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terça-feira, 26 de março de 2013

ENCONTREI HÉLIO PELLEGRINO NO SUPERMERCADO

Supermercado depois do almoço. Precisando diminuir a solidão angustiante que habitava dentro da geladeira, fui às compras. Muitos amigos não gostam desse tipo de tarefa. Delegam para esposas, namoradas, mães, empregadas. Estou na contramão. Como todo pequeno-burguês (falsamente esclarecido) adoro vinhos franceses e portugueses, cervejas estranhas, frutas fora da estação. Entro no estabelecimento comercial para comprar pão e saio com várias sacolas repletas de chocolate, suco de laranja, queijos, livros. 

Livros? Pois é, sempre considerei aquelas estantes improvisadas (uma mesa no meio do corredor) como algum tipo de provocação. Não consigo resistir aos encalhes horrorosos associados com preços de ocasião. Imperativo ir lá e dar uma olhada. Garimpar. Sem muitas esperanças. Assim como não existe pote de ouro no fim do arco-íris, também não se encontra bons livros em liquidação de supermercado. Quer dizer...

Apenas R$ 14,90, dizia o cartaz tosco, a letra trêmula de alguma funcionária – que provavelmente não comprou nenhum deles. Vasculhei pilhas e pilhas. Entre a decepção de leitor e a satisfação de levar para casa mais um livro, nada parecia auspicioso. Editoras pouco expressivas. Muitos exemplares de autoajuda, dietas milagrosas, dicas econômicas e administrativas. Quase nenhuma ficção – uns três ou quatro policiais de segunda categoria. 

Alegria súbita. No meio da ganga bruta encontro Lucidez Embriagada, uma coletânea de cartas, poemas e artigos do Hélio Pellegrino. Edição de 2004. Aspecto de novo. Embalado em plástico transparente. Coloquei uma cópia na cestinha. Satisfeito, fui procurar por outros itens da minha lista de supérfluos. Uns três corredores depois, voltei. Arrebanhei outros dois exemplares – presentes para amigos. 


Cerca de uma hora depois, livre do peso excessivo das compras, sem me importar com o valor impresso no comprovante do cartão de crédito, comecei a leitura. Hélio Pellegrino, que faleceu em 1988, foi uma figura emblemática da cena brasileira durante algumas décadas. Nunca economizou críticas ácidas aos governos militares que usurparam o poder nos anos 70 e 80. Ao que se soma o fato de ter sido um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Além disso, seu nome está gravado na história literária em vários momentos. Sutilezas de mineiro. Ao lado de Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, ele foi um dos quatro cavaleiros do apocalipse (forma poética e profética com que o narrador do romance Encontro Marcado, de Fernando Sabino, descreveu a amizade iniciada nos tempos de escola, lá em Belo Horizonte). Foi poeta de grande densidade, escultor de sentimentos e lucidez. 

Também protagonizou namoro e casamento com várias mulheres, sendo Lya Luft a última das muitas paixões com que dividiu leito e amor. 

O oximoro do título sinaliza para o conteúdo do livro. O inquieto Hélio Pellegrino cultuava o barroco. De forma apaixonada. Textos ricos em imagens inusitadas, demonstrações explícitas de carinho, gigante tentando acariciar formiguinhas. Para ele, gostar de alguém era mais, muito mais do que gostar. Era amar na imensidão oceânica do termo. E, nessa toada, nunca economizou o coração.  Sou essa colméia de incêndios / essa assembléia de sinais / esse rumor insone.

São textos curtos, poucas páginas cada um, o humanista se destacando em cada palavra, a defesa do Outro em primeiro lugar, que o egoísmo é veneno para a alma, danação eterna nos confins do inferno. Também tinha humor incerto de identificar, desses que derrapam na ironia e na crítica. Nada que assustasse, claro. Era um pândego.


Vinte cinco anos depois de sua morte, Hélio Pellegrino faz falta. Tento sublimar essa lacuna, lendo Lucidez Embriagada, livro organizado pela neta, Antonia Pellegrino. Não é a mesma coisa, embora suas páginas carreguem o encantamento e levem para longe o esquecimento.    


TRECHO ESCOLHIDO

(Carta para Otto Lara Resende, 14 de fevereiro de 1945)

 

(...) E é por isso, Otto, por isso que eu absorvo você num indestrutível carinho, e vejo em você alguém que a Providencia de Deus ligou a mim para me alertar, para me fazer melhor e mais generoso, para que tudo não ficasse perdido, entredevorado pela cega crueldade do mundo.

