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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A ILHA DO TESOURO




Os reencontros são situações que possibilitam (com algumas dificuldades) voltar o olhar para o passado cada vez mais distante e (se é que isso é possível) recuperar lembranças que estavam destinadas ao esquecimento. O primeiro contato com A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, aconteceu quando eu tinha uns oito ou nove anos. Faz tempo! Possivelmente reli o livro alguns anos mais tarde, na coleção terra-mar-e-ar, mas não tenho certeza.

Nos últimos anos procurei por uma edição com o texto integral. Estranhamente, não encontrei. A Ilha do Tesouro se tornou um livro raro. Nas livrarias virtuais há algumas edições adaptadas. Nos sebos físicos, nenhuma notícia. Provavelmente a modernidade não combina com esse tipo de literatura romântica. Quem é que quer saber das peripécias de um garoto que vai em busca de um tesouro quando pode se distrair com videogames ou “blockbusters” cinematográficos?
Robert Louis Stevenson (1850-1894)
      
Inesperadamente, a cerca de um mês, encontrei um exemplar. Edição portuguesa de 2011, capa dura, ilustrações de Louis Rhead e tradução de Fernanda Palmeirim. Li (ou melhor, reli) em dois dias. Foi bom. Muito bom. Inclusive naquilo que causa estranheza. A indiscutível prova de que estamos separados de Portugal pela língua aparece no texto através de palavras como lugre, pequeno-almoço, charneca, garrido, moitão, linguareiro, fixe, relvado ou de expressões como passar alguém pela quilha ou fazer aguada. Em todos esses casos (e em vários outros) recorri ao(s) dicionário(s). Conhecer uma meia dúzia de vocábulos nunca fez mal a ninguém.

Em relação ao texto, muitas surpresas. No meu imaginário, a história era outra. E muito diferente. Com mais peripécias, com mais heroísmo, com menos descrições. A imaginação introduz no enredo cenas que não estão lá. Long John Silver (e o seu papagaio, Capitão Flint) parecia ser mais aterrorizante, mais cruel. Não o é. Trata-se de um sujeito ambicioso, mas que também consegue calcular suas chances quando a balança do destino começa a pender para o outro lado. E a sua fuga nas últimas páginas revela – por vias travessas – o quanto do mal costuma ficar impune (principalmente nos casos em que há algum tipo de “arrependimento” dos pecados).

O texto está dividido em seis partes (trinta e quatro capítulos). O narrador geral da história, Jim Hawkins, relembra, a pedido de Trelawney e de Livesey, alguns dos episódios da grande aventura que eles viveram juntos. Do ponto de vista estrutural, existe uma ruptura nos capítulos XVI, XVII e XVIII, quando o médico Livesey assume o papel de narrador, relatando fatos que estão fora do alcance de Hawkins. No mais, trata-se de uma narrativa com começo, meio e fim – nessa ordem – e um narrador (quase) onisciente e (quase) onipresente.       

Os acontecimentos iniciam de forma despretensiosa. O pai de Jim Hawkins é proprietário de uma estalagem, Admiral Benbow, na costa sudoeste da Inglaterra, provavelmente perto de Bristol. Um dos hóspedes, Bill Bones, passa os dias olhando para o mar através de um velho telescópio de latão. Depois que o dia escurece, ele volta à estalagem e bebe todo o rum que aguenta. Entre um gole e outro, atormenta os hóspedes e os visitantes. O único que não se sente amedrontado por esse encrenqueiro é o médico – que o adverte sobre os malefícios do alcoolismo. Em determinado momento, aparecem na estalagem alguns “amigos” de Bill. Essas visitas somadas com a saúde debilitada do marinheiro resultam em um ataque apoplético.

O que se segue é parte divertida, com direito a todos os clichês da literatura de aventuras: mapa do tesouro, viagem a bordo do Hispaniola, a tripulação se transformando em piratas, perigos inimagináveis, tiroteios, doenças tropicais, uma confusão atrás da outra, tudo em um andamento vertiginoso – para não permitir que o ritmo se esfarele.             

