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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O ÓDIO EM QUARENTA PORÇÕES

Se você odeia alguém, é porque odeia alguma coisa nele que faz parte de você. O que não faz parte de nós não nos perturba. (Herman Hesse)

Poucas pessoas podem ser felizes a menos que odeiem alguma pessoa, nação ou crença. (Bertrand Russel)

Ofender é o meu prazer. Adoro ser odiado. (Edmond Rostand)

O amor e o ódio são irmãos. Mas o ódio é um irmão bastardo. (Vergílio Ferreira)

As aparências enganam / aos que odeiam e aos que amam / porque o amor e o ódio / se irmanam na fogueira das paixões. (Tunai)

Já vivi o suficiente para ver que a diferença provoca o ódio. (Stendhal)

Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (Machado de Assis)

Para ódio e amor que dói, amanhã não é consolo. (Guimarães Rosa)

Não, eu não odeio as pessoas. Só prefiro quando elas não estão por perto. (Charles Bukowski)

A grande arte exige amor e ódio. (Bertolt Brecht)

O que precisamos é de ódio. Dele nascerão as nossas idéias. (Jean Genet)

O ódio tem melhor memória do que o amor. (Honoré de Balzac)

Como é duro odiar os que se gostaria de amar. (Voltaire)

Qualquer escolar pode amar como um idiota. Mas odiar, meu filho, é uma arte. (Ogden Nash)

O ódio é a vingança do covarde. (George Bernard Shaw)

Homens ofendem por medo ou por ódio. (Maquiavel)

O obséquio produz amigos; a verdade, ódio. (Terêncio)

Quando o sangue respira o ódio, não pode dissimular-se. (Sêneca)

Deve-se temer mais o amor de uma mulher, do que o ódio de um homem. (Sócrates)

Todo dia leio cuidadosamente os avisos fúnebres dos jornais; às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas. (Millôr Fernandes)

Sou livre de qualquer preconceito. Odeio todo mundo, indistintamente. (W. C. Fields)

Toda pessoa normal se sente tentada, de vez em quando, a cuspir nas mãos, içar a bandeira negra e sair por aí cortando gargantas. (H. L. Mencken)

Não levo ninguém a sério o bastante para odiá−lo. (Paulo Francis)

É melhor ser odiado pelo que você é do que amado pelo que você não é. (André Gide)

Deve−se perdoar os inimigos, mas não antes que eles sejam enforcados. (Heinrich Heine)

Do ódio à amizade a distância é menor que do ódio à antipatia. (Jean de La Bruyére)

Não há nada mais tenaz que um bom ódio. (Machado de Assis)

Creio no riso e nas lágrimas como antídotos contra o ódio e o terror. (Charles Chaplin)

O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. (Érico Veríssimo)

Um pouco de desprezo economiza bastante ódio. (Jules Renard)

A ausência tanto é um remédio contra o ódio como uma arma contra o amor. (Jean de La Fontaine)

 Quanto menor é o coração, mais ódio carrega. (Vitor Hugo)

O amor pode viver de recordações; o ódio requer realidades presentes. (Miguel de Unamuno)

O ódio sem desejo de vingança é um grão caído sobre o granito. (Honoré de Balzac)

O olhar de quem odeia é mais penetrante do que o olhar de quem ama. (Leonardo da Vinci)

A inveja é mais irreconciliável do que o ódio. (François de La Rochefoucauld)

Há homens cujo ódio nos glorifica. (Denis Diderot)

Amor e ódio são os dois mais poderosos afetos da vontade humana. (Padre Antonio Vieira)

O afeto ou o ódio mudam a face da justiça. (Blaise Pascal)

O ódio é sempre mais clarividente e mais engenhoso do que a amizade. (Pierre Laclos)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O SUBSTITUTO

Ele só ferra as coisas deles. E as mulheres choram por mim no funeral porque eu não estou mais lá para comê−las sem camisinha e essas merdas. E meus parceiros vão sumindo na fumaça da maconha e da merda toda. (trecho de redação com o tema "o que poderia ser dito no seu funeral", escrita por um dos alunos da turma de inglês 11A, do professor Henry Barthes).


O imaginário contemporâneo está povoado pela imagem edulcorada de que os professores são heróis e que se esforçam – de todas as maneiras possíveis − para combater a ignorância, o preconceito e a tirania. Continuar na profissão, apesar dos péssimos salários, reforça o estereótipo.

Alguns filmes, como Ao Mestre Com Carinho (To Sir With Love. Dir. James Clavell, 1967), Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society. Dir. Peter Weil, 1989) e O Clube do Imperador (The Emperor’s Club. Dir. Michael Hoffman, 2002), entre outros, preocupados com as lições extraídas dos temas pedagógicos ou éticos, raramente abordam o cerne da relação professor−aluno. Há pouco interesse em transcender o que está contido Entre os Muros da Escola (Entre les murs. Dir. Laurent Cantet, 2008). E, para desespero geral, há muitas outras coisas lá fora.

O Substituto (Detachment. Dir. Tony Kaye, 2011), recentemente lançado em DVD e Blue−Ray, está na contramão dos filmes comportados. Misturando artes gráficas (desenho animado) com o contexto relatado (aproveitando que esse hibridismo narrativo, associado com a crítica comportamental, produz estragos consideráveis), avança no território quase inexplorado das neuroses que afligem professores e alunos.

Espectadores acostumados com o lirismo flor−de−laranjeira da ideologia burguesa reagem mal ao diversos depoimentos em primeira pessoa do professor Henry Barthes (interpretado por Adrien Brody). Quebrando a linearidade narrativa, ele não se omite e faz um relato cruel sobre a dor que envolve os relacionamentos afetivos. Sem concessões ao padrão construído pelo enquadramento social, o filme mistura a repugnância esterilizadora e anestésica do politicamente correto, a inutilidade dos aconselhamentos psicológicos e o ódio adensado pela luta de classes, pela alienação e pelo preconceito (étnico, sexual, econômico).

