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sexta-feira, 29 de abril de 2011

EMÍLIO DE MENEZES (ALGUMAS HISTÓRIAS)

Algumas pessoas vieram ao mundo a passeio. E o seu trafegar pelo tempo e pelo espaço sempre foi em ritmo de festa. Emílio de Menezes (1866−1918) foi um desses iluminados. Era um homem gordo que, nas horas vagas, talvez por pura pândega (como se dizia na época), cometia alguns versos parnasianos. No entanto, suas melhores e mais importantes qualidades eram outras. Sarcástico e mordaz, foi, sem a menor dúvida, o gatilho mais rápido do humor brasileiro. Rei do trocadilho, Menezes era daqueles que perdem o amigo, mas não perdem a piada. Em outras palavras, brigou com meio mundo – a outra metade já não o suportava há muito tempo!
Nasceu em Curitiba (PR), mas morou quase toda a sua vida no Rio de Janeiro.


HISTÓRIAS

Um poeta encontrou Emílio em uma confeitaria (os bares da época) e lhe disse:
− Ontem escrevi dois sonetos. Um deles está aqui. Vou lê−lo e gostaria de ouvir as tuas impressões. Amanhã trarei o outro, para tua apreciação.
Depois de ler o soneto com ênfase, o poeta fez a pergunta:
− O que você achou?
Emilio, que tinha ouvido com atenção, disparou:
− Prefiro o outro.

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Passou uma senhora carregada de jóias. Alguém fez o comentário:
− Que lindos diamantes!
Emilio se limitou a dizer:
− Podem ser di... amantes.

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O poeta Guimarães Passos, tuberculoso, vivia lutando contra a doença. Quando publicou o livro "Tratado de Versificação Portuguesa", Emílio não perdoou:
− Desde que eu o conheço, ele tem tratado de ver se fica são.

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Depois de uma conversa com Emílio, Teixeira Mendes (um dos líderes do positivismo), despediu−se:
− Até logo. Eu agora vou para o apostolado.
Emílio retrucou, de bate−pronto:
− E eu vou para o lado oposto.

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Certa senhora, encontrando Emílio na rua, pôs−se a apalpar seu (dele) ventre e fez uma referência a sua (dele) gordura:
− Nossa! Como engordaste, Emílio! O que há aqui por dentro, hein? Você pode me dizer?
Emílio, num gesto, desceu com a mão da cabeça ao barrigão, explicando:
− Até aqui, uísque! Daqui para baixo, parati!

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Em uma exposição de cereais, um desses gozadores eternamente de plantão apontou Emilio e brincou:
− É milho!
A reação foi instantânea:
− Hoje você está com a veia.
E pondo a mão no ombro do engraçadinho, o impediu de escapar:
− Não S’evada. Com isso é que me in... trigo.
E, fazendo o adversário sentar em uma cadeira, aplicou o nocaute:
− Sentei−o!



Ao lado, busto do humorista (e poeta) em Curitiba.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

FÁBULA SOBRE O CIÚME

− Pouco importa tuas razões, isso não se faz!

− Não te entendo, Você é, ou não, meu amigo?

− Que pergunta, claro que sou!

− Então, por que você não quer compreender a minha situação?

− Tenha dó! Abandonar a noiva no altar é coisa de adolescente imaturo.

− Não se trata disso! Era uma questão de vida ou morte!

− Por favor, sem exageros!

− Que exagero? Não estou louco!

− Ah... Então tá! Fico feliz em saber disso!

− O que é isso? Ficou cínico, depois de velho?

− Cínico, eu? É você que dá o cano na coitada e eu é que sou cínico? Nada como um dia depois do outro, com uma noite pelo meio!

− Pois bem. De uma vez por todas, vamos esclarecer o que aconteceu. Depois você poderá dizer se eu tinha razão ou não, tá certo?

− Tá certo! Pode começar a história da carochinha.

− Você não quer me levar a sério, não é? Tudo bem, o problema começou quando conheci Andréia. Ela é uma gracinha. Meiga, bonita, inteligente... Aquela mulher tem todas as qualidades com que a gente vive sonhando para a nossa "cara metade".

− Que enrolação! Por favor, vamos ao que interessa!

− Começamos a namorar. No princípio fez−se a luz. Ou melhor, o ardor. Amoroso, é claro. A mulher é um vulcão. E me levou ao Paraíso milhares de vezes. Meu Deus! Depois de algum tempo, me rendi ao inevitável e propus casamento. Foi ai que começou a confusão.

− Meu amigo, todas as mulheres bonitas são sinônimo de confusão. Poupe−me, evitando as redundâncias!

− Acontece que uma nuvem gigantesca de ciúmes pairou sobre nós. Andréia começou a me seguir. No início, pensei em coincidências: oi, meu amor, você aqui, que surpresa! Depois, houve excessos de coincidências. Mas, isso era coisa sem importância. O pior ainda estava para acontecer. Certa vez fui a um aniversário, no apartamento de uma colega de trabalho. Todo o pessoal da repartição estava lá. Andréia, que não havia sido convidada, apareceu no meio da noite.

− E daí?

− Ora, foi a maior baixaria. A mulher entrou gritando: "Traidor! Em vez de ficar comigo, preferiu vir em um aniversário, na casa da amante, seu desgraçado!" E, nesse ritmo de cordialidade, foi ofendendo todo mundo. Nem mesmo o garçom conseguiu escapar. O coitado olhava para mim, apalermado, sem entender nada. Enquanto isso, Andréia o chamava de cafetino, imbecil, débil mental, etc. Uma loucura!

− E o que foi que você fez?

− Eu estava apaixonado: não fiz nada! Quer dizer, conversei com ela, expliquei algumas coisas e...

− Sei. Beijinho pra cá, beijinho pra lá...

− O chato é que a situação se repetiu outras vezes. Tive que mentir para todo mundo que ela estava tomando um remédio muito forte e que às vezes a situação fugia ao controle.

− Sei...

− O pior é que essa agressividade chegou às raias do absurdo. Um dia ela me bateu! Eu estava conversando com a filha do vizinho. Ela viu a cena, endoidou e... Três tapas no rosto. Daqueles que são acompanhados de efeitos sonoros. Baixei a cabeça, não disse uma palavra e fui para casa. No meio da madrugada ela telefonou, pediu desculpas. Além disso, fez juras de amor, prometeu a lua, a felicidade, tudo o que eu quisesse.

− E você aceitou?

− Já disse: eu estava apaixonado!

− Trocando em miúdos: puro masoquismo.

− A gota d’água foi no dia anterior ao casamento. Tínhamos combinado jantar, mas tive problemas no trabalho e atrasei uns quinze minutos. Quando cheguei, fui recebido com unhadas e puxões de cabelo. O segurança do restaurante precisou intervir. Foi um escândalo. Acabei no pronto−socorro. E depois, delegacia. Até Boletim de Ocorrência foi lavrado!

− O que foi que você fez para que ela aprontasse esse estrago todo?

− Veja só: segundo ela, eu estava na farra. Despedida de solteiro, mulheres, strip−tease, bebidas, o pacote completo.

− E não tava?

− Piada tem hora, né? Depois dessa confusão toda não tive escolha: desisti do casamento!

− É, as mulheres são terríveis! Você escapou de uma grande fria, preciso concordar. Vamos fazer o seguinte: ali, na mesa do canto, estão duas amigas minhas. Posso garantir que essas são bem mansinhas! Vamos lá!

quarta-feira, 27 de abril de 2011

terça-feira, 26 de abril de 2011

RECORDAÇÕES DA RIBALTA (I)

Entre as inúmeras bobagens que cometi pela vida afora, houve um tempo em que tentei colaborar com o teatro. Não como ator, é claro. Faltava−me talento e cara−de−pau. Foi lá pelos anos 80 do século passado. Mestre Leoncir Cardoso Borba me disse que estava precisando de um assistente de direção. Em outras palavras, de um "office−boy". Munido de uma paciência estóica – que nunca imaginei ter −, aceitei o convite. Como prêmio para essa insensatez quase quebrei o nariz. Cheio de boas intenções, atropelei uma escada, lá no palco do antigo Colégio Diocesano. Creio que foi durante a montagem de "Deus lhe Pague" (Juraci Camargo), clássico que nenhum grupo amador comprometido com a "causa" artística pode deixar de encenar. Antes já havíamos tentado destruir "O Auto da Compadecida" (Ariano Suassuna). Quase conseguimos. Ainda hoje tento descobrir onde foi que erramos.

Um dia, ao perceber que não possuía os músculos necessários para o "papel" de carregador de cenários, o que comprova o quanto o pessoal da técnica sofre, resolvi me transferir para as fileiras da crítica. Quer dizer, crítica teatral de verdade a aldeia nunca teve. Nem mesmo nos dias atuais. Mas... vá lá, era a oportunidade de continuar "teatralizando", sempre havia um monte de festas, e a socialização (em diversos níveis) era constante e interessante.

Além disso, iria assistir a todos os espetáculos (de graça) e, mais importante, seria pago para escrever sobre eles. Ledo e airoso engano! Logo na primeira semana, durante uma das apresentações que integravam o FETEL (Festival Estudantil de Teatro de Lages), perdi a paciência com uma montagem ruim e... "sentei a lenha"! Munido da "otoridade" do cargo, despachei o espetáculo para o cesto de lixo mais próximo. E da maneira mais cruel possível. Resultado: fui despedido. Alguém pediu a minha cabeça e o jornal atendeu a solicitação.

