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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

DOSTOIÉVSKI, O CARRASCO E OS HORRORES DO CÁRCERE

Li no Diário Catarinense e na Folha de São Paulo que a Vara Criminal de Joaçaba (meio−oeste de Santa Catarina), usando do que faculta a Lei de Execuções Penais, iniciou um projeto de leitura entre os apenados daquela Comarca.

Em princípio, uma iniciativa louvável. Se considerarmos que, de acordo com o Instituto Pró−Livro, a média de leitura dos brasileiros está em ridículos quatro livros por ano, qualquer projeto que incentive a leitura representa um passo na direção de uma melhor condição intelectual.

A adesão, por parte dos prisioneiros, é voluntária e promete, a cada livro lido, a remição de quatro dias no tempo de cárcere. Em contrapartida, o preso deve demonstrar que entendeu o texto que lhe foi entregue. Ou seja, trinta dias depois, para obter as vantagens da reinserção social, deverá apresentar uma resenha − que será corrigida por uma banca.

Um dos responsáveis pelo projeto, discípulo confesso de Olavo de Carvalho (que considera o maior pensador brasileiro vivo e em atividade, segundo o Diário Catarinense), defende que O projeto (...) visa a reeducação dos apenados pela leitura de obras que apresentam experiências humanas sobre a responsabilidade pessoal, a percepção da imortalidade da alma, a superação das situações difíceis pela busca de um sentido na vida, os valores morais e religiosos tradicionais e a redenção pelo arrependimento sincero e pela melhoria progressiva da personalidade, o que a educação pela leitura dos clássicos fomenta.


Eu (embora ninguém tenha me perguntado) considero Jose Arthur Giannotti, Antonio Candido de Mello e Souza, Marilena Chaui, Olgária Chain Féres Matos, Luiz Costa Lima, Sérgio Paulo Rouanet, Maria Rita Kehl, Roberto Schwarz, Michel Löwy e o Renato Janine Ribeiro (não nessa ordem) os maiores pensadores vivos e em atividade no Brasil. Devo estar na contramão.

Influenciado por esse arcabouço teórico, ao ler sobre o discurso humanitário que escora o projeto, tive algumas dúvidas sobre os resultados possíveis do empreendimento. Provavelmente nada que mereça alguma atenção.

O primeiro módulo do projeto de Joaçaba consiste em um exemplar de Crime e Castigo, romance de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, escrito em 1866. Acompanha um dicionário de bolso.

Por que escolher um texto tão pesado, tão moralista, como Crime e Castigo, para iniciar esse, digamos, mergulho nos clássicos mundiais?

A resposta talvez esteja no discurso que foi feito diante dos moradores temporários da enxovia (ainda segundo o Diário Catarinense): não vou subestimar a capacidades de vocês, não vou sugerir que leiam best−sellers, autoajuda, subliteratura ou outras inutilidades. Ao contrário! Todo ser humano, por mais difícil que seja sua situação ou por mais precária que tenha sido sua educação, tem condições de ler grandes obras com proveito. E é isso que torna essas obras eternas: o quanto elas falam da experiência concreta, da alma humana.

Impressionante defesa de um conjunto de ideias que, provavelmente, fariam sucesso na Idade Média. O princípio da autoridade (que delira com a possibilidade de distinguir entre o que é bom e o que é ruim, que sonha ter sido ungido pela obrigação ética de salvar do descaminho os menos favorecidos) costuma impor a bondade em situações onde a correlação de forças não é equivalente. Que insensato morador da Casa dos Mortos fará alguma objeção, diante de guardas armados?

Como a analise literária não se assemelha a um exercício matemático, dois mais dois são quatro, fiquei imaginando qual será a atitude dos responsáveis pelo projeto diante do desafio intelectual. Será que recomendarão um acréscimo no tempo de reclusão para quem responder que Rodion Romanovitch Raskolnikov, Rodka para a família (assim como aquele menino do filme Ken Park [Dir. Larry Clark, 2002], antes de ter matado os avós), gozou no momento em que assassinou Alíona Ivanova, a velha usurária? Será esse argumento uma comprovação de que O Idiota não é um personagem ficcional? Será que desconsiderarão a tese de que a segunda morte, Lisavieta, ocorreu por legítima defesa? E se o, digamos,  "hóspede do Estado" escrever na sua redação, resenha, comentário, que o juiz de instrução, Porfiri Pietrovitch, não passa de um falso moralista, obcecado com uma ficção que construiu mentalmente? O que acontecerá?

No inicio do filme Match Point (Dir. Woody Allen, 2005), Chris Wilton, o personagem interpretado por Jonathan Rhys Meyers, está lendo Crime e Castigo. Enquanto escuta ópera, prepara o golpe do baú. Como os desvios da razão são mais atraentes do que a realidade prática, Chris se envolve - paralelamente - em uma história passional inadequada. Ao descobrir que a amante está grávida, imagina que não lhe resta outra alternativa senão o assassinato. Cabe à sorte decidir, assim como uma bola que esbarra na rede do jogo de tênis, se sofrerá punição criminal ou a lenta tortura advinda da culpa.