 

Esse espetáculo de você Evangélico lutando contra as exigências do grande açougue, essa irredutibilidade que existe entre você e o mundo, essa sua visceral incapacidade para viver, constituem, para mim o mais belo testemunho de homem fiel a si mesmo, apesar de si mesmo, e me aponta a grandeza da Graça de Deus, tombando sobre o ser com a violência de um furacão apocalíptico.

 

Nessa luta eu torço por você, Otto, com toda a força de meus pulmões, com toda a pletora de minha demagogia, e se for preciso, farei discursos em praça pública, para dizer que você tem razão, e se você se suicidar, escreverei uma biblioteca inteira acusando o mundo de sua morte, e exigindo justiça bem às portas do Grande Tribunal.

 

Estou com você, Otto, para o que der e vier. Aponte por enquanto, meu amigo, aponte muito porque chegará a nossa vez de bater. E se você se ferir na surra, venha até mim, que pelo menos para curar suas feridas me deve servir esse lento, lentíssimo, e intragável Curso de Medicina. Curarei suas feridas, Otto, te darei a mão, e nos sentiremos melhores. Não tenho dúvidas quanto a isso, nem se deixe envenenar pelas traições, pelos descasos ou pela dificuldade de convívio. O “capote salpicado de estrelas” permanece, bem como permanecem miraculosamente intactos os passeios no Parque, o punho erguido e a esperança no milagre.

 

Não quero ver em você o vitorioso, o que conquistou glórias, louros, mulheres, honrarias, pedras preciosas ou caravanas de olifantes.

 

Sempre verei em você o Amigo; aquele que eu reconheço entre muitos – o que acende um sorriso na rude hora amarga. (...)

segunda-feira, 25 de março de 2013

A MORTE NÃO POSSUI ELEGÂNCIA


O amor supera todos os obstáculos – dizem os românticos, esquecendo que existem limitações intransponíveis. A morte é uma delas.

Amor (Amour. Dir. Michael Haneke, 2012) expõe de forma cruel a lenta degradação do corpo e da mente. A professora de piano Anne Laurent (Emmanuelle Riva) sofre um derrame. Fica com o corpo paralisado no lado direito. Ao marido, George Laurent (Jean-Louis Trintignant), faz um pedido: nunca mais voltar ao hospital. Sem quantificar o custo emocional, ele concorda.

Em uma época que não suporta o sofrimento (eliminando-o artificialmente através de medicamentos, terapias e outras fraudes), Amor é um filme triste. Mais do que isso, é depressivo. Daqueles que, logo depois da última cena, dá vontade de chorar. Ou chutar lata de lixo. Ou qualquer coisa que esteja na nossa frente. As circunstâncias caóticas que regem a espera pela morte assustam.

Georges se agarra aos últimos fiapos de vida da esposa – porque isso foi tudo o que lhe restou. Somente subverte essa postura quando resolve concluir a aflição. Mas, até que isso aconteça, há dezenas de pequenos incidentes, situações desagradáveis, horrores sem fim. Apenas o otimismo do marido justifica o esforço de tentar suportar as pequenas trapaças que separam a vida da morte. Isso também tem limites. A debilidade física da esposa vai desgastando Georges. Em determinado momento, ao tentar fazer com que Anne beba um pouco de água, ele perde a paciência e bate no rosto da esposa. O amor que os une não é capaz de suportar e superar a doença.  

A filha do casal, Eva (Isabelle Huppert), que mora com o marido, Geoff, na Inglaterra, parece preocupada com a saúde da mãe. Invade a privacidade dos velhos em dois momentos. Mas, impotente, não colabora muito. Ou talvez, como compete aos filhos que estão distantes, não consegue ajudar. Em questões familiares, as soluções nunca são simples. 

Salvo a cena inicial, todo o filme ocorre dentro de um enorme apartamento – a câmera parada (posicionada teatralmente) registra o movimento dos personagens, invade a intimidade, mostra os elementos pouco dignos que compõem a decadência (a teimosia incompatível com a realidade, as fraldas geriátricas, os delírios da memória).

A música encantatória da cena de abertura do filme vai desaparecendo até que se transforma em silêncio opressivo – metáfora do declínio físico de Anne. A ausência de mobilidade se transforma em estado vegetativo. O inominável está refletido no vazio do apartamento.

Da mesma maneira que a pomba, que entra pela janela aberta, precisa da imensidão do espaço para abraçar a liberdade, a história de Georges e Anne termina de forma abrupta. É tempo de partir. Depois da vertigem, a queda. Não há mais espaço para o amor. Sofrimento não combina com elegância.