Parte do prazer do texto está em perceber as mudanças comportamentais de Hawkins (hawk, falcão em inglês). O adolescente que participa da caça ao tesouro amadurece. Tornou-se outro. E é esse outro que aceita colocar no papel os acontecimentos que vivenciou. Então, quando descreve algumas de suas ações, o faz com senso crítico, condenando a impetuosidade, a falta de razão prática, o correr perigo desnecessariamente. Ao mesmo tempo, exalta a coragem e o senso de honra. Essa ambiguidade permite uma imagem humana para um personagem de papel. Em relação à fragilidade humana, há outra questão axial: a ausência de limites. Não se trata de um elemento psicológico relacionado com o fato dele ser órfão de pai e negar a autoridade. O problema é outro. A vontade de ser herói – apesar de não saber exatamente como vai conquistar esse galardão – o torna egoísta. As decisões mais importantes da narrativa são tomadas isoladamente, sem consulta prévia aos demais participantes da jornada, sem a mínima compreensão do que está afetando aos outros.  

Evidentemente, tudo termina bem (apesar dos vários mortos). O tesouro é encontrado, os bandidos são derrotados e as páginas finais estão encharcadas de um moralismo cínico – que perdoa o roubo perpetuado por Long John Silver e condena o desapego econômico de Ben Gunn. Deixando de lado esses senões, o que importa é que, como todo clássico, o livro escrito por Robert Louis Stevenson está repleto de tesouros – e é através da leitura que os encontramos.


TRECHO ESCOLHIDO


– Rapazes – declarou, – tivemos um dia esgotador, e está tudo cansado e mal disposto. Uma volta por terra não faz mal a ninguém, os escaleres ainda estão na água, podem pegar nos grandes e quem lhe apetecer pode passar a tarde em terra. Eu darei um tiro de chamada meia hora antes do pôr-do-sol. 

 

Acho que aqueles insensatos pensaram que davam logo com as canelas no tesouro mal desembarcassem, porque num instante lhes passaram os amuos, e soltaram um coro de vivas que ecoou ao longe nos montes e fez de novo levantar a passarada no ancoradouro.

 

O capitão era suficientemente esperto para ficar ali a atrapalhá-los. Num momento, desapareceu de vista, deixando o Silver tratar do grupo, e acho que ainda bem que o fez. SE tivesse ficado no tombadilho, não poderia fingir que não entendia a situação. Era claro como água. Quem comandava era o Silver, e mesmo assim parecia difícil que não se voltassem também contra ele. Os homens honestos – e em breve veria que ainda os havia – deviam ser muito estúpidos. Ou, melhor dizendo, suponho que a verdade era esta: que estavam todos neutralizados pelo exemplo dos seus chefes – mas uns em maior grau que outros; e uns poucos, sendo já de si boas pessoas, não podiam ser recrutados nem arrastados mais longe. Uma coisa é dar-se ao ócio e à cobardia, e outra muito diferente é assaltar um navio e matar uma série de pessoas inocentes. 

 

Por fim, o grupo ficou formado. Ficavam seis homens a bordo, e os outros treze, incluindo o Silver, dirigiam-se para os escaleres. Foi nessa altura que me veio à cabeça a primeira das ideias loucas que tanto contribuíram para nos salvar as vidas. Se o Silver deixava seis homens, era evidente que o nosso grupo não podia tomar e defender o navio; e como só ficavam seis, também se tornava claro que o grupo do camarote não ia precisar da minha ajuda. E então lembrei-me de também ir à terra. Num ápice, saltei a amurada e enrolei-me no paneiro da proa do barco mais próximo, quase no mesmo instante em que ele largou para a ilha. Ninguém deu por mim a não ser o remador da frente, que perguntou:

 

– És tu, Jim? Vê lá se te abaixas. 

 

Mas o Silver, no outro escaler, virou-se rapidamente para perguntar seu ia ali, e a partir dessa altura comecei a arrepender-me do que tinha feito.

 

Remaram numa corrida para a praia, mas o barco onde eu ia, tendo algum avanço, e sendo ao mesmo tempo o mais leve e o mais bem manejado, lançou-se muito à frente do adversário, e assim que meteu a proa nas árvores da margem, saltei para um ramo e no mesmo balanço atirei-me para os arbustos mais próximos, ao passo que o Silver e os outros ainda vinham uns cem metros atrás. 

