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segunda-feira, 26 de março de 2018

TUDO PODE SER ROUBADO


Estilo não está à venda nas gôndolas do supermercado. Estilo rejeita lugares-comuns, chavões, clichês. Estilo sempre procura por novas rotas, por caminhos pouco percorridos. Estilo ignora o sabor plastificado das aulas de escrita criativa. Estilo expressa um enredo sem tropeços, com linguagem límpida, acessível. Estilo significa criar personagens fortes, complexos, verossímeis. Estilo, enfim, traduz uma maneira inconfundível de ser/estar no mundo.

A literatura produzida por Giovana Madalosso pode (e deve) ser alvo de várias discussões. A única acusação fora de contexto é a ausência de estilo. Tendo a condição feminina como articuladora da História, das histórias, ela consegue misturar drama e comédia na dose exata – nem para deixar a euforia dominar, nem para deprimir. O desejo, a culpa, o medo, a frustração, os homens – aquilo que parece vertigem se transforma em literatura.

O romance Tudo Pode Ser Roubado tem como espinha dorsal o roubo de um livro. Uma primeira edição de O Guarani, de José de Alencar. Em um leilão, um professor universitário, desses que não possuem um tostão furado, teve um momento de sorte e conseguiu comprar o livro. Um milionário, desses que não sabem o que fazer com o dinheiro que acumulam no banco, quer ser o proprietário dessa raridade bibliográfica. Tentou negociar com Cícero, o professor. Não foi feliz. O desejo se multiplicou.

Entram em cena, três personagens muito interessantes. Em primeiro plano, a narradora/protagonista, que nasceu em Lages (aparentemente uma cidade interiorana e pouco desenvolvida). Embora seu nome não se apresente para os leitores, um dos personagens coadjuvantes a chama de “Rabudinha”. Sem grandes vaidades ou ambições, Nunca fui de querer muita coisa, disposta a satisfazer suas necessidades primárias (alimentação, moradia, sexo) com o mínimo, complementa a renda mensal com pequenos furtos. No básico, mantém a serenidade de quem conhece os mistérios da existência: Trabalho de garçonete desde os dezenove anos, quando decidi que não queria me esfolar pagando uma faculdade para acabar ganhando mais ou menos a mesma coisa. Ao contrário da maioria dos garçons, da maioria dos clientes, da maioria das pessoas, eu não sou consumida por nenhum desejo. Não quero ser atriz, nem cantora, nem modelo, nem designer, nem protética, nem cuspidora de fogo, nem milionária, nem porcaria nenhuma. Estou bem assim.

Logo atrás da Rabudinha surgem Biel e Tiana, a compor a figuração, a produzirem acontecimentos capazes de “roubar a cena”. Biel não passa de um golpista de terceira classe, desses que vivem de expedientes pouco recomendáveis como explorar mulheres carentes ou servir de capacho para quem possa financiar cama, comida e roupa lavada. Além do cigarro e do uísque, claro. É ele quem faz a intermediação para que o livro possa ser roubado. Na definição da narradora (...) ele não era um coroa misterioso, nem um elemento avesso ao sistema. Ele era apenas um sujeito imaturo, com tudo de bom e de ruim que isso acarreta.

Tiana foi feita em outra forma. Literalmente. A dona do brechó, onde a narradora/protagonista vende as roupas, calçados e acessórios que rouba, é uma transgênero. As duas, Tiana e Rabudinha, são, digamos, melhores amigas. Isso significa que também se desentendem, que pedem desculpas, que cultivam os altos e baixos da amizade: Cheguei com o blazer como um namorado chega com flores depois de uma briga. O bordado colorido na mão, os olhos baixos, o rabo entre as pernas.

Cenário montado, cabe fazer as engrenagens se movimentarem. Querendo reunir negócio com prazer, Rabudinha ambiciona deixar Cícero sem fôlego e, simultaneamente, ter alguma (ou muita) diversão sexual.  Acredita que, depois de levar o sujeito para a cama, encontrar o livro será fácil. O problema é que ele se mostra imune aos inúmeros truques de sedução. Essa é uma das partes mais divertidas do romance, desconstrução do mito machista, exposição sem piedade das fraquezas masculinas. Homem, mesmo quando se mostra diferente, é tudo igual. 


Com dicção peculiar, Tudo Pode Ser Roubado também revela diversas facetas da cidade de São Paulo que não cabem em cartão postal. Hotéis vagabundos, festas milionárias, amores frustrados, autoengano, cocaína, mendigos, prostituição, noites que nunca acabam, dias que sequer existirão, taxistas que sonham em ser saxofonistas, a diversidade se multiplicando em cada espaço de uma cidade que devora os seus habitantes. São Paulo se desdobra em muitas São Paulo, um abismo em cada esquina, um parque de diversões em cada rua.  (...) a verdade sobre uma cidade é esta: o que sobra de cada um depois que as luzes dos escritórios se apagam. E aqui, como todo mundo sabe, o que sobra é pouco, um emocional talhado pelos excessos, um terreno propício para as patologias se instalarem.