No ano seguinte, prometi me comportar. Ao fazer a cobertura do evento para outro jornal, caridosamente poupei vários erros absurdos. Mas não houve jeito: na primeira oportunidade, descarreguei a metralhadora. Entre mortos e feridos, cabe destacar a forma carinhosa com que um moço educadíssimo me ergueu pelo colarinho uns bons dez centímetros do chão. Parece que não compartilhávamos da mesma opinião. Felizmente, antes que o Hulk promovesse algum estrago no meu rosto, a turma do "deixa−disso" interveio e no melhor estilo "cavalaria americana" evitou o escalpo. Ufa!

Depois dessas aventuras, aceitei ser jurado do FETEL. Duas vezes! 1983 e 1985. Foi doloroso. Para aqueles que dividiram a função comigo. Nunca, repito: nunca, compartilhei da opinião da maioria. Sempre votava nos espetáculos que me pareciam estar "alinhados" com uma "postura política de transformação social". Naqueles tempos a mosca azul do comunismo juvenil estava com a corda toda. É possível que o Padre José Antônio (uma figura fantasticamente gentil), lá pelos idos de 1985, tenha pensado (durante um desses debates idiotas em que a gente se mete sem saber porquê ou para quê) em pedir minha excomunhão – tamanha bagunça aprontei.

Em 1985, por culpa do Nelson "Furmiga" Andrade, fui convocado para "contribuir" com o teatro catarinense. Ele havia proposto o meu nome como jurado do II FECATE (Festival Catarinense de Teatro), que se realizou em Florianópolis. Não lembro o motivo que me fez aceitar essa tarefa, embora tenha certeza que não foi competência. Fiquei uma semana hospedado em excelente hotel, comendo e bebendo do bom e do melhor. O único (único?) inconveniente era assistir quatro peças por dia. Alguns dias, cinco. Em algumas, dormi. Em outras, abandonei. Bastavam as luzes apagarem e, da maneira mais irresponsável possível, dava um jeito de sair. Só voltava para o encerramento ou para o debate (nos casos em que eu era o mediador). Mesmo assim, foi divertido. Conheci varias pessoas muito mais malucas do que eu, bebi caminhões de cerveja, e aprendi umas duas ou três coisas que me ajudaram a entender um pouco melhor a vida.
Com o passar do tempo, apesar do estímulo de atores como Lota Lothar Cruz (que fez do teatro uma lição de fé e esperança), concluí que o mundo e as artes cínicas, digo, cênicas, poderiam sobreviver sem as minhas confusões. Estava na hora de atormentar outras pessoas, em outros lugares.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O PRÍNCIPE VAI (A)CASA(LA)R

William Arthur Philip Louis, 29 anos, provável herdeiro do trono inglês, vai casar. Dia 29 de abril de 2011. A eleita (que nunca sofreu – ou sofrerá − o escrutínio popular), Catherine Elizabeth Middleton, Kate para os íntimos, 29 anos, aceitou a tarefa de substituir a mãe, a mãe do noivo, aquela mesma que, 14 anos atrás, foi imolada pela voracidade do consumo capitalista, aquela que literalmente ardeu nas chamas da fama, envolta no glamour somente possível em França (país que adora brincar de incinerar Joana d’Arc).

The Princess is dead. Long life for the Princess!

Middleton, sobrenome adequado para uma futura rainha, numa tradução canhestra, uma porção média, soando eufonicamente como middle town, está descobrindo que London London é aqui, ali e acolá, o império onde o sol jamais se põe é extenso, intenso e diverso.

Circulam boatos que a bonitinha já fez de tudo, tudo mesmo, com o príncipe, o que foi saudado alegremente com fogos de artifícios em Buckingham, muitos membros da British Royal Family já caíram em armadilhas bem constrangedoras. Em termos de baixaria Sarah Ferguson e os príncipes Andrew e Charlie (replicado farsescamente no plebeu homônimo Sheen) nunca foram exceções. Basta ler algumas biografias de alguns dos artistas nascidos naquelas bloody islands para entender que os pervertidos, depois que abandonam o jugo familiar, entram em fase de delírio, a vida estudantil é uma selva, ninguém perdoa ninguém, loucura pouca é desperdício de talento, e, em nome das descobertas intimas, "todos toleram uma sodomiazinha amigável entre colegas, de vez em quando" (como escreveu Jonathan Coe, talvez com conhecimento de causa).

Como a modernidade é um dos sinônimos da civilização anglo−saxônica, cabe, educadamente, omitir que James William Middleton, irmão de Kate, 21 anos, acrescentou pequena glória ao histórico palaciano quando foi surpreendido experimentando roupas femininas. Comentários, diante do armário aberto, concordaram que o modelito teve caimento perfeito no corpitcho do mancebo.

Any way, como costumam dizer lá em Álbion, se valerem algumas histórias sobre o quanto as famílias dos noivos são esquisitas, não há porque estranhar que, quando Kate conheceu William (não confundir com o músico, músico?, Will.I.Am), o rapaz era, digamos, um analfabeto sexual, ela provavelmente precisou utilizar de toda a pedagogia possível com o príncipe, ensinar o basicão do enjoy the sex, a mão naquilo, aquilo na mão e aquilo naquilo. De várias maneiras, formas e sabores. Como prêmio para tanto esforço agora tem o prazer de usar o anel que foi propriedade da sacrificada sogra. As delícias de cama, mesa e banho são formas contemporâneas de escravidão.

Na outra ponta da corda, aquela senhora com ares de cão de caça, que adorna sua augusta fronte e seu glorioso colo com alguns quilos de pedras preciosas roubadas das colônias, munida da ameaça de não nomear William como o seu sucessor, deve contribuir para silenciar alguns arrebatamentos e escarcéus. Mostrando que também sabe tirar coelho de cartola, digo, do chapéu retrô e kitsch que costuma usar em solenidades políticas e sociais, Sua Majestade Real, a Rainha, espera que o matrimônio do príncipe garanta algum fôlego para a monarquia, urge calar as ingratas vozes republicanas, essas mesmas que recusam compreender o esforço patriótico da família real nos campos de golfe, nas caçadas à raposa ou nas festas regadas a champagne e caviar.

Para que isso aconteça, o casamento real, além da consagração de uma história de amor, também implica na imposição de one role model. Guilherme, perdão, William, como se não bastasse ter que agüentar as maluquices do irmão (que talvez compareça ao enlace vestindo o uniforme da Wehrmacht), do pai, dos tios e das tias, e de vários primos e primas, ainda precisa preservar o nome familiar. E isso ele tem procurado fazer, seguindo o padrão de normalidade de um cachorrinho bem adestrado, que nunca mostrou rebeldia em público, que nunca infligiu regras (diferente de Harry, aquele que nunca será Potter).

William, conforme o que determina o estatuto do charming Prince, sempre foi um bom−moço. Mesmo quando, usando kilt, mostra as pernocas. O que, óbvio, não impede surpresas. Se o príncipe tiver os genes dominantes da mãe, sempre haverá a possibilidade de, uns dois ou três meses depois do conúbio, as manchetes dos jornais absolutamente isentos de intenções malévolas (The Mirror ou The Sun, por exemplo) estamparem o principesco desejo (absolutamente compreensível em qualquer homem) da transmutação erótica: ser o tampax real ou, sei lá, o absorvente da moda, o passear consensual e impune pelos aposentos privados do castelo.

No entanto, a pompa e circunstância que emolduram o casamento, the honey moon e outros néctares, devem impedir, por enquanto, que se tornem públicas essas provas de amor. Seguindo as normas sociais que regem a casa de Windsor (conhecida em outros carnavais como Saxe−Coburgo−Gota), alguns sacrifícios precisaram ser efetuados. Principalmente depois que o patinho feio preferiu pagar ingresso no parque de diversões da Duquesa da Cornualha.

O quadro se mostra simples: o jovem e tenro William é a vítima da vez. Só o tempo dirá se essa aposta de Elizabeth é racional ou fruto da esclerose.


A encenação matrimonial vai ocorrer em Westminster Abbey, local mágico para esse tipo de espetáculo, o povo ficará encantado, e, mais uma vez, perderá a oportunidade de separar o real e o imaginário. Para ajudar na mi(s)tificação, o Youtube vai transmitir o evento ao vivo e em cores, possibilitando para aqueles que, ordeiramente, acenarão para a carruagem real, o acesso virtual a imagens que, daqui a alguns anos, quando esse casamento (assim como aconteceu com o consórcio afetivo da mãe de William) estiver esfarelado, serão o equivalente ao velho retrato de família pendurado na parede.

Noves fora zero, com essa troca de alianças em público, o príncipe talvez esteja sonhando em legalizar o complexo de Édipo: dormir ao lado de uma nova "princesa do povo", com o direito adicional do espocar frenético dos flashes dos paparazzi. Nenhum problema, muita gente considerada mentalmente sã também compartilha da esperança de substituir o pai no tálamo conjugal.