Amor é um filme multipremiado: Festival de Cannes, 2012 (melhor filme); Prêmio César, 2013 (Melhor filme, melhor atriz, melhor ator, melhor diretor e melhor roteiro original); Globo de Ouro, 2013 (melhor filme em língua estrangeira); Oscar, 2013 (melhor filme em língua estrangeira).

sexta-feira, 22 de março de 2013

FÁBRICA DE DIPLOMAS – UM ROMANCE CÍNICO E DIVERTIDO


O professor universitário e escritor Felipe Pena, conhecido por defender a interação lúdica entre o leitor e o texto ficcional, em diversos momentos veste a fantasia de cruzado medieval  – como se estivesse predestinado a unir a cruz e a espada através da literatura de entretenimento.

Com uma bibliografia bastante significativa, que inclui alguns livros acadêmicos, a organização da coletânea Geração Subzero (20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores) e vários romances, Felipe Pena faz questão de escrever – em alto e bom som – que cansou de parte da brincadeira educacional. Pelo menos, no que se relaciona às universidades particulares, cursinhos walita e diplomas decorativos – utensílios do capitalismo contemporâneo, comprados em suaves e intermináveis prestações mensais.

O narrador do romance Fábrica de Diplomas, que foi publicado inicialmente com um título horrível: O Analfabeto que Passou no Vestibular, lança farofa no ventilador. Quilos. Toneladas. Sem nenhuma preocupação com a sujeira. Nem mesmo a literária. Na contramão do politicamente correto, usando a crítica de costumes como centro das atenções, consegue construir texto divertido e instrutivo.

Misturando episódios reais  (seja lá o que isso for) com a ficção ad hoc, abusando dos lugares comuns do romance policial e da psicanálise mais rasteira possível, o livro apresenta um grupo de personagens interessantes: o dono da rede de ensino e seu filho medíocre, o funcionário ambicioso (que não hesita em trair o patrão na primeira oportunidade), o psicanalista ingênuo, o brutamontes analfabeto.

Como pano de fundo para construir o enredo, o romance inicia com duas tramas diferentes: a guerra para controlar a rede universitária Bartolomeu Dias e a produção de uma droga sintética no laboratório de farmácia da Universidade. Como sempre acontece nessas situações, a bifurcação é aparente.


O psicanalista Antonio Pastoriza, elevado à categoria de detetive, segue as pegadas do inconsciente coletivo e não entende nada. Mais perdido do que cachorro que caiu do caminhão de mudanças, somente descobre o que aconteceu por acaso. Ele não faz o gênero clássico do detetive dedutivo ou investigativo – em algumas situações sequer é verossímil. Está em cena como um catalisador das ações narrativas. E até isso parece discutível.

No meio da confusão, enquanto Pastoriza corre para lá e para cá, feito uma barata tonta, os acontecimentos vão se desenrolando diante dos olhos do leitor, possibilitando que o desenho se complete e projete uma imagem com um mínimo de coerência. Ou seja, o narrador (em terceira pessoa) manipula a narrativa de tal forma que a carpintaria textual se distancia quinhentas léguas dos personagens "planos", sem a mínima personalidade ou humanidade, que habitam o romance escrito por Felipe Pena. 

Partindo dessa comprovação elementar, fica fácil aceitar os principais elementos narrativos desse romance cínico: parte da polícia é corrupta, mulheres bonitas sinalizam o perigo, o conhecimento é manejado pelos medíocres e, last but no least, o capitalismo predador não possui escrúpulos.

Enfim, Fábrica de Diplomas está envolto em milhares de clichês – alguns repetidos ad nauseam. Obviamente, isso não é impedimento para que a narrativa escorra limpidamente, de maneira prazerosa, retratando com crueldade absoluta os mecanismos de manipulação da massa (de manobra) estudantil. Impossível não rir – seja com a cretinice que caracteriza os personagens, seja com o espelho das estruturas educacionais do Brasil.               

segunda-feira, 18 de março de 2013

NOTURNO DO CHILE

Na história das ditaduras latino-americanas, o conluio entre os militares e a religião católica nunca constituiu surpresa. Em alguns casos, foi apenas um desdobramento natural das relações de poder. E isso significa dizer que, divididos entre defender os pobres e fechar os olhos para o arbítrio político, alguns servos do Senhor pecaram várias vezes. Seja por omissão, seja por colaboração.

