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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O VERÃO SEM HOMENS



Siri Hustved expulsou os homens do Paraíso. E resolveu puni-los (pelo pecado mortal de desejarem o que não lhes era devido) transformando-os em sombras. Ou melhor, decidiu adotar um castigo exemplar. Nas 192 páginas do romance O Verão Sem Homens, os machos são – simbolicamente – castrados. No mundo masculino não há dor maior do que ser impedido de se aproximar das mulheres.

Boris Izcovich, neurocientista e marido de Mia Fredricksen, a narradora, trai a esposa. Pete (marido de Lola), além de tratar mal a companheira, é um cara angustiado. Harry e Stefan estão mortos – e isso, em diversos momentos, é imperdoável. Jack (marido de Beatrice, a irmã) é descrito de forma condescendente como o mesmo bom e velho Jack. Um dos sobrinhos recebe um comentário superficial e dispensável: Jonah na faculdade. O outro, Ben, além de um pouco perdido na escola, aparece em cena como suspeito de ser homossexual. Gardener (ex-marido de Abigail) voltou da guerra atormentado por pesadelos, acessos de fúria, surtos de bebedeiras terríveis. O doutor P. somente é mencionado na primeira página. Simon é uma criança recém-nascida. Zack, o namorado imaginário de Alice, não é citado em mais do que duas ou três linhas do texto. A mãe da narradora desistiu de casar outra vez: Não quero mais ter que cuidar de um homem. Alguns cientistas são apontados como exemplos do pensamento machistas e de como manipulam o conhecimento intelectual. O único homem (homem?) que merece um mínimo de consideração é o Sr. Ninguém (que talvez nem exista, em alguns momentos se parece com uma projeção de Mia). 

Siri Hustved
Em compensação, o mundo feminino está repleto de personagens fascinantes: Mia (a narradora), a doutora S. (analista de Mia), Lola, as Cinco Cisnes (Georgiana, Regina, Peg, Abigail e a mãe de Mia), as sete adolescentes que participam da oficina literária (Peyton, Jessica, Ashley, Emma, Nikki, Joan e Alice). Até mesmo aquelas mulheres que interferem pouco na ação narrativa, como Beatrice (Bea), Daisy e a Pausa, contribuem positivamente.

Mia, cinquenta e cinco anos, poeta e filosofa, ao contar uma parte de sua história – em primeira pessoa –, constantemente ignora o constructo ficcional em que está situada. Seguindo as características de uma narrativa híbrida, sem muitas regras definidas, em diversos momentos conversa diretamente com o narratário (aquele a quem a narrativa é direcionada; em muitos casos é uma "entidade" diferente do leitor). Também embaralha o texto com reflexões complexas, pensamentos emocionais (emocionados) e doses industriais de citações intelectuais. Mas, ao contrário de construir o aborrecimento, estabelece um fluxo narrativo repleto de poesia e bons sentimentos.


A história começa no momento em que Mia leva um monumental pé na bunda do marido. Trinta anos de casamento interrompidos porque ele quer dar um tempo no relacionamento. Em outras palavras, está tendo um caso com a Pausa (apelido escolhido por Mia para designar a comborça). O mundo real se perde nas brumas do desespero. O colapso nervoso é monumental. Depois de ser diagnosticada com um Transtorno Psicótico Transitório, ela é internada em um hospital durante algum tempo. Ao receber alta, resolve passar o verão perto de sua mãe – que mora em um condomínio para idosos, em Bonden, Minnesota.

Lá, no interior do país, aluga uma casa nos arredores da cidade e mergulha em uma jornada de descobertas sobre a vida, as prioridades sociais e a crueldade feminina. O contato com as amigas da mãe, chamadas de Cinco Cisnes, todas acima dos 80 anos, é rico em ensinamentos. As discussões propostas pelo clube de leitura se somam aos bordados com desenhos eróticos, feitos por Abigail. São leituras da perplexidade humana e que registram a grande complexidade existencial. Os detalhes inscrevem o mundo concreto e, ao mesmo tempo, escondem o que – aos olhos – não cabe alcançar.