 

– Jim, Jim! – ouvi-o chamar. Mas, como podem imaginar, não lhe liguei nenhuma. Saltando, baixando-me e rompendo caminho, corri e corri sempre a direito, até não poder mais.  

sábado, 20 de janeiro de 2018

GLAXO



1

A esposa, de origem indígena, de Matt Morgan (Kirk Douglas), xerife do condado de Pauley, é violentada e morta. Na tentativa de descobrir quem foi o responsável por tamanha barbárie, Morgan viaja para a cidade de Gun Hill. Um dos suspeitos do assassinato é o filho de Craig Belden (Anthony Quinn), um rico fazendeiro da região. Decidido a levar o acusado a julgamento, Morgan precisa superar grandes dificuldades.

Morgan é o típico “mocinho” – corajoso, bondoso, ético. Craig simboliza os “novos tempos” – o dinheiro se impondo, estabelecendo outro tipo de ordenamento ao mundo.

Com essa base, o roteiro do filme Duelos de Titãs, título brasileiro para Last Train from Gun Hill (Dir. John Sturges, 1959), retrata, em ritmo de “Far West”, uma história sobre vingança, família e amizade.

 2

Um grupo de adolescentes – em uma cidade no interior da Argentina –, nas sextas-feiras e sábados, costumava ir ao cine Savoy ou ao Cine Espanhol. Depois, se reuniam no Clube Bermejo. Quando estavam quase bêbados, Vicente (Flaco) Vardemann e Miguel (Miguelito) Barrios, como uma espécie de brincadeira particular, encenavam para os amigos um duelo similar ao que tinham visto no cinema: Miguelito desembainhava e descarregava de balas o revólver imaginário em sua mão, depois o fazia girar, soprava a ponta e voltava a guardá-lo. Enquanto Miguelito fazia isso, o Flaco Vardemann fingia-se de moribundo, um ferido que se arrastava pelo piso do Bermejo (uma vez derrubou uma mesa cheia de garrafas).


Bicho Souza, Lucio Montes, Nelly Sosa e outros assistiam ao espetáculo – que aos poucos ia perdendo a graça e se dissolvendo nas conversas sobre os assuntos mais diversos.

 3

Em dia incerto – desses que parecem iguais a todos os outros – desembarcaram do trem das dez horas Ramón Folcada e sua esposa, Negra Miranda (com vinte e oito anos recém-completados e umas pernas inesquecíveis). Ele é suboficial do comissariado de polícia e foi transferido de Suárez. Algum tempo depois, o casal abre “O Ás de Espada”, um bar que serve almoço e bebidas para os funcionários da fábrica Glaxo. Nas noites de verão, os amigos se reuniam em volta de uma mesa de ferro batido, colocada na calçada, em frente ao “O Ás de Espadas”, para conversar, para beber cerveja Danúbio e comer amendoim com casca.

4

Miguelito Barrios abandonou a escola e começou a trabalhar no escritório da ferrovia. Organiza os pacotes que chegam pelo trem. Durante a tarde faz as entregas. Nos horários vagos vai cavalgar com Ramón Folcada (que se torna uma espécie de pai adotivo do rapaz, que é órfão). Por razões de trabalho, em 1959, precisou ir até Buenos Aires.

5

Dois pedreiros construíram uma casinha do outro lado dos trilhos. Ela foi habitada durante um ano por quatro mórmons.  Quer dizer, três, porque um foi embora. Ninguém entendia direito o que eles estavam fazendo ali. O único habitante que se mostrava hostil aos missionários religiosos (mas de forma discreta) era Ramón Folcada.

 6

Quando saiu da prisão, em 1966, Flaco Vardermann tinha a cabeça raspada e a pele rançosa. Na plataforma da estação ferroviária, Miguelito Barrios, em um primeiro instante, teve dificuldades para reconhecê-lo. Deixaram que ele saísse antes, pensei. Mas se ainda lhe faltavam mais de cinco anos. O Flaco desembainhou um revólver imaginário. Como fazíamos no Bermejo – eu me fazia de John Wayne e ele imitava mal Kirk Douglas –, disparou na minha direção. Depois esboçou uma careta. Soprou a ponta do dedo. E saiu caminhando perto da via, com aquela passada larga e serena, quase hipnótica. Desta vez não se jogou no chão, não quis se fazer de moribundo.