O padre e crítico literário Sebastián Urrutia Lacroix (que adotava o nom de plume H. Ibacache) está morrendo. Na ânsia de impedir que alguns acontecimentos que viveu ou presenciou desapareçam na vala comum do esquecimento, gastou os seus últimos dias na redação de um verborrágico depoimento. É difícil não perder o fôlego no único parágrafo que constitui as 118 páginas de Noturno do Chile, novela de Roberto Bolaño. Inclusive porque o real e o delírio estão misturados em proporções desequilibradas.
Transitando entre o que aconteceu e o que imaginou, Sebastián faz um pequeno inventário da história literária do Chile – antes, durante e depois do governo de Augusto Pinochet. A parte mais folclórica ocorre “durante”. Contratado para um serviço que deve ser prestado na penumbra e na mudez, longe do fulgor das medalhas, ministra nove aulas. O combinado eram dez. A última não acontece. Os alunos, integrantes da junta militar que depôs Salvador Allende, estavam satisfeitos. Não era mais necessário continuar com os ensinamentos sobre marxismo.

Escondido atrás do argumento que a religião e a literatura operam em uma esfera superior às ambições humanas, Sebastián fecha os olhos para tudo o que o possa comprometer em um mundo em transição política. Blindado, conduz 90% de seu relato. Somente nas páginas finais, quando as forças vitais parecem estar se esgotando, quando não mais é possível tergiversar, é que revela o inominável.

Como se fossem criaturas especiais, desses que estão acima do bem e do mal, os artistas chilenos (aqueles que não haviam sido mortos, exilados ou presos) se reuniam uma vez por semana em saraus literários e etílicos na enorme casa de campo de María Canales, uma escritora de segunda classe. Para que ninguém fosse tentado a ir embora antes do amanhecer, quando era suspenso o toque de recolher instituído pelos militares, havia comida, bebidas e conversa. Tudo em quantidade.

A casa era enorme, três andares e um porão. Sebastián conta que certo dia um dos convidados, seja porque estava bêbado, seja porque tinha péssimo senso de direção, quando foi procurar pelo banheiro, errou o caminho e acabou entrando em um corredor a que os estranhos à vida diária da casa não deveriam ter acesso. Foi abrindo portas e mais portas, encontrou quartos vazios e mais corredores. Desceu uma escada. Abriu a última porta. Acendeu a luz. E viu o que estava escondido diante dos olhos de todos. Sobre uma cama metálica, um homem nu estava amarrado pelos pulsos e tornozelos. A pessoa que havia se extraviado, subitamente recuperada da bebedeira, apagou a luz, fechou a porta e foi embora – o mais rápido possível.

Algum tempo depois, a notícia se espalhou como se fosse rastilho de pólvora. Prisioneiros políticos eram torturados no porão da casa de campo de María Canales. Não era boato ou invenção. O marido de María, agente da CIA, estava a serviço da ditadura.

Era assim que se fazia literatura no Chile, diz, entristecida e lúcida, María Canales – enquanto olha para as ruínas que a cercam, enquanto não é devorada pela grande máquina de moer carne do tempo.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Argo e Duro de Matar 5



O Oscar de Melhor Filme de 2013 foi entregue a Argo (Argo. Dir. Ben Affleck, 2012). Interessante. Se fosse dado para Duro de Matar 5 – um bom dia para morrer (A Good Day To Die Hard. Dir. John Moore, 2013) provavelmente seria a mesma coisa. E isso não é uma piada.  


Independente de discussões ideológicas ou sobre o caráter ficcional que envolve um e desaparece no outro, não há muitas diferenças entre eles. Ou melhor, há várias diferenças significativas, a principal é que o filme produzido como entretenimento produz alguma reflexão e o filme reflexivo não passa de entretenimento de segunda categoria. E isso, como não poderia deixar de ser, explica porque um é desprezado pela crítica "culta" e o outro ganhou um prêmio cobiçado pelo capitalismo predatório.

Na sala de cinema, assistindo Duro de Matar 5, cercado por adolescente que vibravam com as cenas feéricas que “destroem” Moscou e Chernobyl, repetição ad nauseum de trezentas outras cenas com carros, explosões e reflexão zero, fiquei lembrando o quando me senti desconfortável ao ver em Argo, alguns dias antes, a glorificação do herói estadunidense, que, em nome da democracia, consegue realizar tarefa digna de personagem de história em quadrinho. Subitamente, o "real" (seja lá o que isso for!) me pareceu sinônimo de tédio.