Henry Barthes, professor de língua inglesa, é um homem desmontável. Tanto que a sua história pessoal está estruturada na constante troca de escolas. Evita a estabilidade. Nega compromissos. Sempre que possível, se esquiva de qualquer sentimento que envolva algum tipo de contato. Recusa conhecer as histórias pessoais e os sentimentos daqueles que temporariamente atravessam o seu caminho.

Do que foge Henry Barthes? Solidão, relações amorosas esfareladas, problemas financeiros. Na bagagem pesada que precisa carregar, se destacam a história familiar complicada, o avô doente, misérias de diversas espécies.

Henry está ciente que todas as escolas se assemelham a manicômios − as péssimas condições de trabalho e a agressividade dos alunos confirmam a tese. Mas, isso é pouco. Há algo mais. Para alguns professores, o verdadeiro perigo consiste em enfrentar a vida − horror que se instala logo em seguida ao término das aulas. É quase impossível evitar o afogamento nesse mar de angústia.

Carol Dearden, a diretora da escola, impotente ao poder avassalador da política distrital; Érica Lewis, a jovem prostituta que faz ponto na esquina; Meredith, a aluna talentosa e discriminada (de várias maneiras); Sarah Madison, a professora escrupulosa – cada uma dessas mulheres, de uma forma ou de outra, contribuiu para alterar a rota de colisão com o desespero que está tomando conta da vida de Henry Barthes.

Quando Meredith se suicida em público, comprovando que a juventude está se despedaçando por falta de atenção, de carinho e de compreensão, Henry consegue perceber que a tragédia não mais pode ser revertida. E que ele também está contribuindo para negar o problema.

Ao final do filme, encenando uma metáfora pouco comum, embora bastante funcional, Henry Barthes lê para os alunos um trecho do conto A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe:  

Durante um dia inteiro, silencioso, sombrio e monótono, na estação outonal do ano, quando as nuvens opressivas e baixas dos céus, eu tinha estado passeando a cavalo, através de uma parte singularmente árida da região; e finalmente encontrei−me, quando as sombras do crepúsculo já se avizinhavam , à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como descrever, porém, desde que pela primeira vez contemplei o edifício, uma sensação de tristeza insuportável permeou meu espírito. Digo que era insuportável, porque o sentimento não era aliviado por qualquer dessas impressões meio agradáveis, porque estão cheias de poesia, com as quais a mente recebe até mesmo as imagens naturais mais lúgubres, desoladas e terríveis.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A NÃO-FICÇÃO DE DAVID FOSTER WALLACE


A comunidade literária contemporânea adora ressuscitar alguns cadáveres putrefatos.

Essa brincadeira (também conhecida como o milagre de transformar imagens sem valor em pilhas de moedinhas valiosissimas) agrada a todos − o morto, os responsáveis pelo espólio, alguns professores de literatura (carregando quilométrico séquito de estudantes), os editores, os tradutores e os insetos necromantes (ou será necrófilos?).

O último zumbi da literatura contemporânea, David Foster Wallace, está fazendo enorme sucesso nos guetos modernosos. Embora os 23 contos de Breves Entrevistas com Homens Hediondos, volume publicado no Brasil em 2005, estejam encalhados nas estantes dos piores sebos, vá lá, mofando nos saldos dos melhores sebos, jornais e revistas (off and on−line) não economizam espaço para glorificar o morto−vivo, que, entre outras gracinhas, já foi apelidado de "Kurt Cobain das letras". Seria engraçado não fosse muito ridículo.

A recente publicação comercial de alguns textos de não−ficção de Wallace, em um volume de título engraçado, Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, reacendeu o brilho dos olhos eternamente ávidos do deus mercado – confortavelmente instalado na proa da caravela, o marujo gritou: "Dinheiro à vista!"

Graforréico, Wallace não se constrangia em encenar a brincadeira infinita − ápice inventivo de um escritor que teve dificuldades para entender as dificuldades da vida. Em Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer, crônica de "apenas" 125 páginas, descreve uma viagem de sete dias em um transatlântico. Misturando fofocas de terceira classe com detalhes técnicos que não possuem o mínimo interesse na produção de um texto objetivo, Wallace espicha a narrativa até os limites da exaustão. Essa obsessão enciclopédica pela descrição dos detalhes (também evidenciada no texto homônimo ao título do volume) irrita e, ao mesmo tempo, provoca. Que outras barbaridades ele pretende relatar?, pergunta o leitor, sem saber se David Foster Wallace quer construir a imagem total do objeto de sua escritura ou destruir a paciência de quem se aventura nesse tipo de leitura.

Não bastasse a falta de objetividade, o cara adora salpicar os textos com notas de rodapé – recurso que fragmenta a leitura, amplia a confusão e exige atenção redobrada. A vantagem dessa insanidade é simples: evita atrapalhar o fluxo narrativo e abre espaço paralelo para comentários pessoais, observações irônicas, diversões inconsequentes. Nem sempre isso acontece. Um exemplo clássico do uso desse artifício está nas cinco páginas, repito, cinco páginas absolutamente dispensáveis que constituem a nota de rodapé número 32, em Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer. O que deveria ser um recurso literário criativo não passa de non-sense.

Dizem os incensadores que David Foster Wallace era um sujeito divertido, desses que conseguem manobrar com competência a ironia, a metalinguagem e a paródia. Talvez fosse. Há controvérsias. No trivial variado é apenas chato. A exceção é a crítica de costumes, onde consegue delinear com precisão o mau gosto da classe média e o pedantismo dos ricos. Mesmo assim, como os seus textos são muito longos, o tédio logo se faz presente. Em compensação, em artigos menores, como Alguns Comentários Sobre a Graça de Kafka dos Quais Provavelmente Não se Omitiu o Bastante ou em Federer Como Experiência Religiosa consegue se aproximar da genialidade.

