi pedaços da dissertação. A grande mudança ocorreu quando me ofereceram trabalho temporário na redação de A Notícia. Durante cerca de um mês, estive em Joinville entre a segunda e a sexta-feira. Com esse dinheiro extra, pude passar alguns dias com Mítia – que tinha seis anos na época.

Vinte e poucos anos depois, protagonizo a quarta quarentena. Solicitei licença-prêmio da Prefeitura e ocupo grande parte do meu tempo dentro do apartamento. Lavo diariamente a louça. Procuro ter horário para ler e escrever, embora algumas noites de insônia tenham prejudicado a programação. Saio de casa na medida do necessário (banco, supermercado, farmácia), sempre de máscara e embebedando as mãos com álcool gel. Na volta, vou ao banheiro para retirar a gosma que fica incrustada na pele. Muitas vezes tomo banho. 

O que não dá para controlar é a síndrome do pânico, que se faz presente de vez em quando. Quando isso acontece, tomo chá, escuto um pouco de soft jazz, como um pedaço de chocolate e, algumas vezes, recito mantras. Por enquanto, é o suficiente para manter a serenidade emocional.

Não tenho a mínima ideia de como ou quando essa situação se resolverá. O que sei é 2020 é um ano perdido para algumas pessoas e que o futuro, esse vago mistério, está se desmanchando diante de nossos olhos.  


sábado, 18 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXVIII)





(...) e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer ubiquidade: “estamos indo sempre para casa”.

(Raduan Nassar: Lavoura Arcaica)


Será o retorno tão importante quanto a viagem? Ir não era suficiente para ele, apenas metade suficiente; tinha que retornar, afirma o narrador sobre Shevek, protagonista do romance Os Despossuídos (Ursula Kroeber Le Guin, 1929-2018). Ciente da transitoriedade enunciada por Heráclito de Éfeso (ninguém se banha duas vezes no mesmo rio), Shevek possui um entendimento muito pessoal sobre essa questão: Pode-se voltar para casa (...), desde que se compreenda que casa é um lugar onde nunca se esteve.

É muita filosofia para pouca quarentena. É necessário bagagem, passaporte e bússola para esse tipo de passeio intelectual. Deve ser o caso de Alexandra Lucas Coelho, ganhadora do Grande Prêmio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, com o livro Cinco Voltas na Bahia e Um Beijo para Caetano Veloso.

Alexandra, portuguesa de nascimento e jornalista por profissão, 52 anos, tem desbravado o mundo com voracidade. Escreveu sobre o México, o Afeganistão, o Egito e o Brasil (Rio de Janeiro e Bahia), além de dois romances. Parece ser uma dessas pessoas que possuem “bicho-carpinteiro”, como dizia minha avó, quando se referia a pessoas que não param quietas e sempre estão “criando caso”, incomodando.

O interessante é que Alexandra não está sozinha nessa peregrinação pelo mundo literário. Provavelmente o caso mais extremo seja o do inglês Bruce Chatwin (1940-1989), que desistiu de uma carreira promissora na Sotheby’s, em Londres, para viajar pelo mundo (França, União Soviética, Patagônia, Benin, Daomé, Austrália, etc.). Essa movimentação está registrada em diversos livros, sendo que alguns derivaram de reportagens que fez para a Sunday Times Magazine. Para acrescentar um pouco mais de charme a uma vida agitada, as suas cinzas mortuárias foram espalhadas ao redor de uma capela bizantina, no Peloponeso, próximo do local onde morou o escritor Patrick Michael Leigh Fermor (1915-2011), outro viajante incansável.

O escritor holandês Cees Nooteboom (pseudônimo de Cornelis Johannes Jacobus Maria, 86 anos) também não gosta de viver em um único lugar. Seus livros estão ambientados nos lugares mais inusitados. Paraíso Perdido, por exemplo, une São Paulo com a Austrália, a Áustria e a Holanda.

Jean-Marie Gustave Le Clézio (80 anos), Prêmio Nobel de Literatura de 2008, é outro desterrado. Vive em trânsito, como se a diversidade que está além dos limites da geografia fosse o objetivo a ser alcançado.  