Argo foi baseado no livro Master of Disguise: My Secret Life in the CIA de Antonio J. Mendez e no artigo How the CIA Used a Fake Sci-Fi Flick to Rescue Americans From Tehran de Joshuah Bearman, publicado na revista Wired.


O roteiro de Duro de Matar 5, assinado por Skip Woods, foi baseado em Nothing Lasts Forever, best-seller de Roderick Thorp. E representa uma guinada radical na série. Enquanto os filmes anteriores se caracterizam pela violência extrema, sem muita consistência política, sem dissimular a ausência de qualquer tipo de comprometimento com qualquer coisa que não seja anestesiar o espectador,  a união familiar de Jake e John McClane  resulta em tempero típico dos velhos filmes de espionagem - em interessante retorno aos tempos da “Guerra Fria”. Muitos expectadores, depois da projeção, lembraram de histórias semelhantes, protagonizadas por Ethan Matthew Hunt, James Bond ou Jason Charles Bourne.   

Em princípio, o fio da meada dos filmes de espionagem orbita em torno da incompetência do Departamento de Estado estadunidense. A trama de Argo revela que a política externa de Estados Unidos desprezou a importância da Revolução Islâmica, que destronou o Xá Reza Pahlevi, em 1979. A ascensão do Aiatolá Khomeini somada com diversos momentos de inabilidade diplomática resultou em mortes, reféns, prejuízo econômico e um grave incidente diplomático. Em flagrante violação das leis internacionais, centenas de iranianos invadiram a Embaixada de Estados Unidos. Seis funcionários conseguiram fugir, refugiando-se na Embaixada do Canadá. O filme está centralizado na forma criativa com que esses seis funcionários foram resgatados por Tony Mendez - que cria um filme "fake" para enganar o exército iraniano. 

Duro de Matar 5, pela primeira vez na história da franquia, é uma narrativa de espionagem. Com a vantagem de que não esconde o processo de reciclagem. No máximo, pretende oferecer embalagem nova para produto velho.  John McClane Júnior (Jai Courtney) trabalha para a Central Intelligence Agency (CIA). Sua missão em Moscou é recuperar um dossiê político e ajudar um líder político a sair da Rússia. O velho pai, John McClane (Bruce Willis), preocupado com a saúde do filho, ao descobrir que ele está preso em uma prisão de Moscou, invade a cidade, provoca um pandemônio e estraga vários meses de trabalho. Não satisfeito, se oferece para consertar o prejuízo.  Resultado: mais demolições, mais explosões.  Depois de cerca de três quartos do filme, há a inevitável reviravolta – o  que parecia uma coisa se revela outra e os mocinhos se tornam bandidos. Imutáveis, pai e filho continuam destruindo o patrimônio alheio. Mais uma vez, um helicóptero é derrubado por McClane.

O maior defeito de Argo é a linearidade. A narrativa se torna cansativa, previsível, sem apelo dramático. O personagem interpretado por Ben Affleck parece estar sob efeito de várias doses cavalares de algum antidepressivo. Tudo é muito controlado, todas as peças do quebra-cabeça encaixam. Falta vida, improviso, intensidade. E o ridículo suspense das cenas finais (centenas de vezes repetido em outros filmes) contribui para piorar o que já era quase intolerável. Em compensação, o caos e a brutalidade de Duro de Matar 5 não entediam. Muito pelo contrário, o espectador torce para que a bagunça aconteça. É o desfecho ideal para um filme que não promete a salvação "democrática" ou qualquer outra ideologia capenga.

Resumo da ópera: apesar de ser um filme ruim, Duro de Matar 5 é divertido. Argo é filme ruim, sem a mínima diversão.

quinta-feira, 7 de março de 2013

DIANTE DA MÚSICA, O PRECONCEITO ENGOLE A POESIA


Basta morrer alguém: Cazuza, Renato Russo, Chorão. Não importa quem. A discussão vai e volta. E quando volta, sempre está envolta em preconceitos. Conceitos incapazes de entender o que precisa ser entendido. Ignorância sobre o básico: há espaços para todos. Do fox até a ópera italiana, da epopéia grega até o haiku. A poesia e a música são as vozes legítimas das ruas e das bibliotecas, da alta literatura e da cultura popular. Simples assim – sem se importar com a transcendência divina sobre a Terra, pois diversos são os caminhos para o prazer, para o timbre e o ritmo. Para o som da palavra e para a palavra que imita o som.

