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quarta-feira, 28 de abril de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXCVIII)

 


The economy, stupid! Em tempos de pandemia, o projeto econômico brasileiro transformou o pensamento de James Carville (popularizado por Bill Clinton) em um mantra multiuso. Para qualquer motivo (isolamento social, compra de vacinas, queda de rendimentos nas estruturas comerciais, reformas no serviço público, etc.) a frase ressurge no horizonte com o poder destruidor que caracteriza o movimento das placas tectônicas.

Pisando em degrau inexistente, a equipe econômica que trabalha para o governo está usando de argumentos etéreos para explicar que algumas verbas precisam ser deslocadas de setores essenciais (saúde, educação) para prioridades difusas. A possibilidade de satisfazer a voracidade do deus mercado e o alto custo de manter o poder (todos os dias uma nova fatura é emitida, valores elevadíssimos, o agiota tem pressa em receber, os cofres públicos estão vazios) estão se impondo às necessidades da população. Na falta de metáfora de melhor qualidade, os economistas asseguram que a boa saúde financeira evita que o país se aproxime da beira do precipício.  

A razão econômica neoliberal – baseada na acumulação privada dos bens – considera descartável o ser humano e está alicerçada em um projeto social de exclusão. As tabelas de Excel, nas colunas que mostram as variações entre o custo e o benefício, indicam que os programas de privatização são a solução redentora para qualquer desequilíbrio nas contas públicas. Sintomaticamente, não avisam que existem interesses pouco transparentes por trás dessa ideia. E que grandes fortunas se formam quando mercenários tomam de assalto os bens públicos.

Nada escapa da voracidade predatória das áreas parasitas que, através da destruição, pretendem sanear as finanças públicas com uma versão moderna da fábula da galinha dos ovos de ouro. Ao exterminar a máquina burocrática e, simultaneamente, o contribuinte (aquele que paga as contas) os sicários acabarão desempregados – mas isso não os preocupa de imediato, o trabalho sujo sempre rende bom pagamento.

Em outra chave de leitura, o número de mortes relacionadas com o Covid-19 no Brasil parece ser de agrado do pessoal que finge entender de finanças. Estudos recentes mostram que a Previdência Social pode ser beneficiada com a pandemia. Deixar de pagar aposentadorias e serviço médico (procedimentos, medicação) para cerca de 400 mil pessoas representa um volume financeiro considerável. Esse raciocínio possui vários nomes, a lista é enorme, depende do gosto do freguês: genocídio, eugenia, extermínio, aniquilamento, chacina, necropolítica, aporofobia, “melhoramento social e econômico”, etc.

Em tempos sombrios, a morte é companhia constante. A esperança do prolongar a vida está depositada dentro de um frasco de vacina. O governo federal está ciente dessa situação e parece não ter pressa em resolver o problema. As dificuldades para compra do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) e os constantes insultos aos parceiros comerciais internacionais fazem parte da rotina governamental. 

De um lado, a ameaça constante de reduzir a máquina estatal ao mínimo; de outro, o negacionismo científico. O Brasil está caminhando no fio da navalha e são poucas as chances de sobreviver. Como se isso não bastasse, cabe lembrar que, sem permitir um tubo de oxigênio para quem está sendo asfixiado pela política econômica governamental, isto é, um auxílio emergencial temporário com valores significativos, a incompetência administrativa do governo não passa de uma forma de apagar o brilho no olhar daqueles que amamos.


quinta-feira, 22 de abril de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXCVII)

 


Gosto mais da família dos felidae do que da dos alligatoridae. Mas isso não vai impedir (sobre a nudez forte da verdade e o manto diáfano da fantasia) o início da minha transformação, na próxima semana, em jacaré (crocodilo, alligator, caimão, lacoste, sei lá quais outros nomes esse animal pouco simpático possa ter).

Se isso acontecer, mandarei selfies para amigos e inimigos – todos precisam saber que fui vacinado e que, por enquanto, para alegria e tristeza do distinto público, vivo tranquilamente todas as horas do fim, como diria Torquato Neto, se estivesse por aqui, a contemplar essa paisagem em ruínas que chamam de Brasil.

Chances existem dessa metamorfose ambulante não acontecer. Pelo menos, duas estão na ordem do dia, para desespero dos gigolôs da estatística – aqueles que cravaram 100% de possibilidades para que a festa dos répteis (sem aglomeração, óbvio) seja um retumbante sucesso nas margens de rios, lagoas, igarapés e parques aquáticos.   

Talvez faltem vacinas, a escassez impera e destempera as esperanças de quem morre de medo da indesejada das gentes. Nesse caso, enviarei à ansiedade algum anestésico, direi te acalma, minha loucura, por exemplo. Vida louca, louca vida, nesse momento de frustração o melhor a fazer é colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto a maltratar meu coração, mero recurso de quem, passarinhando, furtou alguns textos de várias antologias amareladas pelo tempo (poeta frustrado, considero que esses versos manchados de lágrimas, rosas secas e tristes recordações são meus, posto que sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, e vivo a brincar de heterônimos e simulacros).