7

Os operários acabam de carregar as ferramentas nos caminhões da prefeitura. O matagal já não existe, foi desfeito, e por onde passavam os trilhos, agora há um caminho novo, uma diagonal, que mais se parece uma ferida costurada. Esse caminho parece, então, a recordação de um talho, irremediável, na terra.


8

A concisão de Glaxo, novela escrita pelo argentino Hernán Ronsino, impressiona. São apenas 71 páginas, divididas em quatro capítulos, ou melhor, em quatro narradores. O tempo narrativo vai e volta (1973, 1984, 1966, 1959), permitindo que cada uma das vozes, em diferentes momentos, acrescente novas camadas de informação ao corpo do texto. A geografia delimita uma área específica: o povoado está emparedado entre a Glaxo e a estação ferroviária.

Ao leitor cabe reunir todos esses elementos e compor o desenho final do mosaico.

 9

Seria Glaxo uma adaptação literária de Last Train from Gun Hill? Diferenças significativas. Semelhanças consideráveis. Há aquele que rompe com uma amizade. E há aquele que imagina recuperar a perda através da vingança. A vida na província e a violência política. Os limites morais, a covardia, a culpa, um crime – ou vários.


10

William Faulkner. Juan José Saer. Juan Carlos Onetti. Rodolfo Walsh. Flannery O’Connor. Encontrar os pontos convergentes. Um universo de discursos cruzados.


11

Por trás do mau humor sempre há alguma coisa, um incômodo não dito. Olho a rua, tomo um pouco de cerveja, enxaguo a boca. Como é que você vai falando isso para ela assim, digo. Montes me olha como um menino que cometeu um erro, que fez bobagem. Montes tem o olhar de um menino que fez bobagem. Como vai pressionando ela assim?, digo. E Montes fica em silêncio, fica pensando. E diz: O quê? Fiz mal? Você é uma besta, volto a dizer, um animal, a mulher se assustou, não percebeu? Ela te evitava, não queria saber nada de você, nem da Glaxo. Sim, me diz Montes, isso ela me falou depois. Como depois?, digo. Sim, depois, ele diz, e volta, o desgraçado, a me enredar com seu relato.                   


12

Hernán Ronsino nasceu em Chivilcoy (província de Buenos Aires), em 1975. Sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires. Publicou La Decomposición (2007), Glaxo (2009) e Lumbre (2013).

13

A tradução de Glaxo é de Livia Deorsola.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O QUINTETO DE BUENOS AIRES



Mi Buenos Aires querido, / cuando yo te vuelva a ver, / no habrá más penas ni olvido, canta Carlos Gardel, certamente idealizando uma cidade que nunca existiu – exceto ficcionalmente. Igualmente ficcional é a Buenos Aires de Manuel Vázques Montalbán.

Há diferenças significativas entre uma e outra visão. A segunda, embora seja uma criação “ad hoc”, está muito próxima da realidade geográfica, social e política. Definitivamente, não é uma fotografia para publicar em rede social. Quando José Carvalho Larios, mais conhecido como Pepe Carvalho, sintetiza a cidade através da trilogia tangos, desaparecidos, Maradona, descontada a ironia ferina, percebe-se que a intenção narrativa não é a de negar a História – mas sim de enfrentá-la.

O Quinteto de Buenos Aires foi publicado em Espanha em 1997 (em 2000 no Brasil). E, na medida em que isso está ao alcance de um romance policial, trata-se de uma narrativa centrada na demolição da argentinidade (mudando uma peça aqui, outra ali, também poderia ser a aniquilação da brasilidade). A linha base do enredo é singela: Pepe Carvalho é contratado para descobrir o paradeiro de seu primo, Raúl Tourón, que está na capital portenha. Depois, deve convencê-lo que deve voltar para Barcelona, Espanha, onde, ao lado seu pai, Evaristo Tourón, estará em segurança. A primeira tarefa é relativamente fácil. A segunda, quase impossível – Raúl retornou ao terceiro mundo, depois de muitos anos, para um ajuste de contas com o passado – quer se vingar de sócios desonestos, prantear o luto pela morte da esposa e encontrar a filha desaparecida.

