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quinta-feira, 23 de julho de 2015

O BUDA NO SÓTÃO

Alguns livros estão acima do elogio. E pouco importa a quantidade e a qualidade dos adjetivos utilizados. Qualquer palavra que for utilizada para descrevê-los sempre parecerá insuficiente. O romance (na falta de um conceito melhor) O Buda no Sótão, de Julie Otsuka, ilustra essa situação.

No inicio do século XX, milhares de trabalhadores japoneses cruzaram o Oceano Pacífico para “ganhar a vida” na Costa Oeste de Estados Unidos. Algum tempo depois, outros navios repetiram essa mesma rota transportando as futuras esposas desses homens. Infelizmente – e a aventura humana está repleta desse tipo de situações –, qualquer história que gravite sobre tentativas de uma classe econômica desfavorecida conquistar a liberdade financeira resulta na descrição de um grande desastre. Inclusive porque, neste caso, as condições de trabalho (para os homens, para as mulheres) eram de semiescravidão. Além disso, as diferenças raciais, sociais, econômicas e culturais, entre os estadunidenses e os nipônicos, com o passar do tempo, mostraram-se intransponíveis. Por mais que os imigrantes se esforçassem, dobrando as jornadas de trabalho na construção de ferrovias, na colheita de frutas, nos trabalhos domésticos, não houve como superar a posição de inferioridade. De um lado estão os proprietários dos meios de produção; do outro, os trabalhadores. São dois mundos muito diferentes. E que se tornam ainda mais conflitantes por ocasião da Segunda Guerra Mundial, quando os imigrantes japoneses (sob o pretexto de defesa da segurança nacional) foram desalojados de suas residências e confinados em campos de concentração. A violência, causada pela soma de histeria, preconceito e demagogia pode ser resumida em ironia e desassossego: (...) porque elas sabiam que, por mais que tentassem, jamais conseguiriam se encaixar. Somos só um bando de “cabeças de Buda”.

Alternando um narrador em terceira pessoa (isento de sentimentos) com uma voz frágil em primeira pessoa (que somente aparece em situações especiais), o livro de Julie Otsuka, utilizando-se da enumeração, expõe um catálogo de atrocidades. Seja nas Japantowns (J-towns), seja no interior dos condados, nas fazendas, o narrador se concentra no olhar feminino, impregnado de sensibilidade e coragem. A vida das mulheres japonesas, correndo em paralelo com a dos homens, descreve uma grande tragédia.

O título do livro foi retirado de um trecho quase imperceptível e que se encontra no capítulo sobre a partida dos japoneses para um lugar não identificado: Haruko partiu deixando uma pequena imagem de latão de um Buda risonho lá no alto, em um canto do sótão, onde ele ri até hoje.

O Buda no Sótão, centrado no conceito documental (a autora precisou consultar uma interminável lista de textos sobre o tema), traduz, de forma intensa e criativa, um dos mais cruéis capítulos da história estadunidense – e que, em nome da “democracia”, foi silenciado. Somente em 1988, o governo reconheceu publicamente ter agido de forma inadequada. O Ato de Liberdades Civis, assinado por Ronald Reagan, garantiu uma indenização para os sobreviventes e a abertura de um fundo de educação para tentar evitar que esse tipo de incidente volte a acontecer.  

P.S: De forma mais romântica, menos dramática, e em outro contexto, a imigração japonesa para Estados Unidos está retratada em Neve sobre os Cedros, de David Guterson. Há uma versão cinematográfica (Dir. Scott Hicks, 1999), com Max von Sydow e Ethan Hawke no elenco. 

TRECHO ESCOLHIDO


Nós dávamos à luz debaixo de carvalhos, no calor de quarenta e cinco graus. Dávamos à luz ao lado de um forno à lenha em cabanas de um único aposento na noite mais fria do ano. Dávamos à luz em ilhas repletas de vento no Delta, seis meses depois de chegarmos, e os bebês eram minúsculos e transparentes, e morriam depois de três dias. Dávamos à luz bebês perfeitos com a cabeça cheia de cabelos negros nove meses depois de chegarmos. Dávamos à luz em vinhedos empoeirados em Elk Grove e em Florin. Dávamos à luz em fazendas remotas no Vale Imperial com a ajuda apenas de nossos maridos, que com A companheira da dona de casa haviam aprendido o que fazer. Em primeiro lugar, deve-se ferver a água... Dávamos à luz em Rialto, sob a luz de uma lamparina de querosene e sobre uma velha colcha de seda que trouxemos em nosso baú do Japão. A colcha ainda tinha o cheiro de minha mãe. Dávamos à luz como fez Makiyo, em um celeiro em Maxwell, deitadas em uma cama bem grossa de palha. Eu queria ficar ao lado dos animais. Dávamos à luz sozinhas, em um pomar de macieiras em Sebastopol, depois de sair para procurar lenha no alto das montanhas, em uma manhã estranhamente quente. Cortei o cordão umbilical dela com a faca e a levei para casa nos braços. Dávamos à luz em uma choupana em Livingston com a ajuda de uma parteira japonesa que, para nos ver, tinha viajado por trinta quilômetros no lombo de um cavalo, vinda da cidade mais próxima. Dávamos à luz em cidades onde nenhum médico nos recebia, e tínhamos de limpar a placenta sozinhas. Vi minha mãe fazer isso várias vezes. Dávamos à luz em cidades com um só médico, cujos preços não podíamos pagar. Dávamos à luz com a ajuda do dr. Ringwalt, que se recusava a deixar que pagássemos pelo serviço. “Guarde isso”, ele dizia.