David Foster Wallace, que sofria de grave depressão, suicidou-se em 12 de setembro de 2008. Tinha 46 anos. Em vida publicou dois romances (The Broom of the System, em 1987, e Infinite Jest, em 1996), três coletâneas de contos (Girl with Curious Hair, em 1989, Brief Interviews with Hideous Men, em 1999, e Oblivion: Stories, em 2004), além de diversos livros de não-ficção. Postumamente, em 2011, foi publicado o romance inacabado The Pale King.

Jonathan Franzen nunca economizou elogios a David Foster Wallace. Em Mais Distante, ensaio que consta do livro Como Ficar Sozinho, relata uma história aventureira: despejar as cinzas do amigo morto na ilha de Masafuera, situada em um arquipélago na costa central do Chile.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O SENTIDO DE UM FINN

A teoria da literatura valoriza qualitativamente alguns elementos. Por exemplo, episódios que não constituem a linha principal do que está sendo relatado. Em outras palavras, em alguns textos ficcionais ocorrem, simultaneamente, duas histórias (no mínimo). Uma delas, a explícita, está visível aos olhos do leitor. A outra, a encoberta, se mantém fora do alcance do leitor comum o máximo de tempo possível. Embora o encadeamento ocorra de forma paralela, muitas vezes essa bifurcação está situada em tempo narrativo distinto.

A magnífica novela O Sentido de um Fim, escrita pelo britânico Julian Patrick Barnes e vencedora do Man Booker Prize de 2011, possui essa característica. Na medida em que o texto vai escorrendo, de forma fluente, diante dos olhos do leitor mais atento, fica evidente que, no meio daquela simplicidade bem estruturada, está faltando a(s) peça(s) capaz(es) de completar o quebra−cabeças. Uma parte da história está escondida. Qual?

Com violência imperceptível, as 64 páginas iniciais projetam claridade capaz de queimar retinas. A linguagem bem−humorada, repleta de frases exatas e criativas, de piadas suaves, fornece sabor bastante peculiar. Inicialmente centrada na visão de um adolescente de classe média, que depois ingressa na universidade, curso de História, a narrativa em primeira pessoa está repleta de observações críticas sobre o ordenamento social inglês: (...) tínhamos fome de livros, fome de sexo, éramos meritocratas, anarquistas. Todos os sistemas políticos e sociais nos pareciam corruptos, entretanto nos recusávamos a considerar uma alternativa que não fosse o caos hedonista.

Eu descobri que essa pode ser uma das diferenças entre a juventude e a velhice: quando somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros, escreveu Tony, ao elaborar o resgate ficcional das histórias que uniam (durante o período escolar, nos anos 60) Anthony, Colin e Alexander. Essa amizade estava sedimentada na presunção de que eles eram mais inteligentes do que os outros alunos (Sim, é claro que éramos pretensiosos – para que mais serve a juventude?). A grande mudança na vida do grupo ocorre com a chegada de Adrian Finn (um rapaz alto e tímido que no início mantinha os olhos baixos e guardava seus pensamentos para si mesmo). Intelectualmente superior aos três, sempre escorado em discussões morais, Adrian logo se torna uma referência na sala de aula e na vida fora da escola (Essa era uma das diferenças entre nós três e o nosso novo amigo. Nós éramos essencialmente debochados, exceto quando éramos sérios. Ele era essencialmente sério, exceto quando era debochado. Nós levamos algum tempo para entender isso.)

Três significativos itens se agregam à narrativa: o suicídio de Robson, aluno de outra turma escolar, o ingresso na universidade (exceto Alex, que vai trabalhar com o pai) e Verônica Mary Elizabeth Ford, a primeira namorada de Tony. Cada uma dessas situações altera a equação monótona com que a vida costuma desafiar aqueles que ainda não entenderam o contexto em que estão inseridos.

A história que acontece debaixo do nosso nariz deveria ser a mais clara, e no entanto é a mais deliquescente, diz Tony, em um instante de lucidez. Como ele precisa desviar de algumas dificuldades para alcançar a extensão dos acontecimentos – e nem sempre consegue executar essa tarefa −, Verônica repete várias vezes, em diferentes circunstâncias, para ele, Você simplesmente não entende... Você nunca entendeu e jamais entenderá. Essa maldição se estenderá até a última linha do livro, quando o esclarecimento dos fatos ainda o atordoam, o deixam em grande inquietude. A ex−namorada insinua que Tony não passa de um simplório e que se alimenta de ilusões. Provavelmente essa afirmação também está direcionada ao leitor, pois todos os elementos dramáticos da tragédia estão explicitamente expostos na primeira parte da novela. Como ninguém (exceto o narrador onisciente) possui a chave de leitura, não restará outra opção senão ler mais 90 páginas. Afinal, Quantas vezes nós contamos a história de nossas vidas? Quantas vezes nós ajustamos, embelezamos, editamos espertamente? E quanto mais longa a vida, menos são os que ainda estão por perto para nos contradizer, para nos lembrar que nossa vida não é a nossa vida, mas apenas a história que nós contamos a respeito da nossa vida. Contamos para outros, mas – principalmente – para nós mesmos.

História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação, afirma Adrian, sem medo de estar manejando uma frase feita. Tony Webster, cerca de quarenta anos depois, depois de um longo período de hibernação emocional, acorda e precisa enfrentar o pesadelo. Era um daqueles envelopes brancos, compridos, com meu nome e endereço aparecendo numa abertura. Eu não sei quanto a você, mas eu nunca tenho pressa de abri−los. Um escritório de advocacia estava informando−o que ele era um dos favorecidos em um testamento. Na vida de um homem organizado − desses que se recusam empilhar louça suja na pia −, longe de ser um motivo de contentamento, esse fato atípico se transforma em uma espécie de curto−circuito emocional.