Como os contos de fadas nunca devem ser desprezados, apesar do salutar schadenfreud (a nos lembrar que tropeções alheios são as nossas alegrias mais sinceras), cabe, no pub mais próximo, pedir a shot of spirit or a half pint of lager (quiçá Royal Virility, que é uma potente mistura de cerveja e viagra) e brindar ao lovely wedding.

sábado, 23 de abril de 2011

AINDA SOBRE NEREU GOSS

FRASES

− "Todos tem dó dos povos do Terceiro Mundo. Ninguém tem dó de mim, que vivo em um quarto imundo".
− "Não sou bom−retirense. Talvez bom−retirante".
− "Desenhista de mão−cheia? Não! Desenhista de cara−cheia!!!".
− "Conselho de paz: armai−vos uns aos outros".
− "Andam dizendo que fui o patrimônio líquido da Prefeitura. E que a Brahma pensou seriamente em transferir a sua nova fabrica quando descobriram que eu estava querendo parar de beber!".
− "Atualmente, não existe mais bêbado de classe. Pelo menos, da minha classe. Nunca caí na rua. Uma vez "trupiquei" ali na Cel. Córdova – mas foi só uma vez! Hoje, a cidade está cheia de bêbados de sarjeta".

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HISTÓRIAS

Foi no tempo em que o Presidente da República era Nereu Ramos e o Ministro da Guerra, Goes Monteiro.
Bino Borges perguntou, em tom de brincadeira:
− Como é que vai o Nereu Ramos de Goes Monteiro?
A resposta foi fulminante:
− Sou Nereu, não sou Ramos, Sou Goss, não sou Monteiro. Bebo a "cana" do segundo e tenho a "classe" do primeiro.

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Aniversário de seu grande amigo Edézio Nery Caon, lá pelos anos cinqüenta. Morando em Porto Alegre e tendo que enfrentar a eterna falta de dinheiro, enviou um telegrama com o seguinte texto:
"Felicidades aniversário pt Amigo e telegrama caríssimos pt".

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Essa também foi nos tempos de Porto Alegre. O livreiro João (Francisco Régis) Rath de Oliveira, inocentemente, perguntou:
− Nereu, qual é a distância entre a pensão em que você vive e o escritório em que você trabalha?
− Normalmente, três bares. Mas conheço um atalho que dá para fazer em 14!!!!

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Quando completou 70 anos, alguns amigos se reuniram e promoveram um grande jantar de comemoração. Lá pelas tantas, chegou, super−atrasado, o medico Décio da Fonseca Ribeiro. Junto com a esposa, cumprimentou o aniversariante:
− Nereu, meus parabéns! Felicidades! E me desculpe, mas é visita de médico: já vou me retirar...
− Visita de médico? E quanto é que lhe devo pela consulta?

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Trabalhava em um escritório de engenharia como desenhista quando um amigo o convidou para uma viagem ao sul do Estado. Em ritmo de alegria geral, aceitou imediatamente. Alguns dias depois estava em Florianópolis. Logo que pisou na ilha, mandou um fonograma ao patrão, comunicando o paradeiro. Não demorou muito e recebeu um telegrama urgente, pedindo a sua volta. Depois, outro. E mais outro. Lá pelo décimo, mais ou menos, Nereu perdeu a paciência, foi até a agência dos correios e mandou a seguinte mensagem: "Já vou!". Depois, aproveitou a ocasião e entrou no "Felinto", um bar que havia ali ao lado, e bebeu mais uma.

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Na época em que os clubes sociais "14 de Junho" e "1° de Julho" eram grandes rivais, Nereu encontrou uma solução conciliatória:
− Bebo a primeira no Quatorze e quatorze no Primeiro!

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Certa vez, durante o expediente da Prefeitura, um contribuinte perguntou por fulano de tal.
“Tio Nera” respondeu prontamente: “Tava aqui, já saiu e não sei para onde foi”.
O homem foi embora e o sossego voltou à repartição.
Logo depois, alguém perguntou para Nereu: “Mas o que foi isto? Tu nem sabe de quem ele estava falando! Ou sabe?".
Resposta rápida: "É claro que não sei. Mas, já pensou o tempo que eu perderia se soubesse? Quanto dispêndio em blá-blá-blá... Até nos darmos conta de que fulano de tal não se encontra por estas bandas mesmo?

Segundo João Eduardo, que lembrou desse episódio: “Tremenda aula de filosofia social econômica, política e, como se não bastasse, de conduta prática” !

quarta-feira, 20 de abril de 2011

CÂNTICO EM CINCO ATOS PARA NEREU GOSS


I
Depois de procurá−lo pelos quatro cantos da cidade e de ouvir mil e duas sugestões sobre onde poderia encontrá−lo (Florianópolis, o bar da esquina, o bar da outra esquina...), ele apareceu em frente à Prefeitura, armado de sorriso arteiro e leve ar de melancolia. Havia passado outra temporada no inferno, i.é., esteve internado, mais uma vez, para desintoxicação alcoólica. Mas, não havia perdido as suas iluminações: é um poeta. Um tipo muito especial de poeta. Daqueles que nunca publicaram um único verso. Daqueles que preferem viver os poemas que o papel nunca registrará.

Aos 71 anos, Nereu de Lima Goss está rejuvenescido, cheio de vida e de planos. Quer terminar o livro que está escrevendo. São "irreflexões", pensamentos, máximas, histórias... Quer, também, viver mais, muito mais. Principalmente agora que está aposentado, que não precisa se submeter à mediocridade do serviço público, que pode caminhar livremente pelas ruas e pelos bares ("Por favor, não contem para os médicos!"), que não precisa desempenhar o papel de "escravo grego de general romano" – segundo a famosa e filosófica definição de Paulo Francis.

II
Quando o conheci (lá pelos idos de 1975, mais ou menos), ele usava um casaco xadrez e cheirava a cerveja. Muita cerveja. Foi em concurso de poesia. Era um dos jurados. Depois que os rituais se cumpriram, e ele se livrou do pedestal incomodo em que o haviam posto, tivemos uma aula de inteligência. A voz rouca, a língua levemente travada pela bebida, a emoção e os versos que fluíam pela sua mente, com uma rapidez estonteante, logo nos mostraram um mundo novo, cheio de promessas e belezas. E bem diferente da chatice acadêmica da escola. Sua mão nos conduziu para os domínios de Drummond, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo (e o poeminha da rua, da lua e da porta), entre outros. Foi uma revelação, um "satori", um "insight", uma explosão, o universo se abrindo diante de nossos olhos ignorantes.

Muitos anos depois, muitas noites consumidas entre álcool, conversas, conselhos: vejo nos seus olhos o toque do mestre, a defasagem entre aquele que faz a diferença e os outros. Entre catedrais e botequins, Nereu bebia da sabedoria através da emoção sonora da linguagem. A textura da imagem, a linguagem, a lucidez e o verbo, o prazer e o sentimento, o copo viajando entre a mesa e a sede – emoção e tempo, o espaço devorado pelos movimentos, a câmara fotografando o passado e o presente. Estar presente neste momento – haverá maior presente?

III
Palavras, poemas, piadas. A vida nem sempre transcorre como a sonhamos. Às vezes é melhor. Às vezes é apenas a constatação do óbvio. Nasceu em Bom Retiro (SC) e morou quase vinte anos em Porto Alegre (RS). Seu pai era escrivão. Foi à escola diversas vezes. Flertou escandalosamente com a universidade: dois anos de engenharia civil (em Porto Alegre), um ano de ciências sociais (Uniplac) e oito anos de direito (Uniplac) – freqüentou as aulas até o instante em que algum burocrata idiota decretou que havia jubilado. Às vezes pensa em fazer vestibular, outra vez, e "terminar aquela porcaria!". Ainda não decidiu. Talvez não tenha mais o fôlego dos sessenta anos, quando deixou alguns adolescentes (colegas de aula!) cortarem o seu cabelo e, estoicamente, sentado em carteira escolar, reuniu paciência para ficar ouvindo (habitualmente, dormindo) a cátedra dos bacharéis. Seu mundo é outro.

Foi funcionário da Prefeitura de Lages durante trinta e cinco anos. Resistiu a onze alcaides. Uma vez foi nomeado interinamente diretor do Departamento de Obras. Comprou um terno novo e passou a tomar os seus aperitivos no bar do Lages Hotel. Dois meses depois voltou às origens, ou seja, ao Cube 1° de Julho. Concluiu que os "gigolôs de vacas" são muito chatos. E que os cargos em comissão não passam de uma carga sem remissão. Melhor a leveza do ser. Por fim, Nereu "esteve", algumas vezes, arquivista, datilógrafo e desenhista (tipográfico e arquitetônico).

IV
Assistiu a ascensão e queda de "n" instituições culturais. E provinciais. Aprendeu a distinguir os talentosos dos medíocres. Sobreviveu a muitas guerras. Instantes nem sempre felizes que a memória revive com uma cronologia incerta. Colaborou com a "Revista Sul". Culpa do Salim Miguel e do Guido Wilmar Sassi. Rabiscou um artigo sobre Walt Disney e alguns de seus bicos−de−pena ilustraram uns dois ou três artigos alheios. Pequenas vaidades. Mas o que gostava mesmo (ainda gosta) era de sentar em mesa de bar e, entre rios de cerveja, ficar a jogar conversa fora com os amigos. Houve um tempo em que não escondia ao orgulho de conhecer todos os bares de Porto Alegre e Lages. Agora, se contenta com o quiosque da esquina. A experiência de mais de cinqüenta anos de doce embriaguez lhe ensinou que a bebida tem o mesmo sabor em qualquer lugar – o que muda é o barman. Assim, tendo competência, qualquer um serve.