Independente da capacidade intelectual dos encarcerados em Joaçaba, o que precisa ser dito é que poucos conseguirão entender o dilema que acomete Raskolnikov - e Chris Wilton (se for permitido aos residentes do calabouço ver o filme de Woody Allen). A verdade é que nem mesmo nos melhores cursos de pós−graduação do Brasil isso se concretiza. Para uns falta percepção para atingir determinados estágios intelectuais. Para outros, falta educação, saúde, condições de trabalho. O Brasil é um país injusto e continuará assim porque algumas pessoas mais instruídas, talvez com saudades do muro perverso que institui a Casa Grande & Senzala, não abrem mão de tutelar a vida alheia. Esse mesmo muro divide a vida social em mocinhos e bandidos, doutores e ignorantes.

Apesar do avanço das seitas evangélicas nos ergástulos brasileiros, poucas coisas são tão patéticas quanto a ingenuidade religiosa que resulta do acreditar que a culpa é o principal caminho para a expiação dos pecados.

Espero estar errado, mas o projeto Reeducação do Imaginário provavelmente não obterá índices significativos. Ao iniciar com um livro difícil, denso, que exige explicitamente a submissão social do participante, o projeto está acenando, simultaneamente, para o discurso excludente e preconceituoso. Aceitar a culpa de Raskolnikov implica em aceitar que a Justiça (seja o que isso for) sempre alcança os infratores da ordem. Nesse tipo de iniciativa não há lugar para qualquer discussão sobre o certo e o errado. Somente as respostas esperadas são as adequadas, somente a moralidade cristã do arrependimento e da culpa está correta.

Em alguns momentos acontecerá um curto-circuito, algo não planejado. Algumas respostas nos questionários pré-estabelecidos pelas certezas destoarão. Então será a hora de surgirem, de onde estão escondidos agora, aqueles que - como se fossem profetas do apocalipse - dirão que os bandidos tiveram uma chance e não aproveitaram.

Os carrascos, independente do tempo e da situação, sempre pregam a superioridade moral.

Se os autores do projeto de leitura tivessem lido O Prazer do Texto (Roland Barthes) ou Uma História da Leitura (Alberto Manguel), provavelmente deixariam de lado o discurso da elevação intelectual (não vou sugerir que leiam best−sellers, autoajuda, subliteratura ou outras inutilidades. Ao contrário!) e se preocupariam com a alfabetização literária, com a fruição gozosa do texto, com a alegria que emana das palavras escritas nas páginas dos livros.

Ler deve ser sinônimo de prazer, jamais de condenação ao degredo físico e cultural.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

BEL AMI, O FILME, E ALGUMAS QUESTÕES MENORES DA POLÍTICA

Enquanto a vida segue em compasso de espera, sem saber o que fazer no período intermediário entre eleições e a posse (e  a pose) do seigneur du chateau, assistir versões cinematográficas de alguns clássicos literários quase que equivale a um mestrado em ciência política.

Nestes tempos a−pós−o−moderno, onde ler se transformou em uma atividade exercida por pobres sonhadores (como diz um dos personagens de 360, o último ato entreguista do cineasta e ex−comunista Fernando Meirelles), ninguém quer perder mais do que uma hora e meia, duas horas, com qualquer atividade que lembre, minimamente, a cultura. Além disso, a estrutura narrativa óbvia do cinema (com inicio, meio e fim − nessa ordem, salvo raríssimas exceções) não exige do expectador um grau intelectual mínimo.

Dito de outra forma: as ruas estão repletas de indivíduos que não conseguem encontrar o óbvio, apesar de tropeçarem nele a todo instante.

Os espectadores que se julgam mais avançados (ou mais inteligentes) deveriam ver (ou rever) O Leopardo (Dir. Luchino Visconti, 1963), adaptação do romance de Giuseppe Tomazi di Lampedusa. A emblemática história de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, ainda causa espanto em quem possui sensibilidade para se espantar. Durante o Risorgimento italiano, debilitado pela idade, indeciso entre aderir ou combater as mudanças políticas que estão ocorrendo na península, o Príncipe (como compete a um bom governante) está preocupado em impedir que o seu país seja invadido por um dos exércitos em luta. A solução surge da boca de seu sobrinho, Tancredi, que adverte, Se nós não estivermos lá, eles fazem uma República. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. A monarquia de Vitor Emanuel II, da casa de Sabóia, ganha um novo aliado – não há nada mais gratificante (ou lucrativo) do que estar ao lado dos vencedores.

Grupos intermediários podem se contentar com um filme mais recente, O Americano Tranquilo (Dir. Philip Noyce, 2002), baseado na narrativa homônima de Graham Greene. A lição mais óbvia, A inocência é uma forma de loucura, aciona o sinal de perigo para determinadas situações, apesar das "boas intenções" que as revestem. Interesses escusos são difíceis de serem detectados, principalmente quando a solução mais sensata é olhar para o lado oposto. No jogo de cartas marcadas em que a má−fé têm preferência, aceitar o aparente implica em ser corrompido pela inércia. A ingenuidade se mostra mais nociva do que a canalhice.