A herança, composta por quinhentas libras e os dois documentos, abre as portas de algumas circunstâncias mal resolvidas no passado. Uma delas, constrangedora, se refere ao fato que, algum tempo depois de seu relacionamento com Verônica ter sido rompido, Tony recebeu uma carta de Adrian informando−o que ele (Adrian) está iniciando namoro com Verônica. A primeira reação foi absolutamente britânica, cumprimentos e votos de felicidade ao casal. Depois... Bem, o fato é que tamanho despojamento emocional ecoa um dos princípios elaborados por Adrian, no tempo do colégio: Eu odeio o jeito que os ingleses têm de não admitir que estão falando sério. Eu realmente odeio isso. Inevitavelmente, o leitor não pode impedir uma série de perguntas: Quem está sendo sério? Quem está sendo irônico? Quem está enganado? Quem está se deixando enganar?

O diário de Adrian (que se suicidou aos 22 anos) era parte da herança deixada para Tony. Verônica se apossa desse documento e se recusa a entregá−lo. Esse conflito serve de faísca para recuperar o que havia sido esquecido, para dar voz aos retalhos e remendos que a memória soterrou no passado. Mas, também, para restabelecer a imagem de um grande amigo: Quando conversávamos e discutíamos, era como se ele tivesse nascido para colocar os pensamentos em ordem, como se usar o cérebro lhe fosse tão natural quanto usar os músculos para um atleta. (...) Adrian nos levava com ele na viagem do seu pensamento como se ele mesmo não acreditasse inteiramente na facilidade com que viajava. Ele entrava numa espécie de estado de graça – mas não era excludente. Ele nos fazia pensar que estávamos pensando junto com ele, mesmo que não disséssemos nada.

Afinal, qual é o sentido de uma morte? Qual o sentido do suicídio de Adrian Finn?

Ao contornar a corrosão imposta pelo tempo e resgatar o que estava aquém de sua compreensão, Tony descobre que o fio histórico não liga a vida concreta com a vida literária. Pouco importa o esforço, a falsa cortesia e o remorso. A elucidação do mistério (a herança e a história encoberta pelo suicídio de Adrian Finn) ocorre tardiamente, quando todos os esforços resultam inúteis para consertar o desastre ocorrido há tanto tempo atrás.

A coerência assume o centro do palco quando a história explicita se funde com a história encoberta. Os detalhes sórdidos que estruturam a juventude − assim como a Medusa − destroem aqueles que os olham de frente. Eu sobrevivi. "Ele sobreviveu para contar a história" – é assim que as pessoas falam, não é? A história não se resume às mentiras dos vencedores, como um dia afirmei com tanta desenvoltura ao Velho Joe Hunt; eu sei disso agora. Ela é feita mais das lembranças dos sobreviventes, que, geralmente, não são nem vitoriosos nem derrotados.

Lembrança dos velhos tempos: Em pé: Sir Kingsley William Amis e Patricia ("Pat") Olive Kavanagh. Sentados: Martin Louis Amis e Julian Patrick Barnes.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

HISTÓRIAS SOBRE A VELHICE

Apesar dos progressos da medicina moderna, e por trezentas razões diferentes, poucas pessoas conseguem envelhecer com dignidade. Por mais contraditório que pareça, viver está relacionado com centenas de doenças, complicações amorosas, violências despropositadas, incontáveis acidentes, decepções que se somam com outras decepções. Quando o indivíduo consegue alcançar a melhor idade (que é como os cínicos definem a velhice), provavelmente só lhe restará na memória centenas de histórias amargas (muitas vezes inconclusas), milhares de ressentimentos e a solidão − o abandono afetivo familiar protagoniza o inevitável grand finale burguês.

O senador romano Marco Túlio Cícero, cerca de cem anos antes de Cristo, escreveu:

(...) vejo quatro razões para acharem a velhice detestável: 1) Ela nos afasta da vida ativa. 2) Ela enfraquece nosso corpo. 3) Ela nos privaria dos melhores prazeres. 4) Ela nos aproxima da morte.

Todos esses motivos continuam válidos dois mil anos depois, como percebe o narrador de Homem Comum (Philip Roth), quando descreve o destino de seu protagonista: Quando voltou ao hospital para fazer o check−up anual das carótidas, o exame de ultra−som revelou que a segunda carótida estava seriamente estenosada e requeria cirurgia.

Depois que inicia o entra e sai dos hospitais não é mais possível ambicionar uma vida plena, pois as dores excruciantes somadas à impotência diante do inevitável indicam que o corpo nunca mais responderá a certos estímulos e incertos desejos – ou, em hipótese muito mais cruel, está impedido de acessá−los. A presença opressora da indesejada das gentes não pode mais ser negada, não pode mais ser evitada.

Essa percepção do pesadelo está presente nas historias protagonizadas por Santiago (O Velho e o Mar, Ernest Hemingway), Gustav Aschenbach (Morte em Veneza, Thomas Mann) e Alieksiéi Fiodorovitch Karamázov (Os Irmãos Karamázov, Fiodor M. Dostoiévski). Em oposição a esse aspecto sombrio da velhice, como se fosse necessário aliviar o incomodo, poucos idosos conseguem mostrar o bom humor de Barney Panofsky (A Versão de Barney, Mordecai Richler) ou a dignidade aristocrática de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas (O Leopardo, Giuseppe Tomasi di Lampedusa). Em alguns momentos, a negação da velhice está atrelada ao esforço sexual, último gesto de resistência à decadência física (A Casa das Belas Adormecidas, Yasunari Kawabata; Memórias de Minhas Putas Tristes, Gabriel García Márquez). Casos extremos de indignação são protagonizados por aqueles que ainda dispõem de energia para narrar o horror que os cercam, como o homem que está sentado em uma bergère, em uma festa em Viena (Árvores Abatidas, Thomas Bernhard).