Múltiplo. Escreveu o roteiro do curta−metragem "O parque", dirigido por Joaquim Rheigantz. Pintou aquarelas. Coleciona caricaturas, livros e amigos. Catalogou milhares de filmes (e os assistia sempre que possível). Foi crítico de artes plásticas durante uns trinta anos. Adora as artes cínicas, digo, cênicas (a sala do teatro−de−bolso do SESC, em Lages, tem o seu nome) e acredita que beber cerveja é uma forma de ouvir música.

V
É um "flaneur". Seus modos de encarar e entender a vida são irreverentes (para os conceitos burgueses). Sabe que viajar é melhor do que ficar. Prefere o deslocamento. Travelings emocionais. Mudanças de paisagens, carregando as cicatrizes do existir. Assim como um personagem do Wim Wenders. Talvez. Road movie. Anjo urbano. Lúcido no meio da loucura contemporânea, lúdico na arte cavalheiresca do arqueiro zen. Sem os signos da perda, com a avidez de quem ainda consegue sonhar, bêbado de felicidade.

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P. S.: Apesar dos riscos que caracterizam a literatura datada, conservei a estrutura original do texto publicado na capa do suplemento Anexo do jornal A Notícia, em 22 de fevereiro de 1996. As mudanças foram pontuais, correções de estilo ou de gramática.

Nereu de Lima Goss faleceu em 2004, aos 80 anos.

terça-feira, 19 de abril de 2011

MILLOR FERNANDES EM GOTAS


− A felicidade conjugal é muito rara. Mas também, quando existe, é extraconjugal!

− Quem cedo madruga fica com sono o dia todo.

− Antes de entregar a sua declaração de Imposto de Renda verifique se você omitiu tudo.

− Todos os caminhos levam a Roma, mas cada dia o engarrafamento é pior.

− Precisamos de reformas drásticas que deixem tudo exatamente como está.

− O pobre trabalha para comer. O rico trabalha para comer fora.

− Que coisa difícil é a gente se livrar de uma mulher fácil!

− Como sexo as mulheres são insuportáveis. Mas na hora do sexo não tem nada melhor.

− Dos males o menor. Ou o que der mais dinheiro.

− Respiração boca−a−boca só nas mais bonitinhas.

− O consumidor nem sempre é um idiota – às vezes o consumidor é a sua mulher e o idiota é você.

− Nunca bata num homem caído, a não ser que você tenha absoluta certeza de que ele não pode se levantar.

− É preciso ter coragem. É preciso dar pseudônimo aos bois.

− A morte é dramática, o enterro é cômico, e os parentes, ridículos.

− Fofoca a gente tem que espalhar rápido porque pode ser mentira.

− Tempo é dinheiro. Contratempo é nota promissória.

− Clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os contemporâneos.

− Certas coisas não se dizem "nem pro pior inimigo" porque, se você disser, o inimigo te mete um soco na cara.

− O cara que luta até a última gota de sangue por uma causa provavelmente sofre de hemofilia.

− Me dêem mil atos de absoluta moralidade e eu construirei um bordel.

− Uma coisa extremamente favorável aos bêbados: nunca ninguém viu cem mil bêbados de um país querendo estraçalhar cem mil bêbados de outro país.

− Só há duas espécies de patifes: os que admitem e nós.

− Quem casa para ter um teto sobre sua cabeça corre o risco dele desabar em cima.

− Todo dia leio cuidadosamente os avisos fúnebres dos jornais; às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas.

− Casanova não foi o inventor do sexo grupal. Apenas, como ele era muito competente no seu ramo, o pessoal ia se reunindo em volta e tirando a roupa.

− A mais calma das pessoas fica furiosa se você diz que ela é facilmente irritável.

− A discussão pode não trazer a luz, mas liquida com muita ideia imbecil.

− Sansão, sim, é que era um espetáculo. Quando acabou o seu show a casa veio abaixo.

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A tradição do humor no Brasil não é muito extensa, embora seja intensa. Escritores como o Barão de Itararé, Emílio de Menezes e Álvaro Moreyra são sempre mencionados como pioneiros da causa. Com a multiplicação dos jornais e das crônicas, uma nova safra invadiu a literatura: Fernando Sabino, Aldir Blanc, Luis Fernando Veríssimo, etc.
Um dos grandes desafios da literatura humorística está no minimalismo: "Sintetizar em uma (ou poucas) frase(s) o que outros escritores não conseguem traduzir em um livro".
No Brasil, apenas dois escritores conseguiram cultivar o aforismo com graça e talento: Marquês de Maricá (durante o Império) e Millor Fernandes. O "melhor dos Fernandes" (esse qualificativo era utilizado por Nereu Goss) é um mestre na sutil arte que une a profundidade filosófica e o terrorismo humorístico.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

TIRO E QUEDA

Era uma unanimidade. Do centro da cidade ao subúrbio não se falava de outra coisa. Até os ricos frequentavam aquela casinha humilde, lá pelos lados do Morro do Posto. Todos iam buscar esperanças e soluções para os seus problemas. Poucos se decepcionavam. Em mais de uma oportunidade houve quem mencionasse a palavra milagre. Um exagero, balbuciava com timidez Aristófanes de Antióquia, o mais novo babalorixá da cidade.

Inteiramente vestido de branco (a luz fraca da sala de consultas escondia o colarinho encardido da camisa), colares coloridos em volta do pescoço, fitas do Senhor do Bonfim nos punhos e longas tranças que alcançavam o meio de suas costas, Aristófanes jogava búzios, lia as cartas, interpretava sonhos e aconselhava casais desajustados.

Meus amigos, não sou médico, nunca pretendi ser, aprendi com a natureza, sou formado na faculdade da vida − fazia questão de lembrar o líder espiritual.

Em seguida, prescrevia garrafadas e mais garrafadas de um líquido esverdeado, ótimo para qualquer coisa, desde unha encravada até dores d’amor. Era dessa forma que contribuía para diminuir as dores do mundo.

(Na saída, um cartaz cheio de erros de português explicava que o amor de Deus pelos homens e mulheres é grande, mas aqueles que O representam na Terra precisam comer. Terminava singelamente com a frase Donativos serão bem aceitos).

Recém−chegado de São Paulo, Aristófanes, ao final de suas consultas, utilizava−se de complicadas metáforas para explicar os misteriosos caminhos que o destino percorre para atingir o ponto de equilíbrio que separa a verdade das ilusões. Terminava o discurso afirmando que a fortuna está ao alcance de quem possui ambição. Homens e mulheres só podem ter desgostos na vida se forem fracos, repetia insistentemente. Depois, lia algum trecho da Bíblia, de acordo com os chacras do freguês. O público, estimulado com tamanha sabedoria, aplaudia o espetáculo.

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Aristófanes de Antioquia é tiro e queda, garantiu um amigo do músico Octávio Octaviano, quando soube que o artista estava procurando alívio para uma úlcera que nenhum remédio conseguia controlar.

Em desespero de causa, sem opção melhor, o músico resolveu experimentar essa forma de, digamos, medicina alternativa. Logo que Octávio entrou no recinto, o pai−de−santo o chamou para uma entrevista particular. Lá dentro, uma luz mortiça. Sobre um balcão, dezenas de velas acesas. Perfumando o ambiente, incenso de sândalo.

Sem deixar o cliente explicar o problema que lhe afligia, Aristófanes propôs ler o futuro nas cartas. Antes de qualquer objeção, indicou uma cadeira para o rapaz. Ficaram sentados frente−a−frente. O médium começou a distribuir o baralho pela mesa. Na primeira carta, anunciou grandes mudanças amorosas. Na segunda, que aquele que está só muitas vezes se esquece de olhar para quem está próximo. Na terceira, que as mulheres complicam a vida dos homens. E acrescentou, enquanto segurava as mãos do freguês, A felicidade só depende de você.

Desconfiado, Octávio, que estava olhando as cartas sem entender nada daquilo, levantou a cabeça. Recebeu, em troca, um longo olhar apaixonado e um piscar de olhos arrebatador.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

COMÉDIA DA VIDA AMOROSA



Dudu era apaixonado por Janaína, mas nunca teve coragem para declarar o seu amor.

Enquanto o rapaz sobrevivia às noites corroídas pelo desassossego e pela insônia, a moça beijou Matheus, namorou Henrique, ficou com Cristiano, teve um rolo com Daniel, foi surpreendida em atitudes suspeitas com Pedro.

Sempre na companhia dos piores elementos do bairro (ou dos melhores, depende do ponto de vista), o futuro de Janaína (na opinião de D. Odete, a mais bem informada divulgadora das novidades sociais da região) não foi difícil de ser imaginado. E ninguém discutiu esse vaticínio quando, em um final de tarde de quarta−feira, indiferente à garoa que molhava intermitente os paralelepípedos da rua, a garota arrumou as malas e foi embora.

Dudu enlouqueceu. Não conseguia entender as razões que moviam aquela mulher, a mesma mulher que havia torcido o seu (dele) coração até que todo o sangue parasse de escorrer pelo corpo.