Enquanto as mulheres idosas se integram em um círculo de fraternidade, as mais jovens se preocupam – da maneira mais predatória possível – em estabelecer os limites territoriais. A brincadeira com Alice, tramada por todas as outras meninas que participam do curso de poesia, ultrapassa os limites do bom senso. Embora não seja atribuição de Mia restabelecer o equilíbrio social, somente através da intervenção é possível assegurar um mínimo de justiça à situação. Resta dessa situação, o desvelamento da alma: Tosquiada a intimidade, e vistos de uma distância considerável, somos todos personagens cômicas, bufões farsesco e errantes através de nossas vidas, armando belas confusões no caminho, mas, quando se chega mais perto, o ridículo rapidamente se revela ora sórdido, ora trágico, ou meramente triste.

Simultaneamente, as nuances que nomeiam a linha de finitude da vida estão presente na narrativa. Em dado momento, como se fosse um haicai, mãe e filha constatam que: 

“É tão amarga.” 

“O quê, mamãe?” 

“A velhice.”


E enquanto a morte não se apresenta para levar a todos para a vala comum do esquecimento, cabe ao leitor acompanhar as divagações teóricas de Mia: (...) pensei por um momento no imaginário e no real, na satisfação do desejo, na fantasia, nas histórias que contamos a nosso próprio respeito. A ficção é um vasto território, a perder de vista, de fronteiras difusas, que não se sabe ao certo onde começa e onde termina. Mapeamos as ilusões por meio de acordos coletivos.

Na cena final de O Verão Sem Homens a narradora abre uma porta para o entendimento. As mulheres são – sempre – mais generosas do que os homens.


P.S.: A conexão entre a ficção e a brincadeira que muitos chamam de "o" real aparece em uma frase trivial, dessas que passam despercebidas na voracidade da leitura. A narradora deixa escapar, lá no meio do romance, Trata-se simplesmente da música do acaso, como formulou um conhecido romancista americano. Conhecido romancista americano? Música do acaso? Hum... Parte dessa diversão está em descobrir quais as afinidades eletivas que unem Siri Hustvedt e – como se fosse uma espécie de verão ensolarado – Paul Auster.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

FIM



A morte é uma piada – embora seja difícil comprovar o que a faz engraçada. No entrecruzamento entre o grotesco que caracteriza a existência e o sossego eterno, Átropos, a mais cruel das três Moiras, corta o fio da vida e transforma o humano em matéria em decomposição. Comida para os vermes.

Sobram (quando sobram) alguns ossos, um punhado de cinzas (se houver incineração) e quantidades industriais de lembranças. Esse último item constitui o combustível que impulsiona o romance Fim, escrito por Fernanda Torres, e que – descontados vários elementos básicos como tempo histórico, competência literária e talento individual – elabora um diálogo divertido com o memento mori celebrado em histórias assimétricas como Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis, 1881), A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água (Jorge Amado, 1961) e o conto La Petite Mort (Ruy Castro, incluído na coletânea Meu Querido Canalha, 2004). Em todos, há várias cenas em que as carpideiras vertem várias Cataratas do Iguaçu em forma de lágrimas, manifestam o incontido desespero e participam de concorridos enterros. O leitor, ao longe, salvo de participar ativamente dessa pantomima, se emociona e se diverte em doses proporcionais à própria sensibilidade e ao talento narrativo de quem emoldura o nome na capa do livro.

Fim relata as várias histórias que (des)uniram cinco amigos – nas circunstâncias em que o cheiro da morte atinge a sala de visitas (metáfora empregada por Tolstói, com outras palavras, em A Morte de Ivan Ilitch). São diversas situações divertidas. Além da revelação de alguns segredos familiares. Nada muito surpreendente, apenas a comprovação que as mulheres são vítimas da prepotência masculina e que todos os homens nascem e morrem canalhas.

Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro atravessaram a vida carregando esposas, amantes, filhos, genros e noras, netos, sobrinhos e agregados. Uma infinidade de personagens planos que, salvo as exceções, parecem vasos de plantas decorando o ambiente em que se movimentam os protagonistas. Surpreendentemente, isso não se revela uma dificuldade narrativa. Toda vez que o texto ameaça perder a força, o narrador onisciente inicia um novo capítulo e outro punhado de personagens é acrescentado ao andamento do relato. A nova situação (embora seja quase idêntica a anterior) permite retornar ao passado, tempo narrativo de onde é possível extrair algumas novidades e, imediatamente, sem o mínimo escrúpulo, dar seguimento à história.