Não são muito comuns os casos em que as tumultuadas etapas da vida de um personagem deságuam na velhice. John Updike não se constrangeu em revelar, lentamente, diante dos olhos do leitor, a ruína física e mental de Harry Angstrom nos quatro volumes que compõem a Tetralogia Rabbit, além de uma pequena novela. O mesmo destino é reservado para Nathan Zuckerman, alter−ego de Philip Roth, que aparece em diferentes etapas de sua vida, em diversos romances. Zuckerman somente Vai embora para sempre na página final de O Fantasma Sai de Cena.

Em Senilidade (Ítalo Svevo), O Planeta do Sr. Sammler (Saul Bellow) ou Memorial de Aires (Machado de Assis), o percurso literário revela que a velhice pode ser entendida como uma espécie de ato de teimosia contra o esquecimento, contra o desaparecimento da pessoa física da memória social.

Duas coleções de contos específicos sobre a velhice procuram mapear as diversas circunstâncias (indeléveis, minúsculas, patéticas) que antecede ao momento em que o homem feito de pó ao pó voltará.

O nome do escritor estadunidense James Salter, nascido em 1926, não costuma freqüentar as páginas literárias brasileiras. Embora seja autor de considerável quantidade de narrativas, somente foi publicado no Brasil em 1997. Mesmo assim, o excelente romance Um Esporte e Um Passatempo (escrito em 1967) continua quase desconhecido.

Editado como uma coletânea qualitativa da produção de James Salter, o livro Última Noite e Outros Contos está centralizado no colapso físico e psicológico de diversos personagens. Em catorze narrativas, todas muito diferentes entre si, embora abordem variações do mesmo tema, James Salter, com um estilo que explora as sutilezas mais inesperadas, não perdoa a inevitável decadência corporal e, na medida do possível, concilia as descrições com diálogos de grande agilidade. Para alguns dos personagens desses contos, a desgraça não faz parte de suas vidas. Por motivos alheios às suas vontades, mais cedo ou mais tarde, precisarão acordar do estado de letargia e encarar a realidade (muitas vezes cruel, sempre impiedosa). Também aparecem em cena os personagens que vivem e revivem lembranças (de um tempo que acreditam ter sido melhor do que o presente).

A aparência das pessoas não corresponde à lembrança que se guarda delas, diz o narrador de Bangcoc, uma história reminiscente sobre o desencontro amoroso. Escrita em tom áspero, em ritmo lavar a roupa suja fora de casa, parece concluir que o amor se dissolve no tempo, na mesma proporção como que o esquecimento vai devorando alguns poemas. Esse descolamento da realidade também aparece em Arlington, uma versão realista da guerra travada diariamente entre os homens e as mulheres, momento em que fica comprovado − de forma inequívoca − a tolice masculina. Em Crepúsculo, o tema permanece, mas a nuance é de outro matiz. O horror de ser abandonada pela segunda vez amplia o número de cicatrizes emocionais que a Sra. Chandler coleciona. Foi até o espelho e olhou friamente para seu próprio rosto. Quarenta e seis. Estava escrito ali, no pescoço e atrás dos olhos. Jamais seria mais jovem. Devia ter implorado, pensou. Devia ter dito tudo o que estava sentindo, tudo que de repente lhe apertou o coração. O verão, com a esperança e os dias compridos, chegara ao fim. Sentia ímpetos de segui−lo, de passar de carro diante de sua casa. As luzes estariam acesas. Ela veria alguém pela janela.

A vida e a morte trocam acenos − como se fossem amigas que se reencontram – em Akhnilo. Essa afabilidade também se apresenta em Vinte Minutos, história de uma mulher que, depois de cair do cavalo, machucada, sem poder se mexer, relembra alguns episódios de sua vida amorosa. O socorro chega tarde demais – incapaz de consertar os estragos. A crueldade devastadora mostra a face mais sombria em Tão Divertido, momento em que três amigas dos tempos de faculdade se reencontram. O ato de celebrar a amizade congela as questões vitais, ignora a chegada sorrateira da morte (para uma delas – que está com uma doença terminal). O fim da vida (em vários sentidos) também é o tema de Última Noite. Ao saber que está com câncer, a esposa solicita que o marido a ajude com os procedimentos de eutanásia. Uma noite, depois de um jantar em um restaurante, na companhia de uma amiga da família, os três voltam para casa. Realizam o procedimento. Enquanto a esposa fica sozinha no quarto, aguardando o desfecho, o esposo vai se encontrar com a outra mulher. Acabam na cama. Na manhã seguinte, são acordados pela esposa. Houve algum erro com a injeção. A amante pega as roupas e vai embora, visivelmente envergonhada. Foi assim que ela e Walter se separaram depois de terem sido descobertos pela mulher. Encontraram−se duas ou três vezes depois, mas sem sucesso. Perdera−se o vínculo que une as pessoas. Ela lhe disse que não podia fazer nada. Só isso.

O inglês Julian Barnes trabalha em outra faixa de linguagem. Manejando a acidez do humor britânico, ele não perdoa ninguém. Principalmente quando seus personagens se aproximam da morte. A velhice transforma a perversidade em elemento natural. A coletânea Um Toque de Limão abriga onze contos e alguns momentos hilários. Um dos mais significativos está em Vigilância, quando um homossexual excêntrico despeja o seu horror contra os bárbaros que vão aos concertos e tossem, espirram, conversam durante a música. Pedagógico, distribui balas de menta, repreende os infratores, agride os reincidentes. Tudo é uma questão de respeito, não é? E se você não tem, alguém tem que ensiná−lo a ter. A verdadeira prova, a única prova à que temos de nos submeter, é se estamos nos tornando mais civilizados ou se não estamos. Vocês não concordariam?