O clímax do desespero ocorreu quando ele compreendeu que não havia recebido sequer um bilhete de adeus. Emagreceu. Encolheu. Defendendo a postura de que tudo vale a pena se a tristeza for imensa, montou acampamento na frente da casa dos pais de Janaína. Sem se importar com o ridículo, esperou pela volta da namorada que nunca tivera.

De tanto ficar exposto às intempéries climáticas, ficou doente. E, em menos de uma semana, foi repartir a melancolia com querubins e serafins, pois somente os anjos conseguem compreender aqueles que morrem por amor.

Em São Paulo, onde vivia alugando o seu apetitoso corpo de 22 anos, Janaína soube da tragédia através da Internet. Desviou o olhar da tela do computador, pensou um pouco sobre a questão e, uns dez segundos mais tarde, disse para uma amiga no camarim da boate:

− Eu até gostava desse sujeito, sabe? Era bonitinho. Mas ele não queria nada comigo. Eu ficava imaginando o momento em que ele viria falar comigo. Nunca veio. Era como se eu não existisse para ele. Adiantou tanta frescura? Morreu. Enquanto isso estou aqui, cada vez mais gostosa. O bobo não sabe o que perdeu.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A ARTE DE VIVER, SEGUNDO GILCA MARIA SILVA


Algumas pessoas fazem da felicidade uma forma de transitar pelo mundo.

Para elas, estar alegre é elemento natural, dádiva dos deuses, atravessar a rua sem traumas. Então, sem medo, frequentam festas, cultivam amigos, livros, parentes e animais de estimação, conversam sobre poesia, viajam e regressam – os álbuns de fotografias engordando, testemunhas silenciosas dos encontros que promovem com a paixão.

Gilca Maria Silva não teme os obstáculos e os sonhos. Talvez seja por isso que a sua presença desafia o imponderável, contagiando a todos com um delirante estar de bem com a vida.

Dublê de artista plástica, mãe de quatro filhos, avó de sete netos, Gilquinha (como é chamada por aqueles que privam de sua companhia) segue um calendário intermitente de novidades, a alma em constante inquietação. Por exemplo, diante das telas em branco, tenta mostrar que o assombro está em nossos olhos. Por isso, não fica quieta e, como uma criança travessa, quando ninguém espera, muda o estilo, mergulha em outra fase – o novo e a procura iluminando mundos antípodas, que se entrelaçam pela ação do desejo. Uma lição de querer, o exprimir dos sentimentos e da arte.

Transitando entre naturezas mortas, madonnas, cubismo – cores fortes e vibrantes −, tudo é tema, forma e desafio, o resgate de um mundo íntimo, rosa a desabrochar no jardim das delícias.

Habitando uma casa imensa, sempre aberta aos amigos, Gilca insiste que a sua vida seja pontuada por algumas liberdades poéticas. Ao lado de Fred Frederico, o seu poddle de estimação, adora tomar chá no meio da tarde. A bebida é servida em legítimo aparelho de porcelana inglesa. Sou a visita diária de minha casa. Tudo o que tenho é para ser usado.

A mesa sempre farta: pães, bolos, geleias. Invariavelmente, algum convidado a lhe fazer companhia. Não estou mais em idade de cultivar a solidão, afirma baixinho, porque esse assunto, idade, é tabu. Minha mãe não se interessa pela cronologia das ilusões. Ela sabe que viver é um ato de imaginação, de criatividade, define Janara Helena, a filha mais velha.

Na luta para colocar cor na vida, Gilca não hesita em transformar os seus sonhos em matéria−prima para essa loucura que é o existir. Com roupas coloridas, às vezes extravagantes, atravessa as ruas da cidade com a mesma jovialidade com que o seu nome aparece nas colunas sociais.

As roupas fazem parte de minha personalidade. Não gosto da tristeza. Um vestido vermelho e um bom perfume ajudam a afastar os pensamentos ruins. É preciso saber aproveitar os prazeres que o dinheiro pode comprar.

E, nesse ritmo, Gilca ignora qualquer coisa que esteja distante de seus planos. Ela sabe o que quer. Por exemplo, antes de viajar para os Estados Unidos (foi aceita para um curso de artes plásticas), contratou um professor de inglês. Provou para os amigos, que reagiram incrédulos à ideia, que não estava cometendo nenhum desperdício – apenas um investimento. Em três meses dominou o básico. Depois disso, na terra dos gringos, aproveitou as palavras dos mestres. Voltou contente, irradiando emoções, uma paz de espírito que há muito não sentia.

Mas não é somente isso. Gilca vai a todas as festas que pode. Aliás, a sua vida social é uma agitação sem fim. Além de pertencer a vários clubes filantrópicos, também presidiu a Associação Planaltina dos Artistas Plásticos. Meu objetivo maior, atualmente, é trabalhar pelas artes e pelos artistas, explica. E nessa luta muitas vezes inglória se desdobra para conseguir patrocínios, organizar vernissages e promover os artistas iniciantes. A pintura é o meu alimento espiritual, declara.

Nas festas, revive o passado, uma imensidão de histórias desfilando (em flash back) diante de seus olhos, as muitas vezes que atravessou o salão de danças nos braços do esposo (já falecido), as amizades que se perderam no passado e as que se solidificaram, um eterno relembrar de um tempo que não existe mais – exceto na memória.

O passado é como uma dessas pérolas que fazem faiscar os nossos corações, uma espécie de música ao entardecer, filosofa.

Junto dos artistas plásticos inventa jantares. Fantasias. Patuscadas. A conversa rola solta, animada pela mais pura e suave descontração. Informações são trocadas, abraços fraternos. Muitos projetos nasceram desses momentos. Certa vez participou de desfile de escola de samba. No carro alegórico regeu o desvario, mostrou na avenida que a arte não pode, e não deve, ficar trancafiada nos atelieres.

Existem também as surpresas. Um dia, Gilca resolveu visitar gavetas, depósitos de um tempo que já cumpriu a sua finalidade. Escondidos da luz e dos olhos ávidos dos curiosos, alguns manuscritos. Trouxe−os para perto de nós e, depois de várias leituras criteriosas, alterou vários desses escritos. O passo seguinte foi perder o escrúpulo e jogar fora outro lote. Como resultado de tamanho esforço, publicou um livro. De poesias. Coração Inquieto não foi exatamente um best−seller. E daí? Nos seus versos encontramos leveza e ingenuidade, coisas só possíveis em quem acredita que escrever é uma forma de conversar com Deus. E nesse diálogo, o que não falta é ternura – Gilca sabe que Ele é onipotente, protetor de todas as horas.

Então, quando perguntada se tem algum plano para as emoções que ainda vai viver, Gilca responde com outra pergunta: De que adianta querer fazer planos, estabelecer metas, controlar o futuro? E complementa, rápida e certeira como a flecha de um arqueiro zen: Importante é viver, uma embriagues de horizontes e doçuras. E que o resto seja azul e ensolarado, como só podem ser azuis e ensolarados os amanheceres no planalto catarinense.

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P.S.1): Este perfil (publicado originalmente no suplemento Anexo, do jornal A Noticia, de Joinville, Santa Catarina, em 04 de agosto de 1997) sofreu poucas alterações. Congelar o texto, em alguns momentos, é o esforço que devemos exercer contra a vulnerabilidade do tempo. A mudança de alguns tópicos ou da escrita implicaria em desmoronamento da arquitetura textual.

P.S.2) Dona Gilca faleceu em novembro de 2021, aos 100 anos de vida!

quarta-feira, 13 de abril de 2011

ENTREVISTA

− O senhor poderia estar nos dizendo o seu nome?

− Tranquilo.

− Tranquilo? Ah, sei... O senhor está tranquilo, não é? Tudo bem. Não estar nervoso é um passo na direção correta. Aliás, essa é uma das principais normas da nossa empresa. Somos todos tranquilos. Mas, por favor, qual é o seu nome?

− Tranquilo.

− O senhor está fazendo algum tipo de brincadeira?

− Não! O meu nome é Tranquilo. Tranquilo Alves da Silva.

− Tranquilo Alves da Silva?

− Sim, exatamente.

− Quem diria, hein? Então tá, vamos prosseguir: o senhor poderia estar disponibilizando a sua documentação para nós, senhor Sereno?

− Tranquilo.

− Sim, eu sei que o senhor está tranquilo...

− Não! Eu não estou tranquilo. Eu sou o Tranquilo!

− Fique calmo! Não há motivo para tanta exaltação!

− O meu nome é Tranquilo. Preste atenção: Tranquilo. Se a senhora me chamar, mais uma vez, de Sereno ou Calmo, "vou estar perdendo a tranquilidade", entendeu?

− Claro, seu Pacífico!

− Tranquilo!

− Tranquilo? Ah, sim! Desculpe.

− Tudo bem.

− Pois, seu Descansado...

− Minha senhora!

− Sua?

− Epa!

− Eu estar equivocada em relação ao seu nome não é justificativa para autorizar intimidades.

− Desculpe?

− Não desculpo coisa nenhuma! E, por favor, fique tranquilo!

− Eu sou o Tranquilo!!

− Vamos esquecer isso. Por favor, os seus documentos, seu Paciente.