Concluída a leitura, o leitor fica extasiado com o conteúdo – alta qualidade, linguagem fluída, senso crítico, amostras frequentes do poder corrosivo do humor. E ligeiramente frustrado com as páginas finais, visto que algumas questões ficaram em aberto. Faltou o “toque de Midas”, reunir os penduricalhos em um “gran finale”.

P.S: Uma das melhores frases do romance expressa parte da dor de Tiana, que foi espancada por um namorado: Sou vaidosa demais para sair por aí vestindo um hematoma.



TRECHO ESCOLHIDO

 

 

Será?, falei, e dei mais gole no café. Às vezes acho que esse livro tem alguma mandinga. Que esse livro não pode ser roubado.

 

Deixe de ser boba, Rabudinha. Tudo pode ser roubado.

 

Não é bem assim.

 

Olhe em volta. Essa garrafa, essa cadeira, esse freezer. Até aquela igreja pode ser roubada, ele diz, e aponta para uma igreja um pouco mais à frente, do outro lado da rua. E não falo roubada só no sentido de ser saqueada, mas roubada mesmo, como já aconteceu com milhares de igrejas que foram transformadas em templos de outras religiões.

 

Daí pra dizer que tudo pode ser roubado tem uma longa distância.

 

Te dou outros exemplos. Um país pode ser roubado. Eu não entendo muito de história, mas só a Rússia anexou quantos países?

 

Belarus virou Bielorrússia, falo, lembrando da origem de um vizinho de Lages.

 

Você pode ir presa, tua liberdade pode ser roubada.

 

Vire essa boca pra lá.

 

Tua sanidade pode ser roubada.

 

A minha não.

 

A de qualquer um. Vá ser molestada, torturada pra ver. E me olhando de um jeito dramático e quase ridículo: tua vida pode ser roubada.

 

Um pensamento não pode ser roubado.

 

Claro que pode. Eu posso te ir induzindo até descobrir o que você esconde aí dentro. Ou te hipnotizar.

 

Não seja ridículo.  


segunda-feira, 19 de março de 2018

MANUAL DE DEMISSÃO


Algumas tragédias – descontado o oximoro – são muito divertidas. Evidentemente, nesse tipo de circunstância, o exercício literário (transformar o limão em limonada) deve utilizar um tom menos dramático e, se possível, bem-humorado. O segredo está aí.

O romance Manual de Demissão, de Julia Wähmann, cumpre com esse objetivo. Ao se concentrar em um episódio cada vez mais comum nas relações contemporâneas de trabalho, o desemprego, J. (a narradora e protagonista) realiza – de forma minuciosa – um exame do corpo de delito. No seu relato, a “crise” (viga-mestra de todas as desculpas administrativas) serve de escudo para o sucateamento das relações laborais. Depois da inevitável conversa com alguém do Departamento Pessoal (sempre uma pessoa calma e simpática), depois de cumprir com todos os rituais referentes ao desligamento da empresa, sobra a ausência de chão embaixo dos pés. Nada restabelece o equilíbrio. Em alguns casos, e não são poucos, a compensação surge como variável da Síndrome de Estocolmo: (...) saudades da vida regrada, com ordens, de um chefe a quem me reportar, cercada de colegas da minha categoria que compartilhavam não só as cadeiras giratórias baratas e os ácaros, mas também um piso salarial e um ticket alimentação que nos permitia comer verduras cheias de agrotóxicos e frangos cheios de hormônios nos restaurantes xexelentos do Centro da cidade.

Não precisando mais ir para a empresa pela manhã, restam alguns obstáculos quase intransponíveis. A visita ao sindicato, para acertar os termos da demissão, caracteriza uma experiência antropológica digna de pesquisa de campo com aborígenes da Polinésia. Estranhamento total com usos e costumes. Evidentemente, o pior ainda está para vir. O descompasso se torna uma brincadeira infantojuvenil no momento de ir ao banco receber o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou o seguro-desemprego. As dificuldades praticamente brotam do ar. As filas são imensas, o tempo de espera exige paciência, o atendimento é deficitário. O melhor remédio para suportar essas provações é... Um livro do Roberto Bolaño. Aquele com o maior número de páginas.

Invariavelmente, o atendimento acontece em horário próximo ao término do expediente. Além disso, o funcionário percebe que alguma informação documental está errada. Voltar no dia seguinte é a alternativa – quando a cena se repete.  A exceção a esse episódio kafkaniano ocorre quando a loucura ameaça dar tchauzinho para o distinto público: J. abriu a torneira lacrimal e ameaçou o inicio de um processo de desidratação O funcionário, assustado com esse recurso patético, a ajudou a solucionar o problema. Uma pequena vitória em uma guerra perdida.