A irracionalidade impede o básico. Nesses momentos conturbados, onde sentimentos mal administrados se impõem sobre a coerência, não adianta gastar latim tentando explicar o que é e o que não é. Porque, nesse tipo de jogo, o importante nunca receberá boas cartas. O lance (de dados?) é outro. Outro logro. Caetano Veloso e Chico Buarque, na companhia de compositores musicais menos votados, estão cansados de receber vaias e exclusão. Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada – profetizou o baiano, talvez lembrando Walt Whitman, Que pode haver de maior ou menor do que um toque?, talvez imaginando que não existem paredes entre o iskeite, a prancha de surfe, o roquenrou e a poesia. 

F(r)estas, interstícios da paixão, intervalos da emoção, dentro da cornucópia artística há lugar para colocar em xeque as certezas mais incertas. Eu hoje me embriagando / de uísque com guaraná / ouvi tua voz murmurando: / são dois pra lá, dois pra cá. Como se fosse uma praga bíblica surge do nada vários sujeitos sem samba no pé querendo castrar quaisquer tipos de desordem. Proclamando que música e poesia são artes diferentes, não se misturam. Não devem gozar (em vários sentidos e posições) da miscigenação física e sonora. Exceto em alguns poucos e raros momentos, daqueles que, se existem, ninguém viu, provavelmente nunca verá, embora não se possam excluir as possibilidades matemáticas, a estatística sempre aceita margens para o erro. 

O equivoco é a prova dos nove, apesar do Vinícius de Moraes, Porque a poesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que por ela abandonei. Apesar dos exercícios de linguagem não carregarem a iniquidade e a insensatez, afinal Meus heróis / morreram de overdose / meus inimigos / estão no poder. 

Baionetas caladas e vozes veladas implantam horror contra quem estiver disposto a defender a ideia que poesia é tudo o que queiramos chamar de poesia. Falta entender que É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. 

Letras de música, mil e um sentimentos infantis empilhados na página de papel, uns tantos versos desajeitados, rapte-me camaleoa / adapte-me a uma cama boa, desses que parecem não ter pé nem cabeça, muitas vezes ridículos, tão ridículos como cartas de amor, pois é, esses versos também são poesia.

Diante do imaginar tais possibilidades surgem soldados da obscuridade a proclamar que isso é absurdo, despropósito, despautério, quinhentos outros palavrões a crivarem de estampidos reacionários o emissor dessa ideia infeliz. Não deixam espaço para que o mestre e o aprendiz encontrem o caminho para Juilliard ou Salzburg – lá onde músicos e poetas são amigos do rei.

O cotidiano e o sublime não pagam imposto para o desespero. Sonhar não faz parte do brinquedo. Dessa brincadeira. Talvez o mundo não seja pequeno / nem seja a vida um fato consumado

Há quem julgue que a poesia precisa ser um amplo painel da cultura superior. Drummond de Andrade, João Cabral, Manuel de Barros como corporizações da poesia. Há quem abandone lágrimas, flores, dores e rimas paupérrimas. Por fidelidade ao propósito também ignoram amores infelizes. Tolice. Eu vou fazer tudo o que eu puder / eu vou roubar essa mulher pra mim / numa noite especialmente boa / não há nada mais que a gente possa fazer. Tudo é poesia, tudo é música.  Poesia é música, música é poesia. Assim como o silêncio – canção, benção, oração.

Nem  que seja para fazer barulho, ler versos em voz alta aproxima uma arte da outra. É quase um cantar, é quase um altar. Não há dúvidas. Não há dívidas. Esse é ponto pacífico. Ou atlântico. Pouco importa o oceano. Haveremos de naufragar. Alegres. Juntos.

Embolar a poesia e a música em um único corpo – explodindo de tesão. E, como lembra o menestrel, Se não eu / quem vai fazer você feliz?


terça-feira, 5 de março de 2013

POR QUE ALMOCEI MEU PAI

Parábola (do grego “parabole”) é uma narrativa alegórica, que utiliza situações e pessoas para transmitir lições de sabedoria ou moral. Construída linearmente, com começo, meio e fim (nessa ordem), utiliza a linguagem metafórica como é possível verificar em algumas passagens da Bíblia, por exemplo. O realismo contribuiu para que se tornasse um gênero literário quase esquecido.

Por algum motivo inexplicável, o texto (que beira o nonsense) Por Que Almocei Meu Pai, do estadunidense Roy Lewis, escrito em 1960 e publicado no Brasil em 1993, saiu de catálogo. Ou de moda.  Lamentável. Poucas vezes na história da literatura um autor conseguiu desenvolver um tema tão anacrônico e, ao mesmo tempo, tão engraçado.