Os aprendizes do arrivismo devem ver Bel Ami (Dir. Declan Donnellan e Nick Ormerod, 2012), adaptação do romance de Guy de Maupassant, e recentemente lançado em DVD. O enredo, atualíssimo, embora esteja centrado na década de 90 do século XIX, tem como protagonista Georges Duroy, um ex−soldado semianalfabeto que espera ganhar algum dinheiro em Paris. O "único" obstáculo para fornecer alguma densidade ao sonho está na completa incompetência para qualquer trabalho que não seja frequentar bordeis ou ficar bêbado. Em seu favor, o rosto bonito e a absoluta falta de caráter. De forma meteórica, a ascensão social ocorre quando Bel Ami (belo amigo), usando da sedução como arma de combate, mergulha em todas as camas que estão ao seu alcance. Enquanto distribui orgasmos às esposas frustradas pelo abandono marital e recheia a carteira com centenas de milhares de francos, a história política de França vai sendo relatada (de maneira oblíqua, de passagem). Em uma narrativa edulcorada pela essência do romantismo, mas de estrutura realista, a carne apodrece a todo instante. A mediocridade assume o poder.

No horror capitalista em que vivemos (também chamado eufemisticamente de neoliberalismo econômico), estudar Política (com "P" maiúsculo) não constitui uma atitude sensata. No entanto, impede que fariseus e idealistas, bárbaros e iluministas, girondinos e jacobinos sejam confundidos.

Uma das tentativas de salvação intelectual está em não desprezar esse tipo de ensinamento.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

1922 – A SEMANA QUE NÃO TERMINOU

Alguns dos principais momentos, movimentos, autores, livros e projetos culturais que integram a diversão cultural que − durante muitos anos − importamos das’oropas constituem o cerne de toda a literatura produzida durante a colonização, o Império e a República (incluindo nesse balaio de gatos inúmeros tropeços e trapaças, espelhados na evolução ou involução de todos ismos que edulcoram o entreguismo social, político e econômico que viceja na Idolatrada Salva Salve).

Barroco, arcadismo, romantismo, realismo − naturalismo, parnasianismo, simbolismo – são muitos os pseudônimos literários dos grupelhos artísticos e poucas as saídas para os incontáveis curto−circuitos que costumam acenar alegremente para os trouxas, nas esquinas da vida. Centenas de biografias e autobiografias, muitas vezes ficcionais, de algumas das personagens mais significativas da história cultural brasileira contribuíram para adensar a farsa.

Em contrapartida, pilhas de ensaios acadêmicos − massudos e maçantes – procuram lançar luzes sobre o esclarecimento (ou será sobre o escarnecimento?). Em flagrante contradição, esse conjunto de ensaios ajuda a multiplicar a ininteligibilidade através do uso indiscriminado do jargão hermético que caracteriza os cursos de pós−graduação. Infelizmente, esse expediente afasta o leitor interessado no assunto, pois impede acesso a algum tipo de escada que lhe permita alcançar tamanha iluminação intelectual. As estantes das livrarias estão repletas desses maravilhosos encalhes.

Talvez esse desencontro encontre uma alternativa nos estudos independentes da vida parasitária, perdão, universitária. Sem estar atrelado à camisa de força do carreirismo profissional (potencializado pelo currículo Lattes), esse tipo de texto pode apresentar teses e questionamentos de forma menos sisuda e mais coloquial. Misturando causos, anedotas, fofocas e o inquestionável flerte com a crônica, tornam mais acessível ao público o fluxo de informações.

O livro 1922 – A Semana que Não Terminou, escrito pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves, constitui um exemplo bastante significativo dessa proposta. Sem se preocupar com os esquemas pedagógicos das escolas literárias, sem ter medo de estabelecer um significativo panorama dos fatos que culminaram em três dias de muita pandega e pouca seriedade, sem se incomodar em dividir seu livro em pequenos capítulos, o autor não se deixou levar pelos ventos publicitários e sintetizou o cenário da seguinte maneira: Na realidade, com uma ou outra exceção, mal havia escolhas estéticas radicais das quais abrir mão. Naquele momento, estava tudo a meio caminho, em nosso modernismo plantation. O velho tardava em se retirar e o novo ainda não reunia energias para se impor.

Em lugar de se deter no mecenato de Paulo Prado, no caso Anita Malfatti x Monteiro Lobato, na verve extravagante de Menotti del Picchia, no uso inescrupuloso da fama de Graça Aranha, nos conflitos musicais entre Guiomar Novaes e Heitor Villa−Lobos, no talento artístico de Victor Brecheret ou nos contrastes entre os meninões burgueses (Oswald de Andrade e Mário de Andrade, na definição certeira de Emiliano Di Cavalcanti), o autor de 1922 – A Semana que Não Terminou escolheu transitar por outro caminho.

Ao contrário de outros livros sobre o tema, que instilam mitos ideológicos em favor de interesses escusos, Marcos Augusto Gonçalves elaborou um amplo (e divertido) painel histórico do passadismo literário que antecedeu ao modernismo futurista. Sem escrúpulos de intelectual politicamente correto, deduziu – escorado em farta bibliografia − que muitos dos acontecimentos daqueles três dias de fevereiro foram conseqüências do Reuniram−se, resolveram fazer e foram fazendo (conforme declaração do artista gráfico Antonio Paim Vieira).

