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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

PUT SOME FAROFA

A crônica ressuscitou no final de 2013 e reinou soberana em 2014. Quer dizer, viva ela sempre esteve, mas, na falta de expressão melhor, durante um período esteve respirando por aparelhos. Nada muito grave, apenas o desgaste natural do tempo. Provavelmente causado pelo excesso. Houve um momento em que todo mundo queria ser cronista.  Não havia lugar para todos. Poucos tinham habilidade e técnica para concorrer com os clássicos do gênero, gênios como Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Em consequência, os textos mezzo literatura, mezzo jornalismo (como rotulam os teóricos) foram relegados ao segundo plano, uma espécie de exílio semioficial. A crise foi tamanha que – na história da literatura – somente os poetas ganharam um anátema maior.

Recentemente os ventos mudaram um pouco, não muito, mas mudaram. Foram publicadas diversas coletâneas. Antônio Prata, Vanessa Bárbara e Fernanda Torres receberam as luzes dos holofotes e as manchetes dos suplementos de cultura. Também foram agraciados com mil elogios em blogs de literatura. O departamento de marketing da editora fez um trabalhinho razoável divulgando o “produto” na imprensa lida, escrita e televisada (como se dizia antigamente). Depois de postar mil e uma fotografias das capas dos livros nas principais redes sociais, os escritores participaram de sessões de autógrafos, entrevistas em talk show e palestras em feiras culturais. Literature is business, brother.

Óbvio, outros escritores menos votados pela crítica e pelo público também deram o “ar da graça” no mercado editorial. Mas, por diversas razões – inclusive a incapacidade de promover a própria “mercadoria” – continuarão no anonimato. Muitos são os chamados e poucos os escolhidos, diz a sabedoria popular, fingindo ignorar o sólido narcisismo que caracteriza a a-pós-a-moderna-idade líquida. Nada que cause estranheza. Ou decepção.

Nem tudo estava perdido quando Gregório Duvivier compareceu à festa com um livrinho simpático, Put Some Farofa, composto por 78 textos escritos em diferentes ocasiões e propósitos diversos. São peças curtas, uma página, página e meia, em tom coloquial, ora margeando a auto-ficção, ora mergulhando nas discussões sobre a bagunça que precisamos superar diariamente. Sem medo de enfrentar as patetices da classe média ou as bobagens da política sem classe, Gregório escreve de maneira límpida, coerente, eficiente. Sua tese principal está escorada em um enunciado bastante simples: no meio da diversão, reflexão.

Ignorando os ideólogos do Facebook – aqueles que “curtem” as páginas mais escabrosas como se estivessem contribuindo para melhorar o mundo – ou o esquadrão coxinha ou o renascimento da direita fascista, em diversos momentos Gregório parece estar conversando conosco, os leitores. Uma conversa entre amigos, cheia de assuntos malucos. Entre sacadas, insights e iluminações, ele escreve uma ou outra coisa que a gente gostaria de dizer, e que a gente não diz por que nos falta imaginação e o necessário talento.

A elegância e o entusiasmo aparecem em algumas crônicas, principalmente aquelas que abordam assuntos que oscilam entre a poesia e as relações familiares (Meus pais, Meu irmão, Conto de Natal, Túnel do tempo). O romantismo fora de moda marca presença (Mas antes, Grande-amor-da-vida, Breve história da internet) ao lado de uma espécie particular de humor (Pardon anything, Carvana e Mnouchkine, Lucky bastards). Nos momentos de seriedade sustenta uma posição política de combate, abordando assuntos pouco palatáveis para quem imagina ter alma pura (Deus e a Copa, Orgulho hétero, Moda reaça, História real, A coluna inútil daquele maconheiro). Em algumas narrativas aceita conviver com a crueldade do realismo (É menina, É menino), visto que não é possível ganhar todas as batalhas (É melhor ter wi-fi que ter razão, Michelangelo e a Capela Sistina). São muitos os obstáculos, muitas as tentações. Faz parte do show. Ou não.