Manuel Vásquez Montalbán (1939-2003)
Pepe Carvalho, no intervalo entre uma e outra etapa desse trabalho, precisa enfrentar vários desdobramentos. Algumas complicações surgem quase que espontaneamente. O passado político da Argentina atinge a todos os que estão em cena – os braços tentaculares do poder costumam asfixiar aqueles que ousam desafinar a ordem geral.

As cenas de corrupção permeiam a narrativa – que se passa no governo de Carlos Menem. Lograr os outros resume a atividade comercial que movimenta aqueles que possuem algum tipo de projeção social. Diante da possibilidade de colocar as mãos em qualquer quantia, cabe ao indivíduo decidir se participará do acordo ou se ficará de fora. Pactuar é o eufemismo adotado nessas ocasiões. A tradução desse impasse – produzido pelo capitalismo predador – pode ser resumida em vários assassinatos e em diversos momentos de violência explícita. Nada que pareça destoante do propósito concreto embora seja sempre assustador.
O contraponto a essa selvageria aparece na figura de um policial honesto, que quer cumprir com o dever custe o que custar. O inspetor Óscar Pascuali, como compete aos homens da lei, não consegue entender qual é o jogo de que participa – e, evidentemente, há um preço a pagar por esse proceder. Suas atividades estão restritas (em muitos momentos) ao observar passivo dos acontecimentos. Ou seja, ele sempre chega atrasado aos lugares onde ocorrem os eventos mais importantes da narrativa – e tenta corrigir esse desacerto gerando mais violência. É a figura mais patética de todo o romance. E isso não quer dizer pouca coisa. Há uma multidão de personagens nas 458 páginas de O Quinteto de Buenos Aires. Alguns deles fogem do estereótipo que povoa a literatura policial. Como definir um empresário que abandona tudo (negócios, família), assume a homossexualidade e resolve se dedicar à proteção de mendigos, vagabundos, aidéticos e viciados de todas as espécies? Além disso, o grande plano do sujeito é a invasão (de forma pacífica) das Ilhas Malvinas (Falklands Islands) para construir alguns falanstérios, onde abrigará os seus “marginais”. A figura mais sinistra, o Capitão, de quem ninguém sabe o nome exato, surge como um espectro maligno. Remanescente do grupo de militares que participou dos governos ditatoriais (1976-1983), se utiliza das informações que obteve em sessões de tortura para manter algum poder. Como os tempos são “outros” – e o passado foi anistiado – faz inúmeras alianças com empresários e políticos. Também se pode considerar como singulares a dançarina de boate que estuda latim, o boxeador que se suicida por amor, o chef de cuisine Drumond, o propriétaire du restaurant Lucho Reyero e um farsante que se diz filho legítimo de Jorge Luis Borges. Ao lado de todos esses excêntricos surge don Vito Altofini, o sócio argentino de Pepe Carvalho: Um homem de uns sessenta anos, cabelos prateados pela luz fluorescente e fixados com brilhantina um tanto ordinária, excessivamente bem vestido, embora se perceba que o terno não é novo, que a camisa já foi lavada várias vezes; de qualquer modo, as abotoaduras reluzem, assim como o alfinete da gravata, os sapatos e os dentes.

Região central de Buenos Aires
A reunião de toda essa gente esquisita resulta em uma imensa e tresloucada confusão. A trama principal vai sendo deslocada para o acostamento, como se fosse acessória, e os temas secundários vão tomando conta da narrativa. A procura pelo primo desaparecido parece não importar muito – há bastante divertimento em Buenos Aires, uma cidade repleta de argentinos deprimidos.

Uma das chaves do romance aparece em uma declaração de don Vito Altofini: A arte me apaixona. Há açougueiros que são artistas, em qualquer ofício se pode ser artista. Aqueles que sobreviveram ao horror promovido pela ditadura argentina vivem em crise de identidade, não sabem se conseguem explicar o mundo através da arte ou da carnificina. Nesse sentido, ninguém se espanta quando a esposa do Capitão, entorpecida de álcool e passado, ao ouvir um barulho, exclama: Um tiro. Foi um tiro. Quem vocês mataram dessa vez?