quinta-feira, 9 de julho de 2015

A CARTA ESFÉRICA

                                        – Pois lembre-se do ditado: com mulher e vento, tomar muito tento. 
                                       (A Carta Esférica, de Arturo Pérez-Reverte)


Os romances de aventuras estão quase em extinção – sobraram apenas os romances policiais, que (por razões diferentes) também perderam suas características iniciais. Parte da explicação para esse fenômeno está no fato de que os limites humanos e geográficos não mais interessam como temas literários. Júlio Verne, Karl May e Emílio Salgari, entre outros, se tornaram nomes perdidos dentro dos dicionários de curiosidades literárias. Um pouco dessa "terra arrasada" está relacionado com a falta de imaginação que caracteriza o a-pós-a-moderna-idade (lugar indefinido nas escalas cronológicas e humanas; e povoado por milhares de quinquilharias eletrônicas). Além disso, o cinismo e a falta de escrúpulos de alguns setores sociais contemporâneos (especialmente aqueles que estão ligados à escravidão econômica) praticamente impedem o ressurgimento do herói ético – aquele indivíduo que, sem contar com muitos recursos físicos ou tecnológicos, coloca em risco a própria vida para defender uma causa que (considera, imagina) “superior”.

Os tempos são outros. Escritores e leitores perderam parte do prazer lúdico. Mesmo quando apostam em algumas fantasias escapistas (Harry Porter, de J. K. Rowlings, Crônicas de Fogo e de Gelo, de George R. R. Martin) ou certas distopias adolescentes (Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e Maze Runner, de James Dashner), há visível cansaço narrativo. Nessas sagas (que se desdobram em vários volumes e milhares de páginas), todos os protagonistas se assemelham com semideuses (a série Percy Jackson, de Rick Riodan, que emula a mitologia grega, evidencia a regra). As ações são intensas, velozes, destacando que a heroicidade se opõe frontalmente ao “mal” (seja lá o que isso for). Os diálogos são ágeis e repletos de referencias culturais. A soma de todas essas características (que estabelecem um padrão narrativo próximo da pasteurização) visa impedir que o leitor tenha algum tempo para recuperar o fôlego – e perceber o quanto tudo o que está sendo narrado se afasta do verossímil.

Ao mesmo tempo, toda essa estrutura quer afirmar duas questões básicas. A primeira é que o que aproxima (ou afasta) os homens dos deuses é a ambição, a vontade de realizar tarefas extraordinárias. Em contrapartida, é o fracasso – diante de situações épicas – que determina a humanidade dos personagens. Provavelmente porque, como representação da vida “real”, algumas situações não podem ser salvas por um truque de mágica ou pela ajuda que surge no ultimo momento, um segundo antes da catástrofe – efeito narrativo que está cristalizado no inconsciente daqueles que foram “educados” pelo cinema estadunidense.

Um dos poucos escritores “modernos” que coloca o seu talento narrativo a serviço da literatura de entretenimento é o espanhol Arturo Pérez-Reverte, autor de romances como O Clube Dumas, O Mestre de Esgrima, O Quadro Flamengo e a série As Aventuras do Capitão Alatriste, entre outros. Sem se preocupar com propostas narrativas inovadoras, ele quer apenas contar uma boa história. Por isso, procura reconstruir ficcionalmente situações incompatíveis com o a modernidade tecnológica. Enfim, Pérez-Reverte cria enredos inusitados, repletos de cenas intensas – onde se deslocam personagens anacrônicos (esgrimistas, marinheiros, bibliófilos, enxadristas, homens e mulheres apaixonados pelos mistérios da vida).

Um dos romances de Pérez-Reverte, A Carta Esférica, tem o mar como cenário. Seguindo o caminho trilhado por Joseph Conrad (Lord Jim, A Linha de Sombra), Herman Melville (Moby Dick), Robert Louis Stevenson (A Ilha do Tesouro), Jack London (O Lobo do Mar), Daniel Defoe (Robinson Crusoe) e Homero (A Odisséia), comprova, no ritmo A + B, que sempre [existe] um barco naufragado, uma ilha, um refúgio, uma aventura, um lugar em alguma parte do outro lado do mar, na linha difusa que mistura os sonhos com o horizonte.