A Semana de Arte Moderna – imitando algumas idéias que, naquele momento, tinha deixado de ser modernas na Europa – em parte foi fruto do improviso. Em parte foi trapalhada. Depois da relativa simpatia que causou nos espectadores da primeira noite, com direito a aplausos de variada intensidade, a folia deixou no ar a possibilidade (para muitos de seus integrantes) absurda de ser considerada um grande sucesso. Não há duvidas que a Semana havia sido concebida pelos seus idealizadores para causar furor, marcar uma data, gerar atritos e instaurar−se como marco simbólico de uma transformação, escreve Marcos Augusto Gonçalves. Sem reações de desagrado, sem polêmica e sem vaias, o plano corria o risco de naufragar, acrescenta.

Como há solução para tudo, alguns amigos do movimento foram convocados (provavelmente por Oswald) para resolver o impasse. A vanguardinha do barulho cumpriu com a missão que lhe fora designada. Ou seja, vaiou com força e vontade. E os jornais, para alegria geral, noticiaram a ação dos malcriados.

Trocando em miúdos, a Semana de Arte Moderna foi uma festa. Tanto que resultou em prejuízo financeiro. Questão menor, deve ter pensado Paulo Prado, cafeicultor podre de rico que, ao lado de Olívia Guedes Penteado, encabeçou uma lista de subscrições para cobrir as despesas (o aluguel do Teatro Municipal custou 847 mil-réis).

Foi assim, em ritmo de patuscada juvenil, que o modernismo plantou as suas primeiras sementes em solo brazuca. Nasceu uma arvore frondosa, onde alguns espertinhos ainda hoje se lambuzam com doces frutos.

Um resumo da brincadeira está expresso em carta que Mário de Andrade (com ironia e potencial profético) escreveu para Menotti del Picchia, Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. (...) Somos todos pseudo−futuristas, uns casos teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar a celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da Semana de Arte Moderna e... (...) Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimo! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.

De qualquer forma, parte do objetivo da Semana de Arte Moderna era responder a um dos itens sugeridos, vários anos depois, no Manifesto Antropofágico: Tupi or not tupi, that is the question. Como essa é outra historia, e talvez o tema para outro livro, cabe recomendar, a quem interessar possa, os próximos capítulos da novela que está sendo escrita (e reescrita) pela historiografia literária brasileira.

O jornalista Mascos Augusto Gonçalves, autor de 1922 – A Semana que Não Terminou.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

AS RAÍZES QUE INVADIRAM A CASA

(...) tempo bom mesmo era o outro!, diz Teodoro Jurema, confirmando a idéia de que o passado cultiva o estranho hábito de assombrar o presente – reabrindo feridas, recordando horrores, refazendo histórias que deveriam ter sido soterradas pela areia que escorre pelo interstício que separa as duas metades da ampulheta.

O romance As Raízes que Invadiram a Casa, de Vernaide Wanderley, embora não obedeça ao ordenamento narrativo ortodoxo (desses que possuem começo, meio e fim − nessa ordem) está centralizado em uma espécie de acerto de contas. Assim como o vinho de qualidade − que repousa em tonel de carvalho durante alguns anos para poder apurar o sabor e a densidade −, a obsessão sexual costuma embriagar as relações amorosas.

Contar a história do amor unilateral de uma adolescente por um homem mais velho não constitui enredo inovador - talvez seja tema suficiente apenas para conto ou novela pouco extensa. Exceto se quem o maneja possui competência para extrair leite de pedra. Esse parece ser o caso de Vernaide Wanderley que, para fornecer dinamismo e coerência narrativa ao seu texto, se valeu de alguns artifícios criativos. Primeiro, repartiu a narrativa em diversos capítulos. Segundo, instituiu um narrador diferente (com voz marcadamente diferenciada) para cada um deles. Terceiro, misturou os tempos narrativos de forma com que o presente somente se completa como continuidade das histórias inconclusas que o passado traz à tona.

Na medida em que reapresenta alguns fatos − sob diferentes olhares e entendimentos −, a estrutura polifônica vai se desenvolvendo como se fosse elemento natural, como se a narrativa não pudesse ser contada de outra maneira. Cada capítulo, e seu respectivo narrador, acrescenta uma nova camada de entendimento aos elementos que vão sendo acrescidos lentamente ao desenvolvimento narrativo.

Não há segredos a serem revelados. Não há suspense para distrair a atenção do leitor. Desde as primeiras páginas, está claro qual será o andamento narrativo. Julia, na adolescência, se apaixona por Teodoro, um empregado de seu pai. Infelizmente, precisa deixar a vida familiar antes que algo se resolva. São vinte anos de separação física e afetiva. Ao retornar para a casa onde viveu na adolescência, ela descobre (ou deixa aflorar) que o sentimento ainda a atormenta. E que, junto com a paixão, há a necessidade física de satisfazer o desejo. O corpo reclama pelo outro corpo.