No capítulo derradeiro, “Assassinatos no Clube dos Gourmets”, a comédia-pastelão se completa. O que até então era uma narrativa comedida, na medida do possível cada coisa em seu lugar, se transforma em sucursal do inferno – mas, é preciso esclarecer, uma filial muito engraçada. Vários assassinatos (alguns absolutamente ridículos), uma tentativa de suicídio, uma tentativa de homicídio, um cardápio gastronômico fantástico. O epilogo de todo esse horror repete a conhecida liturgia: enquanto os mandantes dos crimes permanecem incólumes, os empregados precisam se justificar na delegacia mais próxima. 

O Quinteto de Buenos Aires é entretenimento de excelente qualidade.



TRECHO ESCOLHIDO

 

Carvalho faz uma cara de esfaimado e dirige-se ao balcão do self-service dos professores. Espera sua vez para servir-se. Então, passa diante de cada um dos pratos como se fizesse uma análise secreta dos prós e dos contras do que o bufê oferece. Decepcionado, volta para a mesa de Alma com a bandeja quase vazia, sem outra comida além de um cacho de uva num pratinho, uma garrafinha de vinho e um pãozinho. Alma observa o espetáculo desolador. 

“Não havia nada à altura do paladar de sua excelência?”

Carvalho senta-se e suspira resignado. 

“A se confirmar minha expectativa de vida, calculei que me restam umas sete mil refeições em condições mais ou menos dignas. Não quero me tapear. O que tem aqui não é comida.”

“E os etíopes? Não sabe que os etíopes estão passando fome?”

“Eu tenho sido espanhol por mais de cinquenta anos, e você me vem com essa de etíopes!”

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

NO ESTILO DE JALISCO


A história do futebol brasileiro muitas vezes se confunde com uma série de fracassos épicos (Copa do Mundo de 1950, Copa do Mundo de 1982, Copa América de 2001, Copa do Mundo de 2016). Assim como o “Maracanazo”, serão necessários séculos para esquecer a derrota para a Alemanha (7 a 1). Em todos esses momentos, o ufanismo grotesco projetava o triunfo e coube aos adversários corrigir exemplarmente a soberba. Como na famosa história de Garrincha, faltou combinar com os russos.
                         
Além dessas tragédias explicitas, há outra, menor, e que tem passado despercebida pela literatura. O melhor texto de ficção sobre o futebol brasileiro foi escrito por... um mexicano. Pois é, o país do futebol não consegue passar do nível de um perna-de-pau quando está jogando no campo da literatura. Isso, evidentemente, não quer dizer que o placar esteja em branco. Claro que não. Mas,... Os gols, digo, os romances produzidos por Márcio Américo (Meninos de Kichute, 2003), André Sant’Anna (O Paraíso é Bem Bacana, 2006), Michel Laub (O Segundo Tempo, 2006), Marcelo Backes (O Último Minuto, 2013) e Sergio Rodrigues (O Drible, 2013), entre outros, não parecem ser suficientes para levar o time à primeira divisão. Um pouco mais de categoria (golaço!) pode ser encontrado no texto de Clara Arreguy (Segunda Divisão, 2005), que parece ser um gol de honra, desses que não modificam o placar final. Em relação aos contos, basta lembrar a esqualidez da coletânea 22 Contista em Campo, organizada por Flávio Moreira da Costa em 2006, ou a exceção que é Maracanã, Adeus: onze histórias de futebol, do Edilberto Coutinho, publicado em 1986. 

No Estilo de Jalisco, de Juan Pablo Villalobos, publicado em 2014, é, na falta de palavra melhor, sensacional. Primeiro, porque se afasta da visão trágica do jogador pobre que encontra no futebol uma forma de avanço social e econômico. Nada contra o clichê, mas a bola também rola por outros gramados. Segundo, o uso da linguagem coloquial, repleta de expressões que misturam o espanhol mexicano com o carioquês resulta em um bom achado literário. O texto fica fluído, palatável. Terceiro, permite uma visão exterior de um período histórico pouco abordado pela literatura brasileira. Em livros de memórias políticas, como Os Carbonários (Alfredo Sirkis, 1980) e O Que é Isso, Companheiro? (Fernando Gabeira, 1979), há passagens sobre o ano de 1970 que são preciosidades. Ao mesmo tempo em que sequestravam embaixadores e cônsules, eles estavam diante da televisão, torcendo pela seleção – que foi usada para camuflar a repressão política. Coisa de doido, que foge da racionalidade de quem pretendia combater o governo militar.