− Paciente? Sei... A senhora é que tem tudo para ser paciente e no hospital! O meu nome é Tranquilo.

− Tranquilo? Pelas suas reações, não seria um exagero lhe chamar de Turbulento!

− Engano seu. Eu sou "o" Tranquilo!!!

− Não precisa gritar!

− Eu gritei?

− Sim.

− Desculpe.

− Vamos nos acalmar. Nós dois. Ouviu, seu Sossegado?

− Sossegado é a vovozinha! Eu sou o Tranquilo.

− Não! O senhor é um sem−educação, grita demais, não tem humor e está me deixando irritada!

− Tudo isso?

− E mais um pouco.

− A senhora me permite uma observação?

− O quê?

− A senhora é bonita. Muito bonita. Agora, quando perdeu a paciência, percebi isso. E fiquei impressionado.

− O quê?

− Sei que isso pode parecer uma quebra das regras sociais, nós dois quase não nos conhecemos, mas não "poderíamos estar" continuando essa conversa em outro lugar?

− Agora quem vai perder a tranquilidade sou eu, seu desequilibrado!

− Calma, eu pago o jantar!

− Paga?

− Faço questão. Posso passar aqui, no final do expediente? Prometo que estarei muito mais tranquilo. E, se Deus quiser, até o final da noite, a senhora também!

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A NOBRE ARTE DE VIAJAR EM FAMÍLIA

Cansado de sobreviver aos finais de semana em família − no aconchego do lar, sufocado pelo carinho da esposa e dos filhos −, uma mudança de ares nunca é má idéia. Contra os mil e um desaforos domésticos ou essa tolice que é o contar moedinhas, a nobre arte de viajar surge no horizonte doméstico (raras vezes domesticado) como um antídoto contra a monotonia.

O ideal seria fornecer um descanso para a esposa e, ao mesmo tempo, cansar até não poder mais os filhos.

No sítio da família as crianças não querem ir. Todo ano é a mesma coisa: cavalgadas, pescaria, muita comida e... tédio. Depois de cinco dias nada mais é novo, as brigas começam a se tornar uma constante e não há quem consiga suportar os mosquitos.

Tudo bem, inferno basta o ano todo – em casa. Então, é hora de colocar a cabeça para funcionar e fazer uma lista das possíveis alternativas para que o pesadelo do descanso se transforme em um doce e lindo sonho.

Uma possibilidade é visitar um parente distante. Distante geograficamente, é claro. Que tal aquele tio milionário que mora no interior do Mato Grosso? Dizem que o pantanal é inesquecível. Eis a solução! Quer dizer,... depois de uns vinte telefonemas, a frustração: o tio "amado", que poderia melhorar a tua vida, está em férias! Foi para o nordeste. E ninguém sabe quando voltará!

Estações de água, a casa da irmã em São Paulo (o cunhado é muito chato!), uma viagem pela Europa — cartas fora do baralho. Nada é possível. Ou falta dinheiro ou falta paciência.

O litoral surge como alternativa. É pouco, mas fazer o que? Então, o primeiro passo é alugar casa ou um mísero apartamento de quarto-e-sala.

Supondo que, por um milagre, tudo transcorra como planejado, e, depois de muito pesquisar, você consiga uma casinha, pequena, porém honesta, lá no fim do mundo, ainda é cedo para pensar que tudo está resolvido.

Infelizmente, não está. Essa história de ficar bebendo cerveja, na beira do mar, olhando platonicamente as bundas que passam, é muito bonita, muito charmosa, mas... antes do paraíso, é necessário ultrapassar o purgatório.

O ínício da festa começa com a revisão do carro (que serve também para mostrar que parte do teu dinheiro vai ser gasto antes da viagem). Depois, as compras imprescindíveis: cerveja, roupas de banho, camisetas, mais algumas cervejas...

Superada essa fase, urge encontrar uma “vítima” para ficar com o cachorro. E que o trate bem. Inevitavelmente, as crianças vão exigir garantias, senão... o cão vai ter que ir junto. E isso é pior do que o mar virar sertão.

Aí então, é arrebanhar “as crias”, entrarem no carro, conferir se alguma coisa não ficou para trás — e não dá outra, sempre há esquecimentos (alguns, propositais!). Parece até praga de ex-namorada.

Por fim, vem o translado. BR-282. Os buracos da estrada, os filhos gritando, “pai, quero coca!”, a mulher a beira de um ataque de nervos, as manobras para desviar dos kamikazes (que, na direção contrária, tentam a todo custo causar um acidente), “paiêêêê, tô cum fomi!”, o pneu furado, as cinco mil paradas em todos os postos de gasolina na beira da estrada, a garrafa de água mineral que um dos meninos derramou no banco traseiro, o caos a desafiar os poucos cabelos que te restam na cabeça. E, por fim, para dar um fecho de ouro, a multa por excesso de velocidade. Essa "eles" não cobram na hora. Você nem fica sabendo da infração. Ou se a cometeu, realmente. Depois, uns quinze dias depois, a multa chega pelo correio, airosa e com o prazo de contestação vencido. O remédio é pagar. Afinal, se as contas forem feitas na ponta do lápis isso é apenas mais um monte de dinheiro e como você já está falido... não custa mergulhar no abismo.

No meio da confusão aparece a dúvida cruel: será que isso tudo vale a pena? Afinal, mesmo antes de sair de casa você já está morto de cansaço!

Mesmo assim, a solução é arriscar. Alguma coisa do tipo “relaxar e gozar”. Pois, se pensarmos bem, descanso é descanso, a praia vai ser demais e ninguém é de ferro.

Por fim, há uma recompensa: voltar ao trabalho! Depois desses desastres todos, oito horas de serviço diário podem, inclusive, ter algum charme — tudo depende apenas das provações que você tiver que superar nesses fantásticos dias de sol (e chuva!) que algum louco convencionou chamar de descanso.

Boa viagem!

sexta-feira, 8 de abril de 2011

ALAIDE

Alaíde só usava homens de segunda mão.

Loura natural, alta, um par de pernas capaz de tirar o fôlego do mais obstinado dos monges budistas, curvas mais perigosas do que as da estrada de Santos, Alaíde era o sonho de consumo de todo garanhão pré−histórico. Um demônio em forma de anjo. Ou o contrário, que a ordem dos fatores, nesses casos, nunca fará a diferença.

A sua maior delícia era roubar namorados – não perdoava nem mesmo as amigas mais íntimas. Bastava saber que Beatriz estava interessada por Maiconsuel, que Maria estava "enrolando" Eduardo, que Patrícia queria noivar com Francisco, e um brilho voluptuoso se espalhava por seu rosto. Com determinação e o ardor de uma pantera, lançava sobre o inconfundível objeto do seu desejo uma rede de sedução. Resultado: em trinta segundos, Rogério estava em suas mãos, Dionatan também – citar Antônio é covardia, esse nunca teve forças para resistir a mísero suspiro de mulher.

Depois da conquista, Alaíde enlouquecia a vítima com as mais poderosas artimanhas amorosas. Munida de promessas inconfessáveis, amavios e truques que transformavam o Kama Sutra em conto de fadas, adorava brincar no parque de diversões sexuais que era o corpo dos homens. Com a ajuda de alguns brinquedinhos (algemas e chicotinhos, por exemplo), abateu muitos combatentes em menos de dez minutos.

Intento consumado, usando das prerrogativas do poder, Alaíde (que tratava os amantes como artigos prête−à−manger) não esperava pelo vencimento do prazo de validade do relacionamento amoroso. Na primeira oportunidade, despachava o trouxa da vez e partia para novo agarra−agarra.

Enfim, Alaíde representava um perigo para as relações amorosas do bairro.

Quem conseguia fisgar algum namorado também ganhava o sofrimento de, mais cedo ou mais tarde, perdê−lo para Alaíde. Por isso é que, nos finais de semana, havia uma debandada feminina na região. Com medo de algum pretendente mudar de interesses, as mulheres convidavam as vítimas, digo, os amorzinhos de suas vidas, para ir passear nos parques mais distantes – tudo muito longe dos locais que Alaíde freqüentava.

Esses artifícios nunca funcionavam. Dublê de predadora e pecadora, Alaíde tinha uma rede de informações muito superior a da polícia (o que não é nenhuma vantagem).

E nesse ritmo a vida ia se espichando, sem muitas novidades, até que... Alaíde colocou os olhos no homem mais... sei lá, a fantasia mais secreta de toda ninfomaníaca. Belo e charmoso como um personagem de propaganda de cigarro, Heleno estava no ponto do ônibus abraçado com Matilde (definitivamente uma das mulheres mais feias do planeta).

Medindo o rapaz de alto a baixo, contaminada por um calafrio perigosamente doce, Alaíde mordeu o lábio inferior. Sentindo o gosto do sangue entre os dentes, decretou:

− Esse gostosão não me escapa!

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Dois dias depois, no mesmo lugar, Alaíde esbarrou em Heleno. Com ares de antropófaga, perdão, de antropóloga, tentou iniciar uma conversa. O cara fez de contas que não era com ele e embarcou no primeiro ônibus que passou.

A mesma cena se repetiu várias vezes. Definitivamente, ele não estava "in the same page", como dizem os estadunidenses.