Esse truque está atrelado a um outro: o deslocamento do narrador. Enquanto os personagens secundários são narrados pela distância característica da terceira pessoa, todos os protagonistas recebem o privilégio de descrever, em primeira pessoa, o momento derradeiro. Parece um golpe de gênio, mas..., as vozes narrativas são quase todas iguais. O tom pasteurizado dos personagens cariocas, oriundos de estrato pequeno-burguês, não apresenta aquele plus necessário para demarcar a diferença. O que salva o texto do naufrágio completo são as idiossincrasias, os aspectos externo à técnica narrativa, de cada um dos cinco protagonistas – embora essas particularidades não evitem, no início de cada capítulo, a sensação de déjà vu.

O que realmente estabelece a singularidade são as pequenas indeterminações, aqueles elementos que contribuem para a tessitura da substância narrativa. As dificuldades de Irene e Rita, ex-esposa e filha, depois da morte de Álvaro mostram-se, simultaneamente, hilárias e trágicas. As lésbicas que Silvio adotou sexualmente revelam a força telúrica que está se perdendo no mundo do politicamente correto. As carências afetivas de Ribeiro (apaixonado por Ruth, esposa de Ciro) são canalizadas no sobrinho e nas partidas de vôlei na praia. O ciúme de Ruth, que evoluiu para a loucura, repete a cena em que homens e mulheres se maltratam diariamente. Maria Clara (como se fosse o Anjo da Anunciação) contribui para a realização do último desejo de Ciro. Depois, fantasiada de viúva negra, comparece ao enterro. Por fim, há o padre Graça, um desgraçado, incapaz de perceber que a vida se opõe frontalmente à morte e que, como sempre, o demônio se esconde nos detalhes.

Fim é um romance mediano que aposta no humor macabro. Não é ruim. Apenas não é bom o suficiente para deixar de ser entretenimento e ser considerado como literatura de qualidade (seja lá o que isso for).


TRECHO ESCOLHIDO

 

Ganhei de meu pai, de Natal, a coleção completa do Sítio do Picapau Amarelo. Eu tinha doze anos. Ela sobreviveu e eu dei para a Rita, achando que estava apresentando o céu para ela, mas a Rita amarrou a tromba porque queria uma Barbie. Tentei ensinar matemática com o Visconde, história com Dona Benta, gramática com a Emília, mas ela criou aversão ao Sítio, reclamava que não tinha figura. A Rita cresceu ignorante e fútil. Na adolescência, torci muito para ela não engordar, porque, com o QI da minha filha, o melhor que podia acontecer era ela arranjar um bom casamento.

 

Arranjou um médio, com um radiologista de Uberaba. O pai tinha uma clínica de imagem e o filho entrou para o ramo. Eles se conheceram numas férias dela em Ouro Preto. Meu genro é uma besta quadrada, do tipo que afirma que todo mal provém do stress. Sou acometido de um sono hipnótico toda vez que converso com ele. Pode ser em pé, sentado, no carro, numa festa horrorosa, dessas de fim de ano. O Felipinho e o Marcelinho relincham alto para me acordar e cantam com voz de débil mental que o vovô está gagá. Mal sabem eles que só estou me protegendo da chatice do ignóbil do pai deles. Pai esse que lhes deu metade dos genes medíocres, sendo que a outra metade quem deu foi a mãe deles, que herdou de mim os piores genes, aquele que não gostam de Monteiro Lobato. Os galhos estão podres, Felipinho e Marcelinho. Os seus filhos vão ser gordinhos que nem vocês, vão apanhar na escola, vão ser filhinhos de mamãe, riam bem alto, vocês nem sabem o que vem por aí: acne, pau pequeno, calvície, pressão alta, colesterol, tosse, mau hálito, pelo no ouvido, falta de ar, incontinência urinária, derrame, eu vou assistir de camarote. Qualquer garoto de rua tem uma genética melhor do que a de vocês. Agora vão pro quarto porque eu quero voltar a cochilar ouvindo a ladainha do seu pai.

 

A Rita me visita no Rio duas vezes por ano, quer que eu mude para Uberaba, imagina. Como se fosse resistir a Uberaba, e ela a mim, e eu aos filhos dela. Melhor o asilo, muito melhor o asilo; em Maricá. Quando ela vem, procuro ser gentil, o idiota do marido sempre a tiracolo. Eu marco deles virem à noite, na hora da insônia, para ver se durmo no embalo da cantilena. Poderoso sonífero, o papo do meu genro.