Enfim, como comprova a foto ridícula que ilustra a capa, o livro está repleto de diversão. Para os detratores (caramba, que palavrinha antiga!) da crônica, aqueles mesmos que a consideram um gênero menor, descartável, parte da página de jornal destinada a embrulhar o peixe amanhã, somente resta lembrar o conselho de Gregório, Put some farofa. Its delicious.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A CAÇA AO TESOURO



O Comissário de Polícia Salvo Montalbano, criação do escritor italiano Andrea Camilleri, mora em Vigàta (fictícia localidade do interior da Sicília, Itália). Inquieto, sempre procurando por questões que poucas vezes se solidificam, cabe-lhe, por dever profissional, resolver os crimes que ocorrem na cidade e seus arredores. E para isso aconteça não economiza esforço e suor. Assaltos, sequestros, contrabando, vinganças, crimes passionais, serial killers – em cada uma dessas modalidades criminais, a soma de acontecimentos aparentemente sem sentido ultrapassa os limites do imaginado. No entanto, no meio desse emaranhado de elementos bizarros, alguns episódios fazem a diferença. Primeiro, as aventuras de Montalbano estão longe, muito longe, de serem apenas enigmas de entretenimento – são descrições pormenorizadas do mal que habita o humano. Segundo, são histórias que não fogem do grotesco, nem do ridículo. Terceiro, ler cada uma dessas peripécias significa que, ao lado de uma reflexão sobre a existência, haverá garantia de boas gargalhadas.

O romance A Caça ao Tesouro, protagonizado por Montalbano, inicia com um episódio insólito, o enlouquecimento de um casal de irmãos, Gregório e Caterina Palmisano, idosos e beatos. Depois de estenderem na fachada da casa diversas faixas ameaçadoras contra os pecadores, começam a alvejar os vizinhos com tiros de espingarda. Imaginam que são uma espécie de braço divino, destinado a punir todos aqueles que não seguem a lei de deus. O Comissário, com a ajuda de alguns auxiliares, intervém, consegue invadir a casa e prender os velhos. Simultaneamente, se transforma em uma espécie de super-herói, segundo o relato dos jornalistas das emissoras de televisão que cobriram o evento, ao vivo e em cores.

Depois que os ânimos se acalmaram, ao inspecionar a casa dos anciões, encontra uma boneca inflável bastante deteriorada. Imaginando ser de uso de Gregório, leva o acessório sexual para a delegacia. Passados alguns dias, coube-lhe atender o chamado histérico de uma moradora que, ao jogar o lixo em uma caçamba, encontrou um cadáver. Ao chegar ao local, Montalbano teve uma surpresa. O cadáver não era cadáver, aliás, nem humano era. Tratava-se de uma duplicata da boneca inflável. A comédia de erros proporcionada pela reunião desses dois objetos merece constar das melhores antologias humorísticas.

A parte trágica inicia no momento que Montalbano começa a receber alguns bilhetes. Em versos de qualidade duvidosa, o policial foi desafiado para participar de uma caça ao tesouro. Sem saber qual o prêmio que está em disputa, sem poder escolher se quer tomar parte ou não da brincadeira, uma espiral de acontecimentos inesperados o carrega para dentro de uma história sádica. Dessas que indicam que a maldade despreza todos os limites e se aproxima do inominável. O humor é substituído pelo horror.


Os romances policiais escritos por Andrea Camilleri, mais de sessenta, são lineares, sem grandes complicações estruturais. Manejando um narrador em terceira pessoa, onisciente, que evita grandes rebuscamentos estilísticos ou linguísticos, Camilleri consegue construir cenas de grande densidade dramática. Ao mesmo tempo, não economiza ingredientes cômicos – como que a dizer para os leitores que o patético está intimamente ligado com a perversidade.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

NOSSOS OSSOS



Heleno de Gusmão quer fornecer um enterro digno a Cícero – que foi morto em uma briga de rua. Os preparativos para o translado do corpo são complicados, envolvem grandes gastos de energia, custam uma quantidade razoável de dinheiro. A viagem é longa, a distância entre São Paulo e Pernambuco parece não ter fim.

Na estrada que liga a transitoriedade da vida e as perdas afetivas, Nossos Ossos, romance curto de Marcelino Freire, fornece visibilidade para alguns elementos que costumam ser omitidos pelo bem-comportado catálogo da literatura brasileira contemporânea. Segundo pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè (UnB), há um padrão homogêneo e inequívoco na ficção nacional. Os personagens de ficção são, em sua grande maioria, homens, brancos, jovens, heterossexuais, classe média em ascensão. Nessa classificação estratificada – onde o poder normatizador estabelece regras rígidas de conduta pública –, não há espaço para a diversidade. Ou melhor, a exclusão comportamental requer ambiente diferenciado, distante daquilo que a violência conformista e puritana rotulou como “normalidade”.