O jogo de sedução vai estendendo a teia – até que a presa fique imobilizada, enredada na armadilha. Teodoro, agora viúvo, por motivos médicos, precisa ir para a "cidade grande". Júlia aluga uma casa e o acolhe. Com a desculpa de ajudar o doente, acaba por ministrar o remédio adequado para apaziguar a própria "doença". Depois de conquistar o homem, oferecendo exatamente o que costuma agradar aos homens, Júlia acalma o vulcão que estava em erupção dentro de seu corpo. Além disso, amplia o desejo com um fetiche: muitas vezes, antes de ir para a cama, exige que Teodoro se vista de vaqueiro (gibão, rebenque, chapéu, botas e esporas).

A unilateralidade do erotismo muitas vezes contribui para destruir a volúpia sexual do casal. Aquele que precisa satisfazer a fantasia do Outro poucas vezes consegue se sentir à vontade com um desejo não é o seu. Como esse tipo de impasse costuma resultar em distanciamento ou em crises geradas por fatores colaterais, Teodoro, certo dia, vai embora. Com caligrafia tosca, deixa um bilhete, onde esclarece que não quer mais continuar a brincadeira. Preza mais a liberdade do que a gaiola de ouro.

Diferente dos finais infelizes clássicos, As Raízes que Invadiram a Casa assinala para a ruptura como conseqüência da experiência humana. Ao mesmo tempo, ciente de que a protagonista preencheu o interstício emocional que a atormentou durante parte da existência, abre caminho para que possa gozar com outros desejos. Essa voz serena ecoa na frase final, para construir e reconstruir os tantos lugares de nossa história...

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

TRÊS DÚZIAS DE REFLEXÕES SOBRE O SER HUMANO

Como dizia minha avó: todo mundo se queixa de falta de memória. Ninguém se queixa de falta de caráter. (Millôr Fernandes)

Amigo é aquele que sabe tudo a seu respeito e, mesmo assim, ainda gosta de você. (Kim Hubbard)

O mapa do Brasil é um pernil de cabeça para baixo que o governo entrega em fatias aos deputados e senadores.
(Delfim Netto)

A experiência é boa conselheira, mas cobra contas escorchantes. (Minna Antrim)

Há sujeitos que vendem sua alma e vivem muito bem com a consciência que lhes resta.
(Logan Pearsall Smith)

As duas palavras mais belas em qualquer língua são "Cheque anexo". (Dorothy Parker)

A morte não é o fim. Sempre resta a briga pelo espólio. (Ambrose Bierce)

Toda vez que preencho um cargo gero dez descontentes e um ingrato. (Luís XIV)

Uma mentira pode correr meio mundo antes mesmo que a verdade consiga calçar as botas. (James Callaghan)

Existem homens de bem; homens que se dão bem; e homens que são flagrados com os bens. (Laurence J. Peters)

Quando todos pensam igual é porque ninguém está pensando. (Walter Lippman)

Não existe fórmula para o sucesso. Mas para o fracasso, há uma infalível: tentar agradar todo mundo. (Herbert Bayard Swope)

A única coisa que o capital e o trabalho têm em comum é o desejo de cortar a garganta um do outro. (Brooks Atkinson)

Não há cretinice que já não tenha sido escrita por um filosofo. (Cícero)

Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados. (Barão de Itararé)

Não se pode esperar que um garoto seja depravado antes de entrar para um bom colégio. (Saki)

As pessoas não só aceitam a violência quando perpetrada pela autoridade legítima, como aceitam como legítima a violência cometida contra certas espécies de pessoas, não importa quem a cometa. (Edgar Z. Friedenberg)

A única paz sólida e duradoura entre um homem e uma mulher é, sem dúvida, uma separação. (Lord Chesterfield)

O tiro que mata o criminoso não mata o crime. Na forca só se pendura um cadáver. (Otto Lara Resende)

Toda espécie de dependência é ruim. Não importa que o narcótico seja o álcool, a morfina ou o idealismo. (Carl Gustav Jung)

Nenhum homem está isento de dizer asneiras. O problema é quando essas asneiras são ditas a sério. (Montaigne)

Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão. (Alexandre Dumas, père)

Deus, dá−me a castidade – mas não agora. (Santo Agostinho)

Lavar a honra com sangue suja a roupa toda. (Stanislaw Ponte Preta)

Há pessoas que retiram com prazer aquilo que acabaram de dizer, como quem retira uma espada do ventre do adversário. (Jules Renard)

Os ricos podem não ir para o céu, mas os pobres já estão cumprindo pena no inferno. (Alexandre Chase)

Uma nação é uma sociedade unida por uma ilusão a respeito de seus ancestrais e um ódio comum aos vizinhos. (William Ralph Inge)

Maus modos à mesa já destruíram mais casamentos do que a infidelidade. (Colette)

Meia−idade é quando você é jovem demais para se aposentar e velho demais para arranjar outro emprego. (Laurence J. Peter)

Culpa é o preço que pagamos de bom grado para fazer o que iríamos fazer de qualquer jeito. (Isabelle Holland)