Centrada na pré-história, a narrativa desmonta a história da evolução humana. Contrastando piadas, chistes e situações inusitadas com o cientificismo contemporâneo, produz interessante curto-circuito linguístico. E dezenas de gargalhadas. Impossível não rir com diversos episódios. Os principais são a institucionalização das relações exogâmicas e a aquisição do fogo.

Edward, o pai, em experimento antropológico avant la lettre, elabora um complexo esquema de caça para afastar os filhos da órbita familiar. Quer garantir a sobrevivência da espécie misturando tribos. Inabilitados para as caçadas amorosas, os rapazes se tornam presas fáceis nas mãos de mulheres muito mais preparadas para os relacionamentos afetivos e sexuais. O patriarcado se mantém na aparência, mas as disputas pelo poder se resolvem na cama. Seria trágico não fosse muito divertido – e real. 

Assumindo posição similar a de Prometeu, Edward, sem suspeitar que os avanços propostos pela modernidade estão intimamente ligados a inúmeros desastres, descobre como dominar o fogo. Quer dizer, dominar mesmo ele não domina, mas, como todo curioso, vai experimentando. Embriagado pela fantasia que é controlar a natureza, ignorou quaisquer medidas de segurança.  Além dos avisos de seu irmão, Vanya, eterno pessimista.

Foi um lindo incêndio. Por pouco a horda não se transforma em churrasco. Como compensação para esse desastre ecológico, a humanidade adquiriu novos hábitos gastronômicos. A carne de mamute se tornou mais palatável depois de assada.  

Assim, entre a tentativa e o acerto, a vida coletiva vai se acertando, estabelecendo regras e comportamentos. O grupo inicial se multiplicou através dos filhos dos filhos.

A tarefa seguinte coube ao filho mais velho, que também é o narrador. Seguindo a tra(d)ição histórica e antecipando as teorias freudianas, na primeira oportunidade encontra um modo de afastar o pai de cena e assumir o poder. A farsa se renova nas páginas finais, quando o cadáver paterno alimenta o avanço da tecnologia. 

Por Que Almocei Meu Pai projeta uma lição ética imprescindível: para quem quer viver bem, não há melhor remédio que o humor. 

segunda-feira, 4 de março de 2013

OUTRAS QUARENTA E CINCO FRASES DO PADRE ANTONIO VIEIRA


O peso das coisas do mundo não está nelas, todas são vãs, está no coração com que as amamos.

Não há alegria neste mundo que não pague pensão à tristeza.

A perfeição não consiste nos verbos, senão nos advérbios.

A riqueza se faz de muitas pobrezas.

Muitas vezes parecem finezas de amizade o que são ódios refinadíssimos.

O pecado que mais facilmente se comete é a omissão.

Quem serve junto dos reis há de engolir os gemidos.

A sabedoria consumada não só consiste nas coisas que se dizem, senão no modo com que se dizem.

Um grande delito muitas vezes achou piedade: um grande merecimento nunca lhe faltou inveja.

A esperança do prêmio alenta a arriscar a vida.

O que se concede a um porque o pede não se pode negar a outro, ainda que o não peça.

Assim como a honra é o anjo da guarda da virtude: assim é o laço do Demônio para os vícios.

A ousadia é metade da vitória.

O que só apascenta e não defende suas ovelhas não é pastor, é mercenário.

[A] morte é menos forte do que o amor, porque aquela sepulta aos que matou, e este sepulta sem matar.

Para persuadir e convencer, maior é a força da paciência que a dos milagres.

Os homens que são pais têm duas vidas.

Maior é o gosto quando se acham as coisas perdidas do que a sua posse antes de se perderem.

Não é mais pobre quem tem menos, senão quem necessita de mais.

O maior perigo é quando se teme os remédios.

Se há 24 modos de negar, haverá 25 de pedir.

Os remédios do amor são quatro: o tempo, a ausência, a ingratidão e o melhorar do objeto.

O ruim amigo, assim como é inimigo de si mesmo, o é também de seu amigo.

[Os] talentos antigamente significavam dinheiro, e hoje o dinheiro é todos os talentos.

De duas verdades partidas fazem os mentirosos uma mentira inteira.

Quem serve tem alguma hora de descanso: e quem manda, nenhuma.

Ao longe do rei se provam talentos e virtudes dos ministros.

Foi Salomão o mais sábio, não só por saber as ciências, mas também por saber as ignorâncias.