Outro conto aniquilador é Higiene, a história de um militar veterano que aproveita a viagem a Londres (encontro anual de seu regimento) para visitar uma prostituta. A situação grotesca se torna ainda pior quando o homem percebe que sua "amiga" favorita morreu (de velhice!) e que, nos últimos anos, eles não faziam mais sexo – o que ele gostava em Babs era a paciência, as conversas, o ligeiro ar familiar, elementos sociais que renovavam a energia para poder voltar para a casa, no interior da Inglaterra. Estóico, aceita que O jantar do regimento consistiria, cada vez mais, em ver quem não estava mais lá, em vez de quem estava.

A História de Mats Israelson estabelece tom diferenciado, melancólico, para a tragédia amorosa. Anders Bodén, casado com Gertrud, se apaixona por Barbro, esposa de Axel Lindwall. Os anos passam, os filhos de cada casal crescem, o vazio se torna mais doloroso, o que não é dito se torna explicito, embora ninguém ouse pronunciar o que a todos é de pleno conhecimento. A resignação assume o proscênio e engole qualquer tentativa de consertar o que não pode mais ser concertado.

Para algumas culturas orientais, o limão é um símbolo da morte. Alegrem−se! A morte está logo ali, dobrando a esquina!, festeja o narrador de O Silêncio, conto em que o universo da música clássica (forma artística próxima da extinção) transita airosamente. Ao mesmo tempo, o limão pode modificar o sabor dos alimentos, eliminar o insípido, fornecer substância ao inesperado. Com lucidez, humor e maldade, Julian Barnes (inglês apaixonado pela cultura francesa, irmão de um filósofo) se aproxima da mulher que carrega a foice e lhe pergunta: o que você quer? Sem esperar a resposta, pois essa somente será proferida no derradeiro momento, continua escrevendo histórias sobre pessoas que possuem dificuldade para entender que a vida é apenas a véspera do fim.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

TRÊS DÚZIAS DE FRASES SOBRE A MENTIRA

Não fumo, não bebo e não cheiro. Só minto um pouco. (Tim Maia)

A verdade é uma mentira que se esqueceu de acontecer. (Mário Quintana)

A verdade é a verdade atrás da máscara. (Lord Byron)

O perigo da meia verdade é você dizer exatamente a metade que é mentira. (Millôr Fernandes)

Mentiras sinceras me interessam. (Cazuza e Roberto Frejat)

Literatura, a volúpia de mentir por escrito. (Reinaldo Moraes)

Algumas pessoas nunca dizem uma mentira – se souberem que a verdade pode machucar mais. (Mark Twain)

No domínio dos sentimentos, não há necessidade de mentir para dizer mentiras. (Madame de Staël)

O poeta Terêncio faz uma observação exata quando lembra que a mentira faz amigos e a verdade adversários. (Machado de Assis)

Não me importo com a mentira. O que detesto é a imprecisão. (Samuel Butler)

Uma mentira pode correr meio mundo antes mesmo que a verdade consiga calçar as botas. (James Callaghan)

O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. (Fernando Pessoa)

No Parlamento se parla e se mente. (Léo Campion)

Nunca minta deliberadamente. Mas, às vezes, convém ser evasivo. (Margareth Tatcher)

A mentira nunca vive o suficiente para envelhecer. (Sócrates)

Pode−se enganar todo mundo, se a campanha estiver certa e a verba for suficiente. (Joseph E. Levine)

É melhor mentir do que deixar as mentiras à solta. (Do filme: Le pacte des loups, O pacto dos lobos).

Seus lábios não me agradam, pois são retos como os de quem nunca disse uma mentira. Quero que aprenda a mentir, de modo que seus lábios fiquem bonitos e sinuosos como os de uma máscara antiga. (Oscar Wilde)

As mulheres costumam mentir a respeito de qualquer coisa – apenas para não perder a prática. (Raymond Chandler)

Os homens são sempre sinceros. O que acontece, porém, é que às vezes trocam de sinceridade. (Barão de Itararé)

Está morto: podemos elogiá−lo à vontade. (Machado de Assis)

As pessoas nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma guerra ou antes de uma eleição. (Otto Von Bismarck)

Há defeitos que, bem empregados, brilham mais do que a própria virtude. (La Rochefoucauld)

Há três espécies de mentiras: mentiras, mentiras disfarçadas e estatísticas. (Mark Twain)

Por que as pessoas mentem? A verdade é tão mais engraçada! (Jerry Hall)

Algumas mulheres são muito ardilosas para inventar uma mentira nova, se sabem que uma mentira velha funcionara. (W. Somerset Maugham)

Não ser descoberto em uma mentira é o mesmo que dizer a verdade. (Aristides Onassis)

O castigo do mentiroso não é o de que deixam de acreditar nele, mas o de que ele passa a não acreditar em ninguém. (George Bernard Shaw)

O segredo para se continuar jovem é ser honesta, comer devagar e mentir sobre a idade. (Lucille Ball)

É sempre convincente dizer a verdade. A menos, é claro, que você seja um excepcional mentiroso. (Jerome K. Jerome)

Todos os homens são fraudes. A única diferença e que alguns admitem isso. Eu mesmo nego. (H. L. Mencken)

Ninguém é dono da verdade, mas a mentira tem acionistas à beça. (Millôr Fernandes)

Nada é mais caro ao caixeiro que sua palavra de honra. Mas na compra de um lote maior, faz−se um desconto. (Karl Kraus)

Inverdade é o mesmo que mentira, mas mentira de luvas de pelica. (Machado de Assis)

O mentiroso pretende simplesmente encantar, deleitar, dar prazer. É a base da sociedade civilizada. Sem ele, um jantar, mesmo nas mansões mais ilustres, é tão enfadonho quanto uma palestra na Sociedade Real. (Oscar Wilde)

Certas lágrimas muitas vezes até a nós enganam, depois de aos outros terem enganado. (La Rochefoucauld)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

AS LIMITAÇÕES DO TEXTO AUTOBIOGRÁFICO

Testamentos literários e políticos se caracterizam pela linguagem escrupulosamente seletiva. Em outras palavras, são textos decepcionantes. Aquelas partes sórdidas que costumam fazer a alegria de quem gosta de espiar pelo buraco da fechadura estão bloqueadas - muitas vezes para sempre. A verdade − essa ficção − desaparece diante do universo proposto por aquele que promete revelar tudo e... realiza−se como o rei da falsificação.

