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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

DOIS AMORES




Os irmãos Lulu e Dudu estão naquela idade em que as urgências da masculinidade equivalem ao conquistar o mundo:

A molecada queria baile funk, comprar tênis para dançar funk, funk na quadra da escola de samba que rola aos domingos, beijar a boca de Soninha, beijar a boca de Celinha, dançar, segurando na cintura, fazer a dança da bundinha, se esfregar no corpo dela. Lulu na Soninha, Dudu na Celinha. Têm que estar bonitos, têm que estar na frequência da onda, pra dançar conforme a música, e têm que ter tênis, tênis que foi feito colorido, o publicitário foi lá e bolou, a TV veiculou, o Diabo abençoou e colou. Fica mais bonito quem usa tênis caro pra dançar funk, só beija na boca se tiver bonito, só é bonito quem tem tênis da onda para dançar. Só dança funk quem beija na boca. Só beija na boca quem pode.  


O primeiro obstáculo a ser superado mistura as dificuldades econômicas com a insegurança masculina. Como agradar Soninha e Celinha, no baile funk, sem um par de tênis colorido, de marca?

Alguma solução deve haver, pensaram os meninos, naquele frenesi de quem não consegue esperar. Eles têm pressa. Pressa de sentir o contato da pele com outra pele, arrepios e gemidos no mesmo ritmo do batidão que ensurdece o mundo. 

Fábula que celebra os acontecimentos "menores", o conto Dois Amores, de Paulo Lins (Editora Nós, 2019) consegue captar com elegância e lirismo a transição da adolescência para o mundo adulto. Ao abordar algumas das complicações que acompanham o desejo, a história dos dois meninos reflete a violência cotidiana.




Filhos de uma família que mora em Queimados (50 km do centro do Rio de Janeiro) e que precisa, diariamente, superar mil e um obstáculos (o pai vive de “bicos”, a mãe faz faxinas), Lulu e Dudu não se deixam abater pelas adversidades e vão à luta com a coragem dos heróis daqueles filmes que passam no meio da tarde.

O pai consegue algum dinheiro emprestado e eles saem, naquele sábado de chuva, na direção do Rio de Janeiro a vender amendoim no trem, doces na porta do cineclube, fingem ser flanelinha, pedem esmola. E assim, depois de um dia de trabalho, conseguem o suficiente para comprar os calçados.

Tudo estaria bem, se fosse possível voltar para casa no meio da noite. Infelizmente, a jornada do herói não se encerra com alguns tropeços de pouca monta. O perigo habita a selva urbana. O mal assume formas edulcoradas – e costuma engolir os ingênuos.

E ninguém consegue atravessar esse inferno ileso – principalmente quando os predadores farejam que a vítima possui algum dinheiro.

Sem ter onde passar a noite, eles procuram por um lugar onde estejam a salvo de tarados sexuais, viciados em crack, traficantes, policiais corruptos e marginais diversos.

O que se segue enaltece a mitologia carioca. No vídeo game que cada um dos personagens está jogando, as melhores soluções estão nos atalhos, nos macetes, na saraivada de blefes contra quem parece possuir os melhores lances nessa loucura raramente honesta que emoldura a vida. A vitória da esperteza, depois de várias peripécias, parece encerrar o texto com um Deus ex machina, o que, obviamente, amplia o caráter onírico da narrativa, mas afasta o realismo em que está encaixada.

Na ultima página, os meninos ouvem a lição que estava desenhada nas primeiras frases do texto: tênis de marca não serve para nada, exceto para ensinar que tênis de marca não serve para nada. A implosão da estética do autoengano se encontra com o ensinamento ético.    

Dois amores, narrado em terceira pessoa, é um conto de enumeração. Em cada brecha da narrativa o texto multiplica os substantivos até a exaustão. O uso desse recurso permite espichar a história, criar uma crosta coloquial, mostrar a expansão da linguagem e, por fim, tornar o enredo mais colorido, mais alegre. Funciona – neste caso.

Se o enredo de Dois Amores  fosse administrado por outras mãos, provavelmente a história teria mais fôlego, mais elementos ficcionais, outras aventuras. E as frases finais estariam mais próximas da realidade. Ficaria melhor? Ninguém sabe. Melhor não saber. Como está, está ótimo.   