Michel Onfray, que elaborou uma Teoria da Viagem, afirma que as ocasiões de partir podem ser aleatórias: abrir um atlas, fechar os olhos, apontar um país, decidir-se por uma região inesperada, confiar, quando se tem essa oportunidade, nos convites oferecidos a percorrer o planeta, (...) partir nas pegadas de um poeta, de um filósofo, de um artista amado, em busca de uma geografia sentimental.

Todos esses viajantes fazem de aeroportos, estações de trem e hotéis um lar provisório. Em outras palavras, são prisioneiros de algo que nunca está onde eles se encontram. Como esses deslocamentos acontecem por livre e espontânea vontade (vamos dizer assim), há que separá-los daqueles que foram expulsos de casa, que vivem em fuga. Esse segundo grupo, os exilados, raramente consegue retornar da viagem. Não lhes resta senão as lembranças de algo que lhes foi tomado à força e que jamais poderá ser recuperado.

É possível que viajar seja mudar a roupa da alma, como escreveu Mário Quintana, mas talvez seja também uma inquietação, uma insatisfação, uma vontade frustrada de regressar.          


sexta-feira, 17 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXVII)


O Triunfo da Morte, óleo sobre tela, 1562
(Pieter Bruegel, o velho, 1525-1569)

Quando comecei o Diário da Quarentena, em 23 de março, imaginei que, no máximo, escreveria umas 30 ou 40 crônicas (média de 500 palavras cada) e, depois, a vida voltaria ao ritmo cambaleante que a caracteriza. Ou seja, o mundo se adaptaria (como sempre) aos pequenos colapsos diários.  

A ingenuidade custa caro. Este é o texto nº 117 e a contabilidade da necropolítica parece não ter fim. Todos os dias se tornaram um único dia, um longo feriado ou a monotonia repetitiva de Vladimir e Estragon – que, a todo instante, sussurra no ouvido que ninguém está a salvo.

A metáfora da situação excepcional encontra em A Peste, de Albert Camus (1913-1960), a sua mais completa tradução: Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram as pessoas igualmente desprevenidas.

Nas páginas de Peste e Cólera, de Patrick Deville (n. 1957), surge outro elemento importante: A grande peste da Idade Média, a peste negra, causou vinte e cinco milhões de mortes. Metade da população da Europa foi dizimada. Nenhuma guerra jamais provocou tamanha hecatombe. A amplitude do flagelo é metafísica, revela a ira divina, o Castigo.

O otimismo se irmana com a loucura, o negacionismo grita mais alto e tenta calar a razão – que, apesar de seus pontos cegos, ainda é a melhor maneira de tentar desenhar essa miragem que chamam de futuro.

A utopia se transformou em distopia. Similar aos romances catastróficos de ficção científica, o inimigo não pode ser identificado – é um ente invisível, uma ameaça amorfa – e está revestido de medo.      

Somente o bom senso conseguirá impedir o surgimento de uma das pragas mais nefastas da convulsão social, os curandeiros. Esses comerciantes do pânico não possuem escrúpulos e querem vender a esperança como se fosse mercadoria. Oferecendo poções coloridas e milagres avulsos, esboçam um paraíso que não pode ser entregue – porque inexistente.  

Mas, como se não bastasse esse tipo de alucinação, a crise tem outros vetores. A quarentena se converteu em sinônimo de solidão: famílias estão separadas, amigos trocaram abraços por mensagens de whatsapp, o surgimento de novas relações amorosas ficou mais difícil, as pessoas se distanciaram, sobrou apenas a sombra projetada nas redes sociais – espelho em que Narciso delineia a própria beleza. A angústia está adquirindo uma consistência que dá para cortar com estilete. Aumentou o número de consultas on line com psicólogos. Também houve um acréscimo no consumo de alguns fármacos e diversos estimulantes – a religião daqueles que acreditam que os paraísos artificiais conseguirão diminuir a dor.