Felizmente, Nossos Ossos repudia – de forma veemente – esse esquema insosso. Com engenho e sensibilidade, contornando as dificuldades que acompanham o narrador em primeira pessoa, o texto estabelece um tipo especial de dramaturgia da dor, aquela que acompanha a pulsação do amor que não ousa dizer o nome. Quase todas as personagens do livro são homossexuais, pobres, marginais (em diversos sentidos). A gente se uniu na saudade, no sotaque semelhante, no interesse mútuo, eu querendo saber de sua história de prostituto, ele, curioso, como é que eu consegui ficar famoso, se foi fácil, por acaso teatro dá dinheiro?

A vida é teatro (ou sonho, se valer a proposição de Pedro Calderón de la Barca). O que uniu o escritor e o garoto de programa projeta o drama romântico, a tragédia grega, os integrantes do coro e as carpideiras anunciando as piores notícias, Caronte cobra pedágio (óbolo ou danake) de quem precisa transpor os rios Estige e Aqueronte, paredes divisórias entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (Hades).

(...) eu saí com o boy morto muitas vezes, tomamos prosecco, caju-amigo, licor báquico, eu trouxe o garoto, certas madrugadas, para o meu apartamento, ele ficou admirado com os livros que eu guardo, numa pilha os amores de Lorca, os cantos de Carmina Burana, dramas de todo tipo. Nesse percurso o luto e a dor ficam sussurrando para Heleno que ninguém vai substituir o que se perdeu, ninguém vai enxugar as lágrimas derramadas, ninguém vai lhe ensinar a viver sozinho.

Heleno narra o transporte do corpo de Cícero com economia, quase a conta-gotas. O cadáver é o elemento deflagrador das lembranças. O discurso narrativo, construído como ruptura e abismo, como articulação da angústia e do suplício, multiplica as histórias auxiliares, os detalhes, a intimidade do desencontro. Ao mesmo tempo, tudo faz para retardar o desfecho – instante em que as ruínas que envolvem a vida adquirem nova substância.

A crueldade da morte muitas vezes evoca a presença das Erínias. Não é o caso. Em Nossos Ossos, Dionysius e Thanatos alternam a aparição no proscênio. O cadáver do rapaz antecipa outros gozos, outras mortes – situações que vão sendo descritas em paralelo ao texto principal. Em alguns momentos, esse deslizar secundário se realiza imperceptivelmente. Em outros, assusta pela presença ruidosa. De qualquer maneira, o destino marcha irredutivelmente na direção do horror, nem mesmo deus consegue impedir que Átropos, a mais cruel das três Moiras, corte o fio da vida. Nas palavras de Lourenço, o motorista do carro que levou o caixão de Cícero até a vila de Paço do Boi, no interior de Pernambuco, entenda, por favor, Heleno, aqui se encerra a sua ladainha, eu já estou acostumado com isto, digo, em ouvir espíritos recém-saídos da morte, reconheço a sua missão qual era, a de entregar o rapaz à família, ele já está entregue, agora parta, encare, seja forte, não sofra mais, você merece, mais do que ninguém, agora, Heleno, descansar em paz.


P.S: Em alguns momentos, por diversas razões, todas complementares e, simultaneamente, antagônicas, torna-se inevitável fazer associações entre o romance de Marcelino Freire e dois outros textos ficcionais, o conto Assim Vivemos Agora, de Susan Sontag, e a segunda parte de A História dos Ossos, de Alberto Martins. O primeiro, de forma lírica, trata da amizade e das preocupações que antecedem à morte de um homem. A estrutura polifônica e fragmentada do discurso antecipa a aflição e a tristeza. O segundo é a descrição de um ritual funerário familiar, o que restou do corpo do pai, os ossos, sendo transportados de um cemitério até “a morada final”.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O INCOLOR TSUKURU TAZAKI E SEUS ANOS DE PEREGRINAÇÃO



De todas as características que podem ser atribuídas ao escritor japonês Haruki Murakami, surpreende a maneira como ele manifesta literariamente o seu exílio imaginário. Através dos personagens que habitam seus livros está nítido, e de forma incontornável, o desconforto que sente em viver no Japão. As referências à história de seus antepassados praticamente foram excluídas. O país que ele vislumbra se assemelha a um pedaço idealizado da Europa – onde nada de ruim acontece. A ausência de economia em relação às referências comportamentais e musicais (ópera, clássicos, jazz, pop) ratifica essa tese esquizofrênica, causada pelos mecanismos de sedução do mundo ocidental. Textos anteriores como Norwegian Wood ou a trilogia 1Q84 também trafegam em alta velocidade por essa estrada perigosa. O mesmo destino é adotado pelo narrador do romance O Incolor Tsukuru Tazaki e seus Anos de Peregrinação, que define esse desenraizamento de maneira bastante eficiente: (Ele) era um estrangeiro, e todas as pessoas à sua volta conversavam em uma língua que ele não compreendia.