Para muitos dos colegas de demissão, o aeroporto se transformou na porta de saída. Saída de emergência, cenário de aventuras, histórias de exílios. Portugal à vista, poderia ter dito o comandante do avião repleto de brasileiros desiludidos com a situação econômica, política e social do país: Era incrível, o mundo parecia uma narrativa do Saramago em que todos são acometidos por um mal súbito, sem aviso prévio, sem explicação, e, diante do absurdo da situação, partem para Lisboa, que já tinha mais gente conhecida que o meu próprio bairro.

Para aqueles que ficaram em terras brasilis, sobrou, em quantidade cavalar, angústia e depressão. A ajuda anestésica de vários comprimidos de Dormonid (adquiridos no mercado negro dos remédios) se impõe.  Nos momentos mais suaves, cervejas e vinhos também contribuem para a construção de uma atmosfera lúdica e menos assustadora.

Ah, para não dizer que não se falou de flores, o bundão do namorado de J. também atravessou o oceano, casou, teve filho e foi feliz. O cara construiu uma história de contos de fada (que J. acompanhou, on line, como parte do ritual de autoflagelação).  

Como termina essa bagunça? Não termina. Não há possibilidade de terminar. Cada demissão transforma o indivíduo em ruína. O estrago é irreparável. Não há possibilidades de reverter esse desastre. A vingança é um prato que se come frio, dizem. Mas, na história do mundo, seguimos sentados à mesa, em frente a travessas fumegantes, a esperar.

Manual de demissão foi construído como um imenso monólogo, a escassa comunicação entre os personagens está incorporada nos blocos narrativos. O texto, ágil e de fácil leitura, está dividido em 23 capítulos   cada uma das interrupções do discurso serve de pausa para que o leitor possa respirar e refletir sobre o que está sendo narrado. Todos os capítulo possuem título (ditados populares, clichês de autoajuda). Os personagens secundários (e que aparecem de maneira furtiva no texto) são designados por letras do alfabeto (A, B, C, D, E, F, G). A exceção é a narradora, J., que quebra a ordem alfabética.

Salve Manual de Demissão – texto ficcional imprescindível para quem quer se preparar para o futuro. Depois de algumas reformas no setor trabalhista, promovidas pelo governo vigente, o desemprego em massa deixou de ser uma hipótese remota e se transformou em ameaça diária. Acabou a diversão!


TRECHO ESCOLHIDO

 

O telefone tocou novamente, fui atender e não era o meu amor. Não mesmo, era a moça do Departamento Pessoal, e ali eu já sabia que, ao me levantar da cadeira azul giratória, barata e desconfortável, na qual sentei por nos, e dar os primeiros passos por um corredor azul meio mofado, o rapaz do Departamento de Informática se sentaria no meu lugar e bloquearia meu computador. Enquanto isso, eu estaria assinando os papéis de demissão, ouvindo, cada vez mais ao longe, a voz tensa da moça dizendo que não era nada pessoal, embora o nome do departamento deixasse certa dúvida, que a empresa, você sabe, é a crise, vinha passando por dificuldades, que meu trabalho era ótimo, certamente, mesmo que ela não soubesse exatamente o que eu fazia, e enquanto eu segurasse numa mão a caneta, na outra apertaria os pen drivers no bolso do casaco, só de nervoso, e para me certificar de que tudo estava ali, alguns arquivos pessoais e fotos que resgatei do computador que usei por anos. Àquela altura, cerca de duas da tarde, já uma leva de gente tinha ido embora carregando suas caixas de papelão antes do almoço e, portanto, as horas seguintes foram agonias de espera e de backups possibilitados pelos pen drives surrupiados das três ou quatro gavetas abarrotadas de papéis que eu jamais iria ver. Quando a moça terminasse a sua fala e me explicasse resumidamente o que eu deveria fazer – a primeira coisa, claro, era ir embora dali –, eu voltaria para a minha agora ex-mesa com a certeza de que não deixaria nada muito intimo no HD da empresa, ao mesmo tempo que desconfiaria do que poderia haver nos inúmeros papeis das tais três ou quatro gavetas, rascunhos de textos que não terminei, devaneios e rabiscos de reuniões em que a cafeína demorava a fazer efeito, setas, estrelas ou quadrados desenhados obsessivamente durante telefonemas que se estenderam para além do habitual, anotações dispersas de tarefas a cumprir. Talvez um esboço de uma declaração de amor – ou de guerra – feita numa tarde tediosa em que até vídeos de pandas falharam.