Alaíde sentiu o sangue ferver. E, em desespero de causa, lançou mão de truque que considerava infalível: saia de grife combinando com uma blusinha colante branca, dessas que ressaltam a opulência dos seios. Finalizou a produção com um toque de mestre: mergulho em vidro de legítimo perfume francês, made in Paraguay. Diante de tamanho esforço, impossível resistir – só se o rapaz não fosse "chegado" ao esporte das multidões...

Para surpresa geral, o sujeito fez beicinho e... negou fogo! Inventou desculpa e fugiu da raia.

Inconformada com a rejeição, Alaíde enlouqueceu. Com os instintos amorosos próximos do delírio, a fêmea implorou por carinho. Não conseguiu nada. Insistiu. Muito. Acabou vencendo pelo cansaço. Para se livrar do assedio, Heleno aceitou acompanhá−la ao cinema. Durante o encontro fez questão de deixar uma cadeira vaga entre os dois porque, além de estar comprometido com Matilde, "queria ver o filme"! Na saída, pediu desculpas, precisava ir para casa, tinha que trabalhar no dia seguinte, não dava para "esticar" até um bar ou boate. Despediu−se com um aperto de mãos.

Alaíde chegou em casa arrasada, aquilo nunca havia acontecido antes. Ciente de que estava apaixonada, só conseguiu dormir depois de chorar vários lençóis.

Depois de um mês dos mais desvairados esforços, Alaíde perdeu os escrúpulos e desferiu vários golpes baixos. Entre outras insanidades, argumentou que era contra as leis da natureza um homem tão bonito perder tempo com um monstro como Matilde.

Quando tudo parecia perdido, o rapaz fez uma concessão: concordou em tomar um whisky no apartamento de Alaíde. E impôs condição: só iria depois da meia−noite, pois não queria ser visto pelos vizinhos.     

Imaginando loucuras somente possíveis nos mais perversos romances pornográficos, Alaíde mal conseguia segurar a ansiedade quando soou a campainha.
           
Foi abrir a porta. No corredor, Matilde. O ogro logo foi cuspindo as palavras na direção de Alaíde, como se fossem facas:   
             
− Você se lembra do Aderbal? Claro que não! Era o meu namorado! Você resolveu tomar ele de mim. Enlouqueci. A vida é assim mesmo, perigosa. Você consegue imaginar o que fiz para controlar os piores sentimentos, a vontade de enfiar uma lixa de unha nos teus olhos? Claro que não. Lembre disso: guardei o ódio na geladeira. Deixei o tempo escorrer lentamente nas noites em que perdi o sono imaginando vocês dois juntos, na cama. Um dia, ou uma noite, não importa o momento, lembrei de meu primo Heleno, que é modelo fotográfico em São Paulo. Em nome da honra familiar, sabendo que você não resiste a homem bonito, pedi para ele fazer um, digamos, joguinho com você. E para quê? Alaíde, eu sou o teu pior pesadelo. Estou aqui para te comunicar o óbvio: você nunca vai conseguir colocar as mãos nele!  Heleno voltou para São Paulo. Ou seja, você levou um colossal pontapé na bunda. Perdeu, otária!   

quinta-feira, 7 de abril de 2011

INVERNO

Deveriam ser proibidas todas as paixões que não iniciaram no inverno.

Deveriam ser negados quaisquer pedidos que não fossem feitos no inverno.

Deveriam ser ignorados todos os acontecimentos, festas e festivais que não celebram o inverno.

É no inverno que aprendemos a valorizar a vida e o afeto.

No inverno descobrimos que a injustiça existe (basta olhar para as pessoas e ver a dor estampada no rosto daqueles que não possuem calor, comida e roupas).

No inverno a humanidade enfrenta (e supera) as adversidades climáticas, econômicas e emocionais.
  
Quem, recordando a adolescência, é capaz de negar os prazeres proporcionados pelas festas de são João? Fogueira, rojão, pau−de−sebo, pipoca, pé−de−moleque, paçoquinha, ponche. Como esquecer aqueles momentos em que fulano encontra coragem para convidar sicrana para um arrasta−pé? Como explicar "aquele" friozinho na barriga, quando ela aceita dançar a quadrilha?

Cozinha de chão, fogão de lenha, pinhão na chapa, vinho, bolo de fubá, doce de gila, bolinho frito ("bolinho de chuva"?), chocolate quente, quentão, rosca de coalhada, polenta recheada com queijo, sopa, churrasco, arroz−doce. Como esquecer o café "com mistura", às quatro da tarde?

Neve, geada, orvalho, garoa, vento, frio, casacos, gorros, pelego, cobertor de penas, cobertor−de−orelha.

No inverno, há mistério. A tirania da moda (inscrita nos corpos anoréxicos, nas roupas exíguas e na indiferença petulante das passarelas) perde a força e a sensualidade diante do desnudar da imaginação. Camadas de roupas sobrepostas que vão desaparecendo lentamente. E o calor dos corpos, escondendo perigos, negando prazeres, forjando promessas.

Amar no inverno é o inferno e o paraíso (e poucas coisas podem ser melhores). No cinema, na pracinha, na escada do prédio, em qualquer lugar o "amasso" é mais caloroso – não há frio que resista!

No inverno não há espaço para mercadorias inúteis ou emoções baratas.

A beleza e as cores de um dia de inverno superam os conceitos estéticos.  

O inverno é um dos sinônimos da liberdade, basta saber vivê−lo.

E, não menos importante, não existe primavera sem inverno.


quarta-feira, 6 de abril de 2011

CAMINHANDO NA CHUVA

Chuva. Meio da noite. Depois de uma viagem de mais de três horas, chuva.

Quando o ônibus chegou à rodoviária, apesar do mau tempo, considerou a possibilidade de caminhar até em casa. E essa alternativa adquiriu solidez quando olhou o cenário: as cabinas telefônicas, os guichês fechados das empresas rodoviárias, o olhar esperançoso dos motoristas de taxi, a lanchonete (deprimente e suja).

Saiu do prédio e, segurando a mala, iniciou a jornada.

Com a água a escorrer pelo rosto, colocou os óculos no bolso da camisa molhada. Os vários graus de miopia o fizeram sentir um ligeiro mal−estar. Percebeu que a partir daquele momento até que chegasse a seu destino, somente conseguiria ver imagens embaçadas, desfocadas.

Passou a mão nos cabelos e na face, na vã tentativa de enxugar o cansaço.

A avenida estava deserta, como se fosse alguma espécie de anuncio publicitário do silêncio urbano. Em vinte minutos de caminhada, ultrapassou dezenas de postes da iluminação pública, que se multiplicavam exponencialmente na noite.

Em intervalos irregulares, vários carros deslizaram pela rua, desenhando a solidão entre poças d’água.

Na primeira esquina, dobrou à direita. Seguiu em frente por quatro ou cinco quadras. Depois, dobrou novamente à direita. Passou mais um carro, o rádio ligado em alto volume.

Diante do colégio, cumprimentou o guarda−noturno e recebeu um seco "boa noite" em resposta. Na esquina seguinte, uma viatura da polícia se perdeu na névoa e na distância.

A umidade começou a incomodar, o frio invadindo o corpo, um leve tremor. Pensou no quanto, naquele instante, seria bom tomar uma xícara de chá ou uma taça de vinho. Doces ilusões custam caro, filosofou enquanto levava a mão molhada, outra vez, aos cabelos, como se isso fosse necessário para diminuir o desconforto.

Vários relâmpagos riscaram o céu vitrificado pelo temporal. Trovões. Dobrou à esquerda. Sem dar trégua, a chuva continuava intensa. Atravessou a rua. Desceu a ladeira. Contornou a praça. Caminhou uns 500 metros. Espirrou.

Em frente ao prédio em que mora, um alívio que não era alívio. Retirou do bolso o molho de chaves, abriu a porta do hall e entrou no edifício. Subiu pela escada os oito andares. Abriu a porta do apartamento e, nesse momento, sentiu uma vontade incontrolável de chorar.

terça-feira, 5 de abril de 2011

ARTES E PERIPÉCIAS DO ILUSTRE E MUI ARDILOSO MORÔ



Cezarino José Ramos era um personagem de Federico Fellini. Tinha os olhos oblíquos, o corpo ligeiramente curvado e uma aposentadoria do INSS. Era um pouco gordo e nunca foi considerado um dos dez mais elegantes de Planalto Catarinense − embora jamais tivesse se preocupado com essas futilidades. O seu mundo era outro. De que importam smokings, summers, blaisers, colunas sociais e outras bobagens para um homem que teve como ocupação profissional mais importante vender rifas?

Conta a lenda que, quando chegou a Lages, aos 14 anos, vindo de Correia Pinto, tinha muitas dificuldades para articular os sons. Normalmente só conseguia balbuciar um "ô lôco!", que funcionava para exprimir todas as categorias gramaticais, além das suas emoções. Esse desajeito era a sua maneira de se comunicar com o mundo. Depois, com o passar do tempo, foi aprendendo os fonemas, distinguindo os significados, estabelecendo comparações, musicando as frases. Na escola da vida, aprendeu as noções básicas de fonoaudiologia, lingüística e semiótica. Mesmo assim tinha a voz arrastada, difícil de ser entendida.