Manuel Coy, o protagonista de A Carta Esférica, é um homem passional, impulsivo, desses que agem por instinto, com essa expressão tímida que o deixava com cara de criança e suavizava seus traços duros, seu nariz grande demais e as feições toscas, o queixo quase sempre mal escanhoado. Em qualquer situação que exija um pouco de paciência, prefere brigar. Ao mesmo tempo, ele tem consciência de que Tinha a infelicidade, ou a sorte, de ser um desses homens para quem o único lugar habitável fica a dez milhas da costa mais próxima. Em terra firme seu corpo aderna, perde a sustentação, naufraga. Parte desse sentimento se explica pela constatação de que, atualmente, a modernidade e a tecnologia transformaram os marinheiros em caminhoneiros do oceano e funcionários sindicalizados. O mundo objetivo mudou, mas Manuel Coy continua a viver como isso não fosse possível. Ele é um saudosista, queria estar em outra época, em outra aventura. Nem mesmo as sardas que desenham delírios (sexuais, emocionais) na pele de Tánger Soto o fazem recuperar o equilíbrio. Um dos seus maiores pesares ocorre no momento em que esquadrinha as ruas de Madrid e descobre que a cidade não tem porto. Sem o oceano, a vida não tem propósito – embora constate que Nem sempre os barcos afundados estão no mar.Uma pequena surpresa: Manuel Coy gosta de jazz, Miles Davies, John Coltrane, Charlie Parker – trilha sonora da melhor qualidade.

Tánger Soto é uma tempestade em forma de mulher – dessas que arrastam tudo e todos para o vórtice da destruição. E na impossibilidade de defini-la de forma adequada, cabe concordar com Manuel Coy e o narrador, quando dizem que Em tais condições, essa mulher era um rumo tão bom quanto outro qualquer.

Ao ler sobre a jornada épica que está narrada em A Carta Esférica, o leitor se pergunta: o que devia sentir o homem que pela primeira vez saiu à caça de uma baleia, um tesouro ou uma mulher sem ter lido isso antes em um livro? Há muitas respostas possíveis para essa pergunta impertinente. Talvez nenhuma delas seja relevante. De qualquer forma, não é possível abandonar as 529 páginas do livro (na edição brasileira) sem arriscar um palpite. Cherchez la femme, dizem os francesas, cientes de que essa é a única explicação possível para todos os desatinos dos homens. Ou, como diz Néstor Perona, o narrador do romance, a ciência náutica não serve para nada na hora de navegar em terra firme ou em torno de uma mulher.


Evidentemente, não cabe contar os detalhes que vão sendo revelados – lentamente – no decorrer do livro. Ao leitor cabe o exercício aritmético, somar isso e aquilo, e ir compondo, lentamente, o quadro geral – apesar de saber que as ilusões de ótica são frequentes nesses casos, o engano é um companheiro próximo. Essa técnica de enredamento vai prendendo a atenção do leitor como se fosse uma âncora, peso destinado a impedir que o barco aderne. Mas, para que ninguém reclame de estar navegando em águas perigosas, a história contada em A Carta Esférica envolve dois barcos que naufragaram em 1767, um tesouro, bandidos, traições e a inevitável troca de fluídos corporais entre Manuel Coy e Tánger Soto. Muitos livros se sustentam em pé com muito menos do que isso.

Enfim, No mar todos os caminhos são longos. Alguns, inalcançáveis. Mesmo que os indivíduos utilizem de subterfúgios – como Ulisses, que precisou amarrar a si mesmo no mastro do barco para poder resistir ao canto das sereias –, não há como fugir do pathos (paixão, sofrimento, doença) que acompanha a existência humana.


TRECHO ESCOLHIDO

Coy respirava a brisa deliciado, farejando a iminência de mar aberto. Desde a primeira vez que pisou no convés de um barco, o momento da partida sempre lhe dava uma sensação de calma singular, muito próxima da felicidade. A terra ficava para trás, e tudo aquilo de que podia precisar viajava com ele a bordo, circunscrito aos limites da embarcação. No mar, pensava, os homens viajavam com a casa nas costas, como a mochila de um explorador ou a concha que se desloca com o caramujo. Bastavam alguns litros de diesel e de óleo lubrificante, velas e vento adequado para que tudo o que a terra firme contivesse se tornasse supérfluo, prescindível. Vozes, ruídos, pessoas, cheiros, tirania do ponteiro do relógio deixavam, aqui, de ter sentido. Locomover-se até deixar a costa bem lá longe, pela popa, já era um objetivo. Diante da presença ameaçadora e magica do mar onipresente, dores, anseios, laços sentimentais, ódios e esperanças se diluíam na esteira, amortecendo até parecerem distantes, sem sentido, porque o mar tornava os seres humanos egoístas e concentrados em si mesmos. Havia coisas intoleráveis em terra, pensamentos, ausências, angustias, que só podiam ser suportadas no convés de um navio. Nunca houve analgésico tão poderoso como esse; e ele tinha visto sobreviver, a bordo de barcos, homens que em outro lugar teriam perdido para sempre a razão e a calma. Rumo, vento, ondas, posição, singradura, sobrevivência: ali só essas palavras tinham algum significado. Pois era certo que a verdadeira liberdade, a única possível, a verdadeira paz de Deus começava a cinco milhas do litoral mais próximo. (p. 292-293).