TRECHO ESCOLHIDO

Se fosse dia de sol, seria picolé na areia, água com gás e sem, mate, óculos escuros, cerva gelada, refri... Mas em dia de chuva, só rola cinema e teatro. Sem sol a cidade fica vazia. Com ele é um monte de gente quase pelada andando pela areia, nas calçadas, enchendo a cara, rindo à toa. Todo carioca é povo de rua. O sol é o rei da putaria no Rio de Janeiro. Foram a pé da Central à porta do Estação Botafogo para vender doce para a turma que gosta dos filmes de Tarantino, Spike Lee, Claudio Assis, Beto Brant, Lírio Ferreira e Almodóvar. Eles gostam de Mentex, fazem pilates, roupinha discreta, alguns vão à academia, são limpinhos, passam filtro solar, hidratantes, já leram Leminski, comem orgânicos, muitos não comem carne vermelha, todo mundo dá um-dois. Gente legal. Se eles não quiserem bala com muito açúcar, pede esmola que dão, só uma moedinha, é só dizer que é pra remédio; esconder a sede de beijo, de dança de funk, de ficar bonito, entocar a fome de tênis, a vontade de zoar; ocultar aquela ânsia de ser feliz para sempre.  


segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

OS VIVOS E OS MORTOS


Em alguns momentos a literatura e o cinema se encontram e produzem maravilhas que deixam o leitor/espectador pensando que o encantamento é uma das formas de dar sentido à vida.

Habitualmente a literatura serve de inspiração para o cinema. Raramente acontece o contrário.

O último filme de John Marcellus Huston é uma adaptação do conto Os Mortos, de James Joyce. Simbolicamente, Os Vivos e os Mortos (título no Brasil) estreou de maneira póstuma no Festival de Veneza, uma semana depois da morte do diretor.  

Publicado em 1914, na coletânea Dublinenses, o conto se concentra em dois episódios distintos. A moldura principal está na festa oferecida pelas “três Graças”: Júlia, Kate e Mary Jane.  Reunindo parentes, amigos e alunos, o evento (que acontece em Dublin, no dia 06 de janeiro de 1904, Dia de Reis) se divide em várias atrações: concerto artístico, baile e ceia. No intervalo entre as atividades, os convidados conversam, bebem ponche ou uísque, namoram, brigam.

Como compete às narrativas de época, o enredo aborda algumas questões pontuais: o nacionalismo, a decadência da vida cultural e as idiossincrasias do círculo de amizades.     

Durante a ceia, Gabriel Conroy faz um pequeno discurso de agradecimento para as anfitriãs. Em tom nostálgico, em certo momento, afirma (...) sempre há, em reuniões como esta, pensamentos mais tristes que recorrem em nossas mentes: imagens do passado, da juventude, das mudanças, dos rostos ausentes de que sentimos falta aqui esta noite. Nosso caminho pela vida é repleto de muitas memórias ruins: e se nós nos remoermos demais nessas memórias, jamais encontraremos forças para seguir bravamente com nosso trabalho entre os vivos.

Nas entrelinhas, as palavras de Gabriel anunciam a finitude da vida, as lágrimas que precisarão ser contidas, o inexorável. E como não há como prever quem estará ausente no próximo ano, o que ele mais teme é a perda da tradição, da alegria e do prazer, dos encontros entre os amigos.

James Augustine Aloysius Joyce (1882 - 1941)
Ao final da festa, Gabriel encontra a esposa na escada, ouvindo o canto de um dos convidados, Bartell D’Arcy. 

A música traduz o ponto divisório da narrativa. A alegria festiva desaparece. Gabriel, que estava empolgado, pensando que poderia desfrutar de um pouco mais de prazer junto com a esposa, descobre que algo de difícil compreensão tomou conta do ambiente.   

No hotel, algum tempo depois, Gretta esclarece o motivo da tristeza. A música a fez lembrar um amor da adolescência, quando morava em Galway. Enciumado, Gabriel quer detalhes, quer saber se ela ainda ama o rapaz. A esposa esclarece que não há motivos para preocupação: Michael Funey morreu de pneumonia aos 17 anos de idade.

Pouco importam as explicações, o desassossego se estabelece. Não há como retornar ao que era antes. A sombra do morto acompanhará o resto da vida conjugal.    

John Marcellus Huston (1906 - 1987)
Alguns pontos de luz no vidro fizeram-no virar para a janela. Havia começado a nevar novamente. Ele assistiu, sonolentamente, aos flocos, prateados e escuros, caindo obliquamente contra os lampiões. (...) A neve caía, também, sobre todas as partes do cemitério solitário na montanha onde Michael Furey estava enterrado. Ela espalhava-se densamente sobre as cruzes tortas e os túmulos, as pontas do pequeno portão, os espinhos estéreis. A alma de Gabriel desmaiou devagar enquanto ele ouvia a neve caindo levemente sobre todo o universo e levemente caindo, como a descida ao seu fim derradeiro, sobre todos os vivos e os mortos.

A versão filmada por John Huston (roteiro de Tony Huston) segue o enredo literário na quase totalidade. Alguns elementos foram suprimidos ou manejados para que aparecessem em outra cena. Nada que modifique a ideia geral. Mesmo assim,...

Mesmo assim, o filme consegue transmitir o sentimento de melancolia e de perda que envolve a trama. Parte desse sucesso se deve à parceria entre Donal McCann (Gabriel) e Anjelica Huston (Gretta).