Construído como um imenso (e intenso) bloco narrativo (apesar de estar fatiado em três partes), No Estilo de Jalisco conta a história de Juan. Nascido em Guadalajara (capital do estado de Jalisco), Juan viu vários dos jogos do escrete canarinho na Copa do Mundo de 1970. Ficou impressionado e resolveu se mudar para o Brasil aos 18 anos de idade. O tempo foi passando e ele se tornou parte da paisagem. Vários casamentos, incontáveis aventuras. Deslumbramentos. No intervalo entre uma crise e outra, descobriu uma maneira de ganhar dinheiro com a fama do “dream team” brasileiro de 1970. Como não podia contar com o elenco original, imaginou uma representação teatral dos jogos – ou melhor, das principais jogadas. Em estilo empreendedor, vendeu a ideia para um amigo de infância, empresário do ramo de entretenimento. Dezenas de apresentações foram marcadas em cidades do interior do México.

Essa história é contada na mesa de um bar. Seu interlocutor, Jair, não diz uma única palavra. Como compete a um narratário, sua existência literária tem como prioridade não deixar o narrador falando sozinho.

Entre dezenas de canecas de chope e copos de cachaça, Juan conta como foi escolhendo os jogadores, as dificuldades que teve para convencer os atletas/atores. A melhor parte acontece durante a excursão ao México. O espetáculo se transforma em outra coisa – que ele não consegue definir com precisão. Todo mundo ganhou dinheiro, mas,... a associação com Tigre (o amigo) foi muito diferente daquilo que ele havia projetado.  

Muitas das cenas são engraçadíssimas. Soma de trapalhadas, de “causos”, de confusões. As histórias dos dublês dos jogadores brasileiros e uruguaios (sim, vários uruguaios entram nesse balaio de gatos) são inacreditáveis. Desde jogador alcoólatra até o evangélico que exige uma “doação” ao pastor para poder jogar. Há de tudo – e mais um pouco. 

Juan é um excelente contador de histórias, que nunca perde o fio da meada, embora faça algumas divagações – em lugar de atrapalhar o desenvolvimento da história, esses penduricalhos ajudam na construção da atmosfera etílica em que o livro está assentado. Talvez o único senão esteja na inacreditável lucidez de Juan nas páginas que concluem o texto – depois de “tomar todas”, isso não parece verossímil.

Ao final de No Estilo de Jalisco, a grande piada – a vida não fornece sossego para aqueles que querem ser mais espertos do que os espertos. Uma bela metáfora do futebol brasileiro.


Juan Pablo Villalobos morou no Brasil entre 2007 e 2014. Publicou em português, além de No Estilo de Jalisco (2014), Festa no Covil (2012), Se Vivêssemos em um Lugar Normal (2013) e Te Vendo um Cachorro (2015).


TRECHO ESCOLHIDO

 

Na Copa de 78, por exemplo, o desastre foi maiúsculo. Olha o ridículo. O cálculo era que na primeira fase a gente ganhava da Tunísia, empatava com a Polônia e perdia da Alemanha. Ficaríamos com três pontos que dariam um passe para a segunda fase. Sabe o que aconteceu? A gente perdeu os três jogos por goleada. Tem até uma piada famosa da partida contra a Alemanha. O primeiro tempo acabou 3 a 0 pra Alemanha e o goleiro mexicano teve de ser substituído por lesão. Então quando acabou o jogo, o goleiro reserva foi correndo para o vestiário e falou para o goleiro titular que tinha ficado ali sem saber o que acontecia no gramado:

– Empatamos!

O goleiro titular pulou de felicidade:

– 3 a 3?

– Não, disse o goleiro reserva, eu também tomei três.