Os pais são os ossos com que os filhos afiam os dentes. (Peter Ustinov)

As tragédias alheias são sempre de uma desesperadora banalidade. (Oscar Wilde)

Pedir desculpas é assentar terreno para futuras ofensas. (Ambrose Bierce)

Nunca confio em produto local. Sempre que viajo levo meu uísque e minha mulher. (Fernando Sabino)

Quando um homem se interessa pelo corpo de uma mulher, ela o acusa de só se interessar pelo corpo dela. Mas, quando ele não se interessa pelo corpo dela, ela o acusa de só se interessar pelo corpo de outras mulheres. (P. J. O’Rourke)

A história é um pesadelo do qual estamos tentando acordar. (James Joyce)


(Reproduções de pinturas de Joseph Fernand Henri Léger, 1881-1955)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

DESCONCERTANTE

A audição pública anual da Orquestra Sinfônica de Lages, que ocorreu na noite de sábado, dia 10 de novembro, confirmou a velha receita para o sucesso: convidar meia dúzia de parentes (principalmente aqueles que não entendem de música), multiplicar esse número por algumas centenas, lotar o teatro e inflar o ego com aplausos protocolares (algumas vezes, como compete à lageanidade, fora de hora).

A Orquestra Sinfônica de Lages continua descompassada. A programação do concerto de 2012 reflete um amontoado de músicas aleatórias, embora este ano – se considerarmos o evento anterior – mostre uma significativa evolução. O lixo popularesco diminuiu. Não o suficiente para banir totalmente as músicas de filmes e os temas fáceis.

Na ausência de orquestração para o tema da novela das nove, vários arranjos majestosos, típicos de quem ambiciona encobrir deficiências instrumentais, tentaram torturar o público. Em alguns momentos, (Sanctus, de Gounod, por exemplo), as pobres criancinhas que foram arrastadas para aquela tortura por pais insensíveis não agüentaram a pressão e abriram o berreiro. O choro dos infantes, acompanhado do som produzido por alguns celulares, se mostrou mais afinado do que o barulho produzido no palco.

A noite iniciou com um grupo chamado Catarinense Cello Ensemble. Tocaram seis peças – que, somadas, não ultrapassaram quinze minutos. Esse minimalismo temporal, difícil de ser entendido, incluiu picotar uma sinfonia de Mahler, quase destruir uma das composições de Astor Piazzola e provocar bocejos com o risível e tolo James Bond Theme.

Superado esse suplício, somente os ingênuos acreditaram que alguma coisa mudaria com a presença de toda a Orquestra em cena. O arranjo de Conquest of Paradise, talvez ligeiramente diferente do apresentado no ano passado, serviu para acordar quem estava ficando entediado. De qualquer forma, continuou igualmente ruim, exceto para tentar fingir que a reunião de todos os instrumentistas em cena resulta em algo que lembra – mesmo que vagamente − música.

Depois de várias peças sacras, todas muito chatas − mas que não podem ser evitadas, porque a Orquestra está ligada a um grupo religioso −, muitos expectadores pensaram em se levantar e ir embora. Quem não rompeu a inércia se arrependeu no ato. Não foi fácil suportar o arranjo arrastado da valsa Danúbio Azul, de Johann Sebastian Strauss. Um pouco mais (muito mais!) de vivacidade não faria mal.

Compreensivelmente, a peça seguinte não se caracteriza por brilhantismo, grau trezentos de dificuldade, como Jesus, Alegria dos Homens (Johann Sebastian Bach). O regente optou por uma dessas tolices regionalistas, popularizadas em anúncios de sorvete ou em cantorias familiares ao redor de algum garrafão de vinho. O diferencial desse momento italianíssimo esteve sob a responsabilidade do barítono Samuel Vargas, uma voz com boa extensão, que arrancou alguns aplausos depois de executar, literalmente, O Sole Mio. Como esse tipo de canção se adapta melhor à voz dos tenores, o desastre não demorou a acontecer. Na segunda vez que subiu ao palco, cantando Con Te Partirò, Samuel derrapou. Acontece. Principalmente em Orquestras provincianas.

Típico final com anticlímax, o desfecho da noite ocorreu com um trecho chocho de Puccini, que não conseguiu entusiasmar o público.

Acabou? − perguntaram algumas pessoas, depois dos últimos acordes. Felizmente − responderam outras, confirmando que o concerto continua sem conserto.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

DEUS DA CARNIFICINA, O FILME

Teatro é teatro, cinema é cinema. Apesar do caráter simplório desse esclarecimento, ele se faz necessário quando o objeto de análise transita entre as duas formas artísticas. Também convém não esquecer que, durante algum tempo, o cinema flertou com a hibridez do teatro filmado – que desapareceu logo depois que o realismo assumiu o proscênio artístico.

O filme Deus da Carnificina (Carnage. Dir. Roman Polanski, 2011), baseado na peça de teatro escrita por Yasmina Reza, caracteriza um interessante curto−circuito. O texto dramatúrgico, transposto para a tela grande, se parece com diversas coisas − exceto cinema. Essa é a sua principal característica – simultaneamente, o seu principal defeito. A verossimilhança que o espectador imagina ser possível em determinado tipo de cinema não se apresenta neste caso. Falta algo. Ou sobra. E isso o filme não consegue superar.