Outro inconveniente está no meu histórico ginecológico, perdão pelo trocadilho imaturo, genealógico. Infelizmente minha família (desde a geração ancestral, aquela que povoou esse pedaço de terra que tomamos dos indígenas) é imune às modificações animalescas – muitas vezes o que fazemos de melhor é o contrário, ou seja, antropomorfizar o que deveria continuar sendo bicho e/ou objeto. Então, cabe entender que a ação mimética desconsidera a aritmética, duas doses de vacina talvez não produzam um descendente dos dinossauros. E isso me deixará desolado. Isolado? Ensolarado? Encantado? (é melhor parar por aqui, antes de esgotar as palavras que rimam e não são uma solução).

Descontando esses pequenos inconvenientes, sonho acordado com a vacina. Meu braço não tem preferência por fabricante ou anunciante. Não é hora de brigar por espaços competitivos ou reserva de mercado. Quero aquela que o Sistema Único de Saúde (SUS) entender que é a parte que me cabe nesse latifúndio (quer dizer, roça de subsistência, que o preço do feijão não cabe no poema, o preço do arroz não cabe no poema, não cabem no poema o gás, a luz, o telefone, a sonegação do leite, da carne, do açúcar, do pão). 

Enfim, Serafim, será o fim do tempo de espera para sair à rua, deixar de lado essa brincadeira que é protestar contra os absurdos do governo nas redes sociais, eu quero é abraçar a vida, ir ao cinema, tomar sorvete no meio da rua, voltar a frequentar bares e restaurantes, conhecer outras cidades e vilarejos e, quizás quizás quizás, pensar (mas não muito) no amor.  


segunda-feira, 12 de abril de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXCVI)

 


Estou de férias. Resolvi desacelerar e, se for possível, respirar melhor. Trinta dias não serão suficientes para alcançar a serenidade de monge budista ou de mártir cristão. Não tenho vocação para esse tipo de estoicismo. Mas, se isso significa alguma coisa, estou me esforçando para ficar distante dos problemas, para diminuir a aflição.

Estar em casa, envolto no silêncio, deve auxiliar na faxina geral. Mas não se trata de jogar fora objetos que foram sendo acumulados com o passar do tempo. Esses não importam muito e não constituem estorvo ou admoestação. A questão principal é de outra ordem. Um conjunto de acontecimentos pessoais me deixou próximo do nocaute. Cambaleei, quase fui ao chão, estou tentando recuperar o prumo e, na medida do possível, seguir em frente.

Desta vez, o fosso (repleto de jacarés famintos) que construí ao meu redor não foi capaz de fornecer proteção. O desassossego encontrou uma fissura na parede e invadiu – sem pedir licença, sem se importar se estava instalando a angústia e a tristeza. Dizem (esteja o sujeito preparado ou não) que as perdas fazem parte da vida e que o show deve continuar. 

Recomendaram-me procurar por ajuda profissional. Recusei. Decidi – em um primeiro momento – enfrentar a tempestade de mãos limpas, sem escudos, sem rede de proteção. Não quero usar anestésicos. Além disso, tenho mais medo do que se encontra do lado de fora da porta do apartamento em que moro do que dos meus fantasmas particulares.

Inconvenientes, as recordações aparecem nos lugares e nas horas mais estranhas. No supermercado lembrei o pânico diante de escada rolante e de elevador. Não adiantava insistir que aquilo era pouco razoável, um temor bobo, você preferia subir pela escada convencional três, quatro andares, gastando fôlego. Eu, claro, ficava furioso. Depois, uns cinco minutos depois, vencido pelo inevitável, também estava achando graça com aquilo tudo, uma imensa bobagem que compartilhamos tantas vezes.

As fotografias estão ficando desbotadas. Sentado no sofá, olhei uma por uma, o álbum transformado em catálogo de conversas, histórias, desentendimentos. Você sabia que essa coisa estranha que chamam de felicidade encontra sentido em pequenas vitórias, em detalhes quase insignificantes – quantas vezes a risada fácil espantou os vizinhos nos mil e um lugares onde você morou?

Nesses anos todos, uma legião de amigos e conhecidos entrou e saiu de tua vida. Alguns ficavam um pouco mais de tempo, outros eram fugazes. Poucos os permanentes. Essa circunstância parecia te divertir, a perspectiva de quem adorava as mudanças (algumas vezes trocava os móveis de um lugar para outro, na tentativa de imaginar que estava em outra casa, em outra cidade).

Foram muitas as ocasiões, durante uma visita, que você me perguntou, com voz doce, aquele mel da sedução, se eu não tinha uns trocados para “emprestar”. Emprestar a perder de vista?, eu perguntava imediatamente, confirmando a tática de provocação que solidificava o nosso (con)viver. Você olhava para o lado, talvez para dissimular a alegria. Ciente de que eu não negaria o dinheiro, pegava as notas rapidamente, me dava um abraço, e me mandava embora.     

Agora, depois que o cordão umbilical foi rompido em definitivo, só me resta administrar as lembranças, essa herança que emerge do passado em doses homeopáticas. 

Estou de férias – ajustando as contas com a nossa história comum. Ainda não estou preparado para dizer adeus.