Balada poética da vida de um homem solitário, O Incolor Tsukuru Tazaki e seus Anos de Peregrinação está centralizado no momento em que um grupo de cinco amigos – residentes em Nagoia – rompe a amizade construída antes dos estudos universitários em razão de um episódio nebuloso. Dezesseis anos depois, Tsukuru precisa olhar para trás e entender que o que ocorreu no passado deixou ferimentos que ainda não cicatrizaram: Ele sentia apenas tristeza. Tristeza de ser deixado sozinho no fundo de um buraco profundo e escuro.

No mundo há coisas que só podem ser transmitidas através da figura de uma mulher, sublinha o narrador como uma espécie de tradução do velho axioma francês, cherchez la femme – todos os descaminhos do coração se resolvem com a fórmula “procure a mulher”. No entanto, essa chave não abre a caixa onde estão guardados todos os segredos. Há algo além. A figura do engenheiro que gosta de se sentar nos bancos das estações de transporte público e ficar olhando o ir e vir dos trens, momento de alheamento sem substância, vaso vazio que parece não ter sentido ou função, exige um olhar mais profundo do que resumir as tragédias existenciais em uma história romântica: Ainda é melhor sentir dor, ele procurou pensar. O pior é não sentir nem ao menos dor.

Essa melancolia se repete ao longo e ao largo do romance de diversas formas, como que a refletir interminavelmente que (para ele) não há possibilidade de salvação. Tsukuru Tazaki não tem um lugar para ir. Era como uma tese na vida dele. Ele não tem um lugar para ir, nem um lugar para voltar. Ele nunca teve um, e mesmo agora continua não tendo. Ele só tem o lugar onde está agora.

Os nomes de Kei Akamatsu, Yoshio Ômi, Yuzuki Shirane, Eri Kurono estão associados às cores vermelho, azul, branca, preta, respectivamente. Por isso, depois de inúmeras tentativas de fornecer algum colorido ao seu percurso existencial, Tsukuru admite que Os quatro amigos que conheceu no primeiro ano do ensino médio provavelmente foram a coisa mais valiosa que ele conseguiu até então. Romper com esse relacionamento de amizade expressou o fim da própria vida. A ideia de suicídio assume o holofote central. Somente a inércia impede que isso se concretize – e isso, a inércia, é também uma forma de morte.

Apenas o escorrer inexorável do tempo e a maturidade podem dar um fim aos anos de peregrinação – evocação musical de uma peça de Franz Liszt, no álbum Années de Pèlerinage. O coração de Tsukuru Tazaki, o construtor, o que não possui cor, só se acalma quando as viagens interiores chegam à estação de trem e desembarcam aliviadas por estarem em casa. Finalmente se torna claro que o exílio é uma ilusão.


Trecho Escolhido

 

Azul encolheu novamente os ombros largos. – Pelo menos entre a gente você era o mais bonito. Dá para dizer que meu rosto tem peculiaridades, mas parece o de um gorila, e Vermelho sem dúvida era um típico crânio de óculos. O que quero dizer é que, dentro daquele grupo, cada um desempenhava até que bem o seu papel. É claro, enquanto ele durou.

 

– Você quer dizer que a gente desempenhava conscientemente um papel?

 

– Não, acho que não fazíamos tão conscientemente assim. Mas acho que todos tinham uma vaga ideia da posição que ocupavam no grupo – disse Azul. – Eu era o atleta animado, Vermelho, o intelectual de mente brilhante. Branca, a linda donzela, e Preta, a comediante perspicaz. E você era o menino bonito e educado.

 

Tsukuru pensou a respeito. – Desde aquela época, eu me via como uma pessoa vazia, sem cor, sem peculiaridade. Talvez esse tenha sido o meu papel naquele grupo. Ser vazio.

 

Azul fez uma cara de dúvida. – Não entendi direito. Qual é o papel de ser vazio?

 

– Um recipiente vazio. Um pano de fundo incolor. Sem nenhum defeito visível, nem uma qualidade notável. Talvez uma pessoa assim fosse necessária no grupo.

 

Azul balançou a cabeça. – Não, cara, você não era vazio. Ninguém pensava assim. Como posso dizer, você tranquilizava os nossos corações. 

 

– Tranquilizava os corações de vocês? – Tsukuru perguntou, surpreso. – Como música de elevador?