O comércio perdeu parte de sua potência e precisou se adaptar ao virtual – que nem sempre funciona e que se mostra incapaz de superar o trabalho presencial. O índice de desemprego fomentou o subemprego e onerou a Previdência Social. Simultaneamente, o Estado revela incompetência para fornecer alguma solução (mesmo que seja paliativa).

Ao longe, felizes, os Cavaleiros do Apocalipse se preparam para a colheita – que promete bater recordes.   


quinta-feira, 16 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXVI)



Minhas ligações com o sagrado são profanas. No principio, era o verbo rezar que definia parte da história da minha família. A Igreja Católica Apostólica Romana, representada pelo quadro do Sagrado Coração de Jesus na parede da sala, unia todos em torno de algo comum. O terço, as novenas, as procissões e a missa semanal eram partes do ritual.

Em algum momento da infância fiquei doente. Não tenho a mínima ideia do que aconteceu. Minha mãe fez promessa a São Bom Jesus de Iguape. Alguma coisa relacionada com levar algumas mechas do meu cabelo para a sala de ex-votos na Basílica de Iguape, no litoral paulista. Eu devia ter uns seis anos. Fui com meu pai. Creio que ficamos quase uma semana na estrada e usamos os mais variados meios de transporte (caminhão, ônibus, carroça e trem). Trouxemos várias pedrinhas de lá. Era costume colocar os calhaus dentro de garrafas d’água. Diziam que beber desse líquido era bom para curar várias doenças e prevenir outras tantas.

Os primeiros livros que li foram hagiografias (presente de uma das avós). Fiz curso de catecismo. Depois, Primeira Comunhão. Segui os protocolos da tradicional família católica brasileira, apesar de nunca ter roubado vinho da sacristia. No entanto, convém esclarecer, sempre detestei me confessar. Estou convicto de que os meus pecados não são para ser divididos com estranhos – se, em algum momento, tiver interesse em genuflexórios, vou procurar um psicanalista.

Na adolescência, me afastei do catolicismo. As urgências da carne foram mais fortes do que o asceticismo. Jamais me arrependi dessa decisão. Até porque o gozo compensou qualquer sentimento de culpa que, por ventura, pudesse surgir no horizonte. Em 1976, uma de minhas irmãs, ao ver que algo está fora de prumo, me sugeriu uma espécie de estrada para Damasco, ou seja, me inscreveu em uma Jornada (que era uma espécie de doutrinação ideológica do catolicismo). O truque não funcionou, inclusive porque, como complemento, naquelas alturas do campeonato eu já tinha conseguido matar (no sentido freudiano) meu pai – ou seja, não havia mais lugar para qualquer deus na minha vida.



Na sequência, Cronos devorou os dias e Baco se estabeleceu como guru da esbórnia. Apesar de o Parnaso estar distante dos olhos gulosos, aqui e ali acenaram em meu favor uma ou duas ninfas – nem sempre as ideais, mas eu também não era exatamente um bilhete premiado da loteria. Comi a ambrosia e me embriaguei na loucura que somente os corpos conseguem compreender. Foi bom.

Muito tempo depois, como acontece com todos aqueles que permitem as dúvidas, procurei por algum tipo de alternativa. Por diversos motivos, que não cabem esclarecer neste momento, flertei com o budismo. Na teoria, uma beleza; na prática, uma tristeza. Faltaram satoris, sobraram confusões. A arte cavalheiresca do arqueiro zen não funcionou comigo. O vulcão que carrego nas entranhas não simpatizou com meditações, mantras e elevação espiritual. Mas, como Buda não deixa seus filhos desprotegidos, de vez em quando surge pequenas recaídas, umas vontades de ser mais sereno, menos colérico. Na medida do possível, costumo salvar aranhas, formigas, besouros e borboletas, defendo a conservação da natureza e acredito que, em algum momento, o mal será punido.   

Enfim, no que se refere à religião, convivo com a confusão, com as rupturas e as heresias.   



P.S.: Minha mãe é adepta das religiões de matriz africana e do espiritismo. Mas, isso é conversa para outro dia.