Somente o imaginário e a invenção sobrevivem como partes sólidas nos líquidos relatos que invadem a intimidade de uma vida.

O texto autobiográfico Onde Está Tudo Aquilo Agora? (Minha Vida na Política), de Fernando Gabeira, figura pop da história brasileira, gostaria de ser uma espécie de acerto de contas com o passado. Gostaria. Não é. Nunca será. Falta sentimento, sobra distanciamento. Também sobram muitas sombras interditas. A visível voracidade de contar o que não possui o mínimo interesse – para o leitor – permite que o inconsciente mergulhe em um mar de contentamento.

Escrever sobre a própria vida significa recapitular, de forma dissimulada, uma série de demandas (psíquicas, políticas, econômicas) – que, na medida em que são efetuadas, se modificam. Ou assumem novas identidades. O autobiógrafo, como diz Adam Phillips, quer alguma coisa, mas realiza o seu querer em um contexto muito diferente.

O passado (um dos segmentos da ficção) encontra−se irremediavelmente perdido. Tanto que Onde Está Tudo Aquilo Agora?, escrito na primeira pessoa, se refere a um cidadão que – provavelmente – não existe mais. O jornalista e escritor, militante do Partido Verde, ex−deputado federal, foi substituído por um espectro irreconhecível.

A primeira prova dessa mudança torna−se nítida em uma das informações paratextuais. Enquanto o livro mais significativo da bibliografia de Gabeira, O Que é Isso, Companheiro?, foi editado em 1979 pela Codecri (ligada ao grupo do jornal O Pasquim e, portanto, a um movimento de insurgência contra o poder constituído), o livro novo, Onde Está Tudo Aquilo Agora?, traz o selo da Companhia das Letras. É como se a água (líquido vital para a vida) tivesse sido substituída pelo petróleo (combustível fóssil poluidor da natureza). A razão desse proceder pode ser constatada nas inúmeras queixas econômicas que aparecem no texto (... aos 71 anos, sem bens materiais e com algumas pequenas dívidas herdadas da campanha). Ou seja, a necessidade de obter algum trocado/ pra dar garantia se impôs.

Obviamente, isso não é crime. Crime é publicar livro insípido, incolor e inodoro – ambicionando substituir o depoimento político por um balancete contábil. Crime é fazer esforço para borrar a imagem do homem que participou do seqüestro de Charles Elbrick (embaixador estadunidense) e, alguns anos mais tarde, foi à praia usando tanga de crochê (emprestada da prima, Leda Nagle).

Ninguém tem o direito de renegar a própria lenda e permanecer impune.

A prosa bem escrita (sem "ruídos", sem maculas), porém indiferente e fragmentada, se esparrama pelas 195 páginas do livro. Mas − se for eliminado o folclore − restará o quê? Considerando o que Gabeira escreveu, pouco, muito pouco. As memórias de infância são banais. A descrição do período de exílio beira o tédio. Salvo alguns episódios, todos expostos de maneira rápida e superficial, Gabeira sugere que nada de importante aconteceu. Os três mandatos consecutivos como Deputado Federal estão condensados em três capítulos rápidos, exatas 50 páginas. Fantástica aula de síntese.

Discretíssimo no relato da atividade paramentar, Gabeira faz alguns comentários fugazes sobre Luis Eduardo Magalhães e Severino Cavalcanti, figuras "diferenciadas" da história da Câmara Federal. Para outros políticos restam poucas citações episódicas, dessas que servem apenas para compor cenário.

Nesse depósito de trivialidades, se salvam as (pequenas e grandes) lutas por algumas (pequenas e grandes) causas. Mesmo assim, a descrição das minguadas vitórias circunstanciais carece de substância narrativa. O heroísmo e o esforço de resistência contra a corrupção e a iniqüidade política foram substituídos pela apatia e o marasmo. O leitor (cúmplice do pacto ficcional), ao ler tantas páginas anêmicas, não consegue escapar do entendimento que o autobiógrafo fixou, propositalmente, um limite para o que queria contar.

Enfrentando visível conflito psíquico para controlar anseios e desejos, Gabeira quase permite a releitura da expressão que utilizou no discurso em que se desligou do Partido dos Trabalhadores: Sonhei o sonho errado.

Do ponto de vista emocional, em lugar de escrever Onde Está Tudo Aquilo Agora?, provavelmente seria mais produtivo para Gabeira marcar consulta no psicanalista. O efeito liberador do que está represado seria maior e melhor. Para ele. Para o leitor.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

DOIS LIVROS DE CRÔNICAS

Dizem que a crônica se transformou em uma espécie de gênero literário tipicamente brasileiro. Dizem. Há controvérsias. Independente do que (não) seja verossímil na tese, o texto ligeiro − sem compromisso com grandes análises sociológicas ou psicológicas − existe em qualquer lugar do mundo.

Gênero literário que procura descrever a vida cotidiana, a crônica destaca algum detalhe ou aspecto inusitado. Em alguns momentos preenche o espaço adequado para discutir o nada. Ou o tudo. Que diferenças há poucas entre um e outro.