É desgraça dos reis não haver quem lhes diga as verdades.

Rico se não pode chamar quem tem tudo, senão quem não quer nada, porque nenhuma coisa lhe falta.

A causa de todas as ruínas do mundo é não concordarem os homens o seu querer com o seu poder.

Todas as maldições do mundo temporais e eternas foram causadas por uma mulher: não alheia, mas própria.

Cada um ouve conforme o seu coração.

Os sapatos dos reis não pisam, coroam.

[A] soberba e [a] ambição de subir nunca está mais que sobre um pé; tem um pé no lugar que possui, e o outro já vai pelo ar para o lugar que pretende.

É ofício do Sol perseguir sempre as trevas, e conquistar o que elas possuem.

Escribas e fariseus são toupeiras com presunção de lince.

A vida eterna depende do ócio perfeito.

O imprudente se aconselha consigo: o prudente com os homens: o prudentíssimo com Deus.

Não é razão que saiba vencer quem se não sabe vencer da razão.

Quando começou o mandar, então se começaram a encurtar as vidas.

Ver e não remediar é não ver.

Quando os que são olhos da República veem uma coisa por outra, é certa a ruína.

Saber morrer é a maior façanha.

O pão repartido entre muitos interesseiros não contenta a todos.


sexta-feira, 1 de março de 2013

PADRE ANTONIO VIEIRA: QUARENTA E CINCO FRASES


Não há altura neste mundo que não seja precipício.

Quem não lê, não quer saber; quem não quer saber, quer errar.

A restituição do respeito é muito mais difícil do que a do dinheiro.

Dores certas não se podem curar com remédios duvidosos.

A vista dos bens alheios cresce o sentimento dos males próprios.

Há inimigos que perseguem e inimigos que adulam.

Em todos os parentes o amor é acidente que se pode mudar; no amigo fiel é essência, e por isso imutável.

Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras.

Perdida a honra e a fama, entra no seu lugar a afronta e a infâmia; e por elas se franqueia o passo de todas as maldades.

A boa educação é moeda de ouro. Em toda a parte tem valor.

Para aprender não basta só ouvir por fora, é necessário entender por dentro.

Amar e não ser amado é ser mártir; ser amado e não amar é ser tirano.

O sol pode fazer dias longos: dias grandes só os podem fazer as ações.

Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.

A dor não tem juízo, e nenhuma é maior que a do amor ofendido.

Tirar as armas do inimigo e convertê-las contra ele é fazer de um mal dois bens.

Muitos cuidam da reputação, mas não da consciência.

Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia esteja acesa, é necessário também que a distância seja proporcionada.

A vida é uma lâmpada acesa: vidro que com um assopro se faz, fogo que com um assopro se apaga.

Quem não pergunta por ignorância, pergunta por gosto

Quem quer mais que lhe convém, perde o que quer e o que tem.

Amor segundo é mais qualificado do que amor primeiro, porque é amor sobre amor já conhecido.

 O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive.

Pregador que usa das armas alheias nunca derrubará gigante.

Amor e ódio são os dois mais poderosos afetos da vontade humana.

Três dedos com uma pena podem ter muita mão.

Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?

Onde há inveja e ambição de lugares, não há virtude.

Não há inocência que esteja segura de um falso testemunho.

Acusar um para condenar outro é astúcia mais que diabólica.

Os muros, como o cinto, não são muros enquanto se não fecham.

Amar é querer bem, e amar mais é querer padecer males pela coisa amada.

O primeiro efeito, ou conseqüência, da necessidade é o desprezo da honra; o segundo, a destruição da virtude.

Assim como tomar a mulher alheia é adultério da torpeza: assim tomar a fazenda alheia é adultério da cobiça.

O tempo umas coisas melhora e outras corrompe.

Os pretendentes são como águias vulturinas, que em cheirando corpo morto, logo voam a cevar-se.

Pior é uma verdade diminuída que uma mentira muito declarada.

A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana os homens.

Só a necessidade há-de obrigar à guerra, mas a vontade sempre há-de desejar a paz.

Amor é um sentimento que faz insensíveis.

O fruto, quando está maduro, se se não colhe, cai e apodrece. Não está a felicidade em viver muito, senão em viver bem.

Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro.

Os bons anos não os dá quem os deseja, senão quem os assegura.

Muito mais custa abrir a boca para pedir, que fechá-la para calar.

É tão grande o sabor do alheio, é tal a doçura e suavidade do que se furta, que até pão e água, se é furtado, é manjar muito saboroso.