Diante das imagens, do caráter inegavelmente artificial das imagens, quando a quarta parede do teatro não se apresenta, quando as cenas ficam restritas ao espaço físico limitado do apartamento e do corredor do prédio, o festival de horrores protagonizado pelos dois casais em cena não se sustenta. Parte da culpa desse problema está no inequívoco descompasso entre o que está sendo projetado na tela e os diálogos cortantes, que estão entrelaçados com o nonsense. Enquanto o discurso dos atores se deslocada em uma direção, a geografia cênica está centralizada em outro espetáculo.

O motivo do encontro de Alan (Christoph Waltz) e Nancy Cowan (Kate Winslet) com Michael (John C. Reilly) e Penelope "Penny" Longstreet (Jodie Foster) parece banal: os filhos pré−adolescentes brigaram em um parque. Infelizmente, não foi uma briga qualquer. Na única cena externa do filme, Zachary Cowan, perde a paciência e bate com um pedaço de madeira no rosto de Ethan Longstreet.

Alan Cowan, talvez em função de sua profissão (advogado corporativo), flerta com o cínico profissional. Além disso, ele está ressentido por ter que abandonar os negócios para resolver o problema criado pelo filho. Sua esposa, Nancy, trabalha com investimentos financeiros e não parece ter instinto maternal – embora entenda que o filho ultrapassou a perigosa linha que divide a civilização da barbárie.

Michael, vendedor de ferramentas, não possui instrução acadêmica ou habilidade intelectual. Suas idéias políticas se aproximam perigosamente da direita reacionária. Sua esposa, Penelope, também chamada de Penny, adora o discurso politicamente correto e divide os aborrecimentos da vida doméstica com o amor que sente pelos livros de arte.

Quando o filme inicia, os casais parecem estar cientes de que − de alguma forma – devem reparar a situação que os levou até aquele labirinto emocional. Logo se dissipa essa sensação, dando lugar ao ressentimento e ao histerismo feminino. A discussão, cada vez mais agressiva, não cessa.

Como os dois homens não gostariam de estar presentes naquele local, no apartamento dos Longstreet, cada um deles procura algum esconderijo. Alan, através do celular, continua trabalhando. Irritante, o aparelho toca a todo instante. Nancy não perde a oportunidade e alfineta o marido, dizendo aos anfitriões:

− Eu convivo com isso... dia e noite. O celular guia nossas vidas. O que acontece em outro lugar é sempre mais importante.

Michael procura abrigo na garrafa de whisky (18 anos). Como a conversa não avança, todos avançam na bebida – e isso contribui para piorar o clima. A briga dos filhos se torna uma desculpa para resolver questões pessoais ou para esclarecer tensões internas entre os casais. Nessa bagunça, dois momentos críticos. Ambos protagonizados por Nancy. Primeiro, ela sente algum tipo de mal−estar (talvez causado por uma torta servida antes pelos anfitriões). Depois de beber uma dose reforçada de whisky, Nancy vomita sobre os livros de arte de Penelope. Embora esse ato não seja conscientemente intencional, expressa o descompasso dramático. O fato de ter estragado uma coleção de gravuras de Oscar Kokoschka, um pintor não muito agradável para a estética burguesa, parece indicar o quanto pesado está o ambiente que separa os dois casais.

Essa cena possibilita um intervalo para todos poderem respirar e reagrupar suas estratégias. Como o telefone não para de tocar, interrompendo a conversa a todo instante, Nancy, em um ataque de fúria, arranca o celular da mão do marido e joga o aparelho dentro de um vaso cheio de água e flores. Evidentemente, esse ato desesperado não corta a comunicação com o mundo exterior.

Em dado momento, os pares se mostram modificados. As mulheres se unem contra os homens, os homens combatem as mulheres. Talvez seja através dessa trapaça tática que as quatro pessoas encontram uma maneira de não resolver o conflito, de continuar o impasse.

Deus da Carnificina não convence como cinema. O tom pesado da edição impede que espectador veja a tragicomédia. O drama parece artificial. São defeitos insuperáveis. Talvez seja um bom convite para assistir a montagem teatral.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA (Os limites morais do mercado)

No século I, Tito, filho do imperador Vespasiano, tornou público que se sentia enojado com a cobrança de taxa para o uso dos banheiros públicos em Roma. Manifestou objeções contra esse dinheiro de origem pouco limpa. O imperador pediu que o filho cheirasse uma das moedas. Em seguida, decretou: Pecunia non olet (dinheiro não tem cheiro).

Vespasiano tentou indicar que a questão fundamental não está na posse do dinheiro e sim no uso que se dá a ele. Contemporaneamente, somente os ingênuos acreditam nessa isenção valorativa. A posse do dinheiro se revela ordinariamente como um dos elementos de controle do poder. E multiplica as formas de anestesia social. Simultaneamente, como se uma coisa fosse extensão da outra, induz a flexibilidade nos limites e nos escrúpulos morais. Em outras palavras, a ideologia da acumulação financeira, seja no século I, seja na atualidade, estabeleceu uma regra de ouro para o comportamento social: tudo está à venda. Tudo. Sem exceções.