A linguagem coloquial, o uso da primeira pessoa e a falta de comprometimento com certos tabus sociais ou gramaticais normalmente resulta em textos bem−humorados e/ou poéticos. E nesse palco difuso, propício para o exercício da multiplicidade temática, desfilaram escritores tão díspares como Rubem Braga, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Maria, Carlinhos de Oliveira, Carlos Heitor Cony, Mario Prata, Luis Fernando Veríssimo e milhares de outros talentos.

Muitas vezes − nesses momentos em que as dúvidas adquirem uma grandiosidade que não lhes cabe − me perguntei se não há algum componente ideológico na paixão que alimento pela prima pobre de gêneros literários mais aristocratas como o romance e a poesia. Como nunca foi possível responder adequadamente a essa dúvida, continuo lendo o máximo possível de crônicas. Isso significa que sigo alegrando a vida com esses textos.

Recentemente, caíram−me nas mãos dois livros de crônicas: O Anjo Bêbado, de Paulo Mendes Campos, e Bala na Agulha, de Zeca Baleiro.

Há bastante diversão na expressão caíram−me nas mãos − que parece somar os indivíduos e os acontecimentos em ato único, o livre arbítrio transformado em poeira. Cairam−me nas mãos, neste caso, é um exagero. Melhor seria dizer que os tomei emprestado. E tomar, que é um verbo afirmativo, carrega uma violência desproporcional a qualquer atividade intelectual (circunstância em que o debate e as idéias deveriam superar a força física). Mas foi assim mesmo, no abuso, que consegui os livros. Ao visitar um amigo, usando da cara−de−pau que a natureza me ajudou a aperfeiçoar, solicitei empréstimos. Na biblioteca do anfitrião, diante de vários volumes que não conhecia, não consegui manter o controle. Ligeiramente constrangido, sem saber exatamente o que fazer, ele concordou com o meu ato de subtração. Levei os de crônica.

São livros muito diferentes. Uma imensidão de detalhes (tempo histórico, estilo, linguagem, assuntos) separa o lirismo de Paulo Mendes Campos da sinceridade quase agressiva de Zeca Baleiro. Enquanto o mineiro vai traçando meticulosamente a poesia humana, o maranhense estraçalha com certos acordes dissonantes que o capitalismo tenta nos empurrar como se fosse música.

Li os dois de uma sentada – que é outra expressão hilária. Foi em um desses finais de semana em que, influenciado pelo budismo que não pratico, decidi me afastar do mundo concreto. Embora as crônicas não sejam um dos caminhos adequados para atingir o satori, lê−las possibilita tranqüilidade e um pouco de sanidade física e mental.

O Anjo Bêbado foi publicado em 1969, pela Editora Sabiá. Não sei se teve alguma reedição. Naqueles tempos, quando as distâncias ampliavam as distâncias existentes entre as raras livrarias que resistiam heroicamente em cada canto do Brasil, vender mais de dois mil exemplares de um livro era caso de contratar banda de música e estourar champanhe. Isso, a grosso modo, significa que algumas crônicas desse livro somente adquiriram sobrevida porque foram republicadas em alguns textos escolares e em antologias.

Dividido em quatro partes, O Anjo Bêbado flerta descaradamente com a poesia. O lirismo, protagonista do espetáculo, está presente em cada linha. Também não falta humor. Ao contar histórias de Sergio Porto (mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta) ou ao relembrar o famoso gabarito fosfórico (a dose de uísque deveria ter a altura de uma caixa de fósforos em pé), Mendes Campos enche de alegria os olhos do leitor. Pelas suas histórias passeiam personagens míticos como Mário Quintana, William Shakespeare, João Guimarães Rosa, Marco Aurélio Moura de Matos, Nikos Kazantzakis, Marcel Proust, Franz Kafka e Walt Whitman. Não faltam menções a dezenas de bares, um gato que não deveria atrapalhar o corno e, como se fosse um oásis escondido dentro da miragem, Belo Horizonte. A última crônica do livro, Pebologia, Ciência da Beleza Feminina, fantástico tratado da difícil e pouco praticada arte de amar as mulheres, garante gargalhadas homéricas até ao mais disciplinado dos monges.

O livro do Zeca Baleiro, Bala na Agulha, está em outra dimensão. Com um subtítulo pouco prosaico, reflexões de boteco, pastéis de memória e outras frituras, foi publicado em 2010 e trata de assuntos mais corriqueiros, mais próximos da realidade contemporânea. O traço cruel das ruas e das rádios (que preferem tocar lixo a trocar a lixeira) vai invadindo as páginas e a alma do leitor. Talvez seja essa a explicação menos complicada para dezenas de crônicas repletas daquele humor de canto de lábio, amarelado, que mistura ironia, sarcasmo e indignação.

Escorado na memória afetiva, no poder de observação e na vontade de colocar as cartas na mesa, o tom da linguagem utilizada nesse livro oscila pouco. Monocórdio talvez seja um adjetivo adequado para um conjunto de textos que se caracterizam por apresentar desprezo pelos valores capitalistas, repulsa à violação dos direitos humanos, aversão a qualquer tipo de preconceito.

Diante dos textos de Zeca Baleiro, o leitor se transforma em espectador de uma partida difícil − entre o drible e o gol, mil zagueiros querem bloquear a jogada. Nas poucas vezes em que o craque consegue escapar da marcação, o goleiro se transforma em espectador. O placar mudo muda o escore − embora ainda esteja longe a igualdade, lutar faz parte da vida e nunca será possível negar que a esperança habita o olhar dos sonhadores.

Bala na Agulha está dividido em três partes. Crônicas, uma espécie de glossário pós−moderno e alguns, digamos, poemas. São as crônicas que carregam o livro, mas é a última parte que está repleta de criatividade e humor (releituras gráficas que namoram com a poesia concreta e com a poesia marginal).

Livros diferentes, prazeres diversos. Distintos leitores. Todos se rendem ao poder da linguagem e oferecem ouro, incenso e mirra à crônica. Pagamento insuficiente, óbvio. O encantamento não tem preço.