 

– Não, não é isso. Não consigo explicar direito, mas, só de você estar ali, nós conseguíamos ser nós mesmos, naturalmente. Você não era de falar muito, mas vivia com os pés no chão, e isso proporcionava uma espécie de estabilidade tranquila ao grupo. Como a âncora do navio. Depois que você saiu, percebemos isso claramente. Que precisávamos da sua presença. Não sei se foi por causa disso, mas depois que você partiu de repente o grupo se separou.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

AFTER



Fanfic, abreviação de fanficcion (ficção criada por fãs), é um modelo literário originário da Internet e que se caracteriza por intervenções paralelas aos enredos de livros, filmes, series televisivas, histórias em quadrinho, mangás e animes. Também pode envolver algum jogo de Role-Playing Game (RPG), bandas musicais ou qualquer sub-sub-sub-elemento da sub-cultura pop. Seguindo as regras de orientação de qualquer gênero parasita, essas narrativas se caracterizam pelo desrespeito intencional ao conceito de copyright (direitos autorais). A desculpa mais usada é que essas narrativas não visam lucro e incentivam o consumo do produto original. 

After, escrito por Anna Todd, e publicada inicialmente na plataforma de leitura Wattpad, se tornou uma das fanficcions mais bem sucedidas da história literária. Teve cerca de um bilhão de acessos. Dividido em três partes e adotando como base de sustentação a boyband One Direction, o texto conseguiu ultrapassar as limitações do espaço virtual e alcançou a forma física do livro. Obviamente, a indústria cinematográfica também quer uma fatia do bolo e efetuou um substancial adiantamento financeiro para ter os direitos de adaptação. A versão brasileira do primeiro volume possui mais de 520 páginas e, quiçá, por razões comerciais ou por complexo de vira-lata, conservou o título original.

O enredo, bastante trivial, beirando plágio escancarado de inúmeros textos contemporâneos, descreve a rede de sedução que envolve Theresa Young (conhecida pelos amigos com Tessa) e Hardin Scott (inspirado em Harry Edward Styles). De um lado está uma jovem universitária, virgem e ingênua; do outro, um rapaz problemático. Entre os dois, uma história que mistura um pouco de suspense, muitos equívocos e diversas descrições gráficas de sexo – elemento narrativo que se destaca com bastante ênfase, tanto que, em alguns momentos, se torna inevitável a comparação entre After e Cinquenta Tons de Cinza ou com algum dos livros escritos por Sylvia Day. Enfim, a porcaria que caracteriza o sub-gênero Young Adults.

Para fingir alguma profundidade, os protagonistas do romance estudam inglês (que é o equivalente nacional ao curso de Letras). E isso significa que uma superficial, bem superficial, camada de verniz intelectual se espalha em meia dúzia de referências sobre livros românticos como Orgulho e Preconceito, O Morro dos Ventos Uivantes e O Grande Gatsby. Simultaneamente, este tipo de abordagem sinaliza, sem a mínima restrição, para um bloqueio a qualquer tipo de literatura mais realista, menos impregnada da ideologia do amor como anestésico para todas as dores. Seria engraçado – se não fosse ridículo. Bem ridículo.

One Direction
Tessa, narradora e protagonista de After, vai relatando lentamente o caminho que percorreu em direção à iluminação sexual. Ao mesmo tempo, acompanha o bad boy Hardin, sem perceber o quanto ele está se esforçando para fingir que não está interessado em iniciar a garota no mundo da devassidão. Nesse jogo de gato e rato, não faltam quilos de dramas ridículos – causados pela imaturidade emocional. Quando o eixo dramático deslancha, o sexo se torna o principal ingrediente a ser servido para os olhos gulosos do leitor. O cardápio inclui cenas de carícias mútuas, sexo oral, masturbação e sexo vaginal – tudo muito apimentado pela linguagem ingênua da princesinha encantada pelo poder de persuasão do macho malvado.

Harry Edward Styles
É isso, o mito machista se desenvolve no discurso da mulher indefesa – que sonha com a transformação do monstro em príncipe encantado. Quer dizer, mais encantado, pois quer agregar as delícias reveladas na cama com bom caráter. Tarefa impossível, como fica indelevelmente marcada no último capítulo do novelão, instante em que um segredo terrível é revelado. Ao mesmo tempo, esse ponto fulcral da narrativa serve de gancho para incendiar a imaginação do leitor – que tudo fará para comprar o segundo volume do texto e descobrir como a coitadinha da Tessa vai superar o trauma.

Resumo da ópera: After não passa de um desses textos comerciais que objetivam chamar a atenção de leitores sem grande ambição intelectual e que alimentam os desvios sexuais com doses maciças de fantasias masturbatórias.