Um dos livros escritos pelo professor de filosofia política na Universidade de Harvard Michael J. Sandel, O Que o Dinheiro Não Compra (Os Limites Morais do Mercado), assim como um cachorro que corre atrás do próprio rabo, faz várias considerações em torno do tema.

Livros sobre economia costumam ser chatos. Irremediavelmente chatos. Sandel, jogando para a torcida, utiliza vários truques para contornar esse obstáculo e tornar o seu texto mais palatável. O mais importante – e, consequentemente, o mais complicado – é a enumeração. Sem preocupação em fazer uma análise critica mais consistente, vai empilhando exemplos. São centenas de histórias, repletas de detalhes bizarros, que o leitor, boquiaberto com essa pseudo−erudição, acaba devorando como se estivesse lendo um romance. A ideia é mostrar − no grande supermercado das ilusões em que o capitalismo estabelece o preço de cada coisa − que posturas éticas e morais foram coisificadas, transformadas em produtos comerciais.

Na interpretação de Sandel, o deus mercado costuma se apresentar como uma criança faminta diante da vitrina da confeitaria. Guiado por olhos ávidos, não se contenta com migalhas. Quer se apoderar de tudo. Ao mesmo tempo, apoiada em determinados anestésicos (prazer físico e mental, sistemas de marketing e consumo, qualidade de vida), a índole predadora da lógica comercial elimina o julgamento moral e decreta que as transações comerciais são a prioridade do ordenamento social. E, em quase todas as ocasiões − como compete aos bárbaros −, a saciedade está intimamente relacionada com a quantidade de adversários destroçados no combate.

O comportamento social, sob a influência do dinheiro, costuma sofrer transmutação alquímica. A possibilidade de obter algum tipo de benefício ou lucro destrói um dos ideais da Democracia: a distribuição igualitária dos bens sociais. O poder corruptor do dinheiro estabelece outro ordenamento. Ofertas e preços contribuem para excluir o acesso de parte da população. Enquanto alguns segmentos precisam sobreviver aos mecanismos de extração da força de trabalho, outros são favorecidos pelas facilidades obtidas pelo uso constante e amoral do dinheiro.

Em alguns casos, a acumulação financeira contribui para alterar comportamentos. Sandel fornece um exemplo interessante. Uma creche não sabia o que fazer para impedir que alguns pais se atrasassem ao final da tarde. Ao mesmo tempo, moralmente culpados, esses pais não sabiam como se desculpar pelos problemas que estavam causando. Como os atrasos se tornaram frequentes, a direção da creche resolveu instituir uma multa pecuniária. Para surpresa geral, o numero de atrasos aumentou exponencialmente. Muitos pais inverteram o raciocínio econômico. A multa (punição moral) se transformou em taxa (pagamento por serviço extra). Assim, através do poder diluidor do dinheiro, ninguém precisou mais se incomodar com o constrangimento causado nos funcionários da creche - que, por dinheiro, não colocaram obstáculo em trabalhar além do horário de expediente. Na concepção econômica dos pais e professores da creche, o mundo está atrelado ao poder do dinheiro.

Em um constructo social em que os indivíduos podem contratar empresas para pedir desculpas ou pessoas para guardar lugar nas filas para obter senhas de atendimento médico, quem dispõe de maiores recursos financeiros determina as prioridades na luta pela sobrevivência. Essa constatação pode ser verificada diariamente em exemplos esportivos – que vendem todos os espaços publicitários possíveis − ou no direito internacional (Protocolo de Kyoto), que estabelece que algumas nações não precisam se preocupar com a poluição atmosférica desde que comprem reservas de carbono dos países subdesenvolvidos.

Numa época de crescente desigualdade, a marquetização de tudo significa que as pessoas abastardas e as de poucos recursos levam vidas cada vez mais separadas. Vivemos, trabalhamos e nos distraímos em lugares diferentes. Nossos filhos vão a escolas diferentes, sublinha Sandel, tentando sublimar a culpa estadunidense na segregação promovida pelo capitalismo predatório.

Embora não responda duas das questões cruciais que aborda, Queremos uma sociedade onde tudo esteja à venda? Ou será que existem certos bens morais e cívicos que não são honrados pelo mercado e que o dinheiro não compra?, Michael J. Sandel, em O Que o Dinheiro Não Compra (Os Limites Morais do Mercado), consegue deslocar os holofotes – que estavam centralizados na banalidade – e lançar algumas luzes sobre o problema. Esse esforço parece não ser o suficiente para afastar o mau cheiro que acompanha o dinheiro.

Como costumam dizer alguns humoristas estadunidenses, Se quer saber o que Deus pensa do dinheiro, veja para quem Ele dá. Qualquer análise (empírica, estatística, bibliográfica) mostra que em 95% dos casos as melhores pessoas não são aqueles que possuem dinheiro em excesso.