Quando as pessoas queriam saber se ele havia compreendido alguma coisa, perguntavam, usando uma expressão corrente da época: "Morô?". A resposta era imediata: "Morô!". E nesse ping−pong surreal o apelido acabou se estabelecendo. A partir desse instante, Cezarino se transformou em Morô. E isso está tão enraizado no inconsciente coletivo dos serranos quanto o amor de Cezarino, digo, de Morô, pelo Vasco da Gama.

Sim, ele viveu uma paixão sofrida e ardente pelo time de futebol do seu coração. Era um sentimento obsessivo. Quando o Vasco esteve em Lages, em 1976, para um amistoso, Morô correu pelas ruas da cidade atrás do ônibus da delegação. No hotel, com o rosto molhado pela alegria, fez vigília. No campo, durante o jogo (vestido a caráter: calção, camiseta, chuteira), vibrou tanto com o 2 x 1 do seu time contra a equipe local, o Internacional, que a cada gol vascaíno deu uma volta olímpica pelo estádio. Há quem diga que foi o seu momento de glória – para espanto dos principais jogadores da equipe cruzmaltina: Mazzaropi, Roberto Dinamite, Ramon e Abel.

(da direita para a esquerda: Morô, João Carlos Leão, Roberto Dinamite, Servilio Ferreira e Luis Carlos Xavier). Arquivo de Fernando Leão.

Durante muitos anos, perdeu a paciência com a cartolagem do Vasco. Com uma letra redonda e um pensamento absolutamente límpido (se é que isso é possível quando o assunto é futebol) escrevia longas cartas à diretoria do clube, sugerindo mudanças no plantel ou a troca de alguns integrantes da comissão técnica (inclusive o treinador). Enfim, manifestava o seu descontentamento.

Quem está na chuva acaba molhado. Então, vez ou outra, recebia respostas falsas do Vasco. Alguns conhecidos, envoltos em pura sacanagem, montavam o cenário teatral. Quando Morô descobria a trapaça, a ira tomava conta do ambiente. Mas isso era raro. Inclusive porque ele aprendeu a conviver com essas brincadeiras.

Outras coisas ele nunca conseguiu esquecer. E isso significou o atropelamento do destino, na estrada dos sonhos desfeitos. Torcedor fanático, costumava tratar como inimigos todos aqueles que se mostravam contrários ao Vasco. Comentários sem pretensões se transformavam em ofensas gravíssimas. O comerciante João Daniel Duara amargou muitos prejuízos em uma dessas historias. Alguns "corneteiros−de−plantão" inventaram que ele era feiticeiro e que estava fazendo um "trabalho" contra a equipe cruzmaltina. O Galáxie do comerciante apareceu todo riscado. Algum tempo depois, um vândalo começou a agir toda noite, quebrando os vidros de sua banca de revistas. Daniel resolveu fazer "uma espera". Confirmou o que era mais do que uma simples suspeita. Morô foi apanhado em flagrante. Alegou "legítima defesa", estava defendendo a honra do Vasco.

Dois vascaínos: Moro e o pai de Maria Aparecida Souza da Silva
(que enviou a foto)

Mas nem só do Vasco viveu Morô. O seu ganha−pão era a chamada "rifa eterna". Eterna? Pois é, houve quem dissesse que era sempre a mesma. Intrigas da oposição, óbvio. O que nunca foi possível negar é que... havia algo de estranho nessa história toda. Sem profissão definida, com dificuldades motoras (uma vez tentou ser auxiliar de cozinha – não deu certo), Cezarino optou por fazer pequenos trabalhos que lhe pudessem render alguns trocados. Com o passar do tempo, entrou no ramo das loterias. Primeiro, bilhetes da Federal; depois, pequenas rifas. Com habilidade matemática razoável, percebeu que as rifas eram mais rentáveis. Tornou−se um profissional do ramo. O único problema é que... dá para contar nos dedos (de uma das mãos) os ganhadores conhecidos. No entanto, como garantia o comerciante Walter Gill de Souza, isso não era de todo verdade: "Ele entregava, sim". E acrescentava, logo em seguida: "Desde que fosse conveniente".

De qualquer forma, existem pelo menos dois casos públicos e notórios de pessoas que receberam os prêmios. Um deles é o advogado Jorge Barroso Filho. Conhecido pelo seu mau humor cáustico, Barroso, em determinada oportunidade, assinou uns dois números de uma das rifas. Sem a mínima intenção filantrópica, ele queria, na verdade, se "livrar" da presença incomoda e indesejada de Morô. Além disso, o prêmio era insignificante: uma galinha assada – que era carregada, prá lá e pra cá, debaixo do braço, como se fosse um troféu. Não valia a pena se incomodar com o resultado. No entanto, para surpresa do advogado, na manhã seguinte, o nosso herói bateu em sua porta. Queria cumprimentar o ganhador e entregar o prêmio. Barroso tentou recusar a honra. Irredutível, Morô passou o prêmio às mãos do advogado, que ficou com a galinha ensebada nas mãos, sem saber o que fazer.

Em outra oportunidade, o caso foi diferente. O comerciante João Daniel Duara estava passando por situação financeira muito ruim. Praticamente falido, não tinha dinheiro nem para o cafezinho. Inclusive, estava pensando em ir morar em outra cidade – pelo menos até a maré de azar passar. Inesperadamente recebeu a notícia que havia ganhado uma enorme cesta de natal. "Deve ser um presente dos céus", comentou com um amigo. Só poderia ser: ninguém ganha alguma coisa sem jogar. Na duvida foi até a loja em que a cesta estava exposta e fez questão de receber o prêmio – que foi doado para os velhinhos do Asilo Vicentino, logo em seguida.

A moral dessa história surgiu logo depois: informado que Daniel estava viajando, Morô "deu um jeito" para que o comerciante fosse o vencedor. Assim, faria uma "média" e diminuiria o boato de que ninguém recebia os prêmios das rifas que promovia. Era um plano simples e baseado em lógica elementar: alguns dias mais tarde, em virtude do não comparecimento do ganhador do premio para reclamar o ganho, Morô iria confiscar a cesta e, em seguida, promover nova sessão de apostas. Fácil como roubar doce de criança. O único senão foi que Daniel voltou mais cedo da viagem e... estragou a festa.

Pequenas travessuras. Coisas menores. Artimanhas da sobrevivência. Alguma forma maluca, provavelmente inconsciente, de dizer: "tudo é permitido, se for divertido".

No outro extremo da idiossincrasia humana, Morô era um homem supersticioso, influenciável e cheio de manias. Entre outras coisas, não tolerava que fizessem o sinal da cruz nas suas costas. "Dá azar", reclamava candidamente.

Muitas vezes se comportava como criança grande. O barbeiro Waldir Buck, o "Perereca", lembrava de episódio ocorrido alguns anos antes. Morô foi desafiado, em uma "prova de coragem", pelo comerciante Mauro Rodolfo, proprietário do restaurante Rei do Frango – que, na época, era localizado no centro da cidade. Fizeram uma aposta. O resultado desse jogo foi o seguinte: dissimulado e um pouco sem jeito, Morô entrou no Salão Irmãos Buck, sentou em um banco e ficou a olhar para o teto, como quem não quer nada. No momento que sentiu que ninguém estava prestando atenção, retirou do bolso centenas de tampinhas de garrafa e as jogou pelo chão, causando espanto e riso em todos os presentes. Ato contínuo: fugiu correndo, às gargalhadas.

E assim, no meio do caos urbano, Morô atravessava os dias e o folclore. Caminhando pelas ruas, com uma cartela de rifa nas mãos, poderia ser encontrado nos locais mais estranhos e absurdos da cidade. Da "zona" ao Coral, passando pelo Morro do Posto, Brusque, Vila Nova, Copacabana, Aeroporto Velho, Santa Helena, calçadão – nada era limite para esse andarilho que muitas vezes foi chamado de "mendigo sofisticado".

Muitos sociólogos sem diploma fizeram a seguinte análise: essa história de vender rifa (que ninguém ganha) nada mais era que uma maneira muito particular de pedir ajuda financeira, sem precisar "pedir" de fato. Pode ser. Pode não ser. Isso nunca foi importante. Pelo menos para ele.

Lages é o lugar onde Morô empenhou suas esperanças e construiu um mundo muito particular, onde tudo é límpido e transparente, beirando a ingenuidade. Ao mesmo tempo, certo das incertezas da existência, nunca sentiu medo de continuar vivendo. Talvez seja por isso que apostava diariamente no jogo do bicho. Era a forma com que respondia uma pergunta inquietante: será que a sorte não está por aí, querendo anunciar o amanhã?   


P.S: Este perfil (publicado na capa do suplemento "Anexo", do jornal "A Noticia", em 02 de janeiro de 1997) tangencia o "new journalism", inclusive porque todas as informações sobre o protagonista foram obtidas a partir da visão de terceiros.

A presente versão, embora conserve a ideia original, sofreu diversas alterações, inclusive nos tempos verbais.

Olhando para o passado, se me defrontasse outra vez com a mesma tarefa, este texto provavelmente seria escrito de forma diferente, abordando aspectos mais humanos e menos folclóricos. Mas isso agora é impossível, inclusive porque vários dos personagens citados (João Daniel Duara, Waldir Buck) desapareceram na poeira do tempo.

Cezarino José Ramos, o Morô, faleceu aos 80 anos, em 2010, depois de seis meses de internação hospitalar.