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sexta-feira, 21 de junho de 2019

21 DE JUNHO DE 1839


Hoje é dia de aniversário do bruxo. Bruxo do Cosme Velho. Aquele sujeito que fazia misérias com as palavras, uma ironia aqui, um cinismo ali, frases com sabor de tapas de luva ou socos na boca do estômago. Nem Mohamed Ali foi tão mortal. Imortal. Talvez esse tenha sido o seu maior pecado venial. 39 membros e um morto rotativo, como sintetizou o melhor dos Fernandes – que, entre muitos acertos, recusou dar cores e flores à teoria do medalhão, esse símbolo do carreirismo pátrio.

Hoje é dia de aniversário do marido de Carolina, essa quase névoa que alcançou o panteão das celebridades através d’um soneto do ilustre consorte. Transformar a ausência em versos exige as bênçãos de Erato – a beleza sempre está acompanhada da dor, como comprova o conto sobre os braços, metáfora antiga, possivelmente se referindo a outras partes do corpo, um formigamento estranho a bulir com sentimentos e regiões pouco recomendáveis aos que não atingiram a maioridade penal.

Hoje é dia de aniversário do filho de Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado da Câmara, agregados de Dona Maria José de Mendonça Barroso Pereira. Viveram todos em um tempo difícil para as classes subalternas. Mesmo para quem sabia ler e escrever, e que contava com as vantagens típicas do conluio casa grande & senzala, o excesso de melanina não era a melhor carta de recomendação nos círculos imperiais.   

Hoje é dia de aniversário daquele que foi coroinha. Predileto do Padre Silveira Sarmento – que a terra lhe seja leve, assim como se imagina ter sido com o pupilo, no devido tempo. Talvez esteja ai, nessa amizade, a gênese de Bentinho, esse sujeito que, no início da trama, não sabe se entrega a alma a Deus ou se mergulha nos mistérios da carne. Poucos possuem a força de vontade de Santo Antão, aquele que somente sucumbiu à vaidade.

Hoje é dia de aniversário do funcionário público exemplar. Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Enquanto a ciranda dos governos abalava o Império, ele se mantinha lá, forte e burocrata. Tinha o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia.  A moldura do Conselheiro Aires também serve para o seu criador. Mimetismos literários. A salamandra se escondendo entre as pedras, o crítico literário apontando para o que destoa do mineral. 

Hoje é dia de aniversário do autor de nove romances, peças de teatro, poemas, contos, crônicas. A sociedade carioca do II Império e do inicio da República. As transições sociais e políticas. O mundo de ponta-cabeça. A modernidade arrombando as portas do passado, destruindo ilusões. Literatura como documento – apesar do olhar oblíquo, que traziam não sei que fluído misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.

No dia do aniversário, a constatação: nunca mais como antes. Nunca mais Nogueira poderá alegar falta de entendimento nas conversas com senhoras, no meio da noite. Nunca mais o Alferes Jacobina enfrentará o seu doppelgȁnger. Nunca mais Simão Bacamarte asilará os loucos de Itaguaí. Nunca mais desentendimentos entre a agulha e a linha. Nunca mais uma cartomante, a pretexto de ganhar algumas moedas, vaticinará amores eternos. Nunca mais Marcela abusará da boa fé de um apaixonado e gastará onze contos de réis em quinze meses. Nunca mais. Nunca mais como antes.

O louvor dos mortos é um modo de orar por eles.

domingo, 9 de junho de 2019

LIVROS: PERDAS E DANOS


Fobias são idiossincráticas. Há quem entre em pânico diante de aranhas, palhaços e baratas. Há quem tenha medo de escuro, choques elétricos e lugares com pouco espaço. Todos os indivíduos possuem algum tipo de temor, normalmente identificado com situação traumática (antiga ou recente) e que – por uma dessas maluquices que fazem os humanos se portarem como humanos – volta à tona na presença daquilo que causa horror.

Na relação (imensa!) de coisas que me causam aversão, a que mais me amedronta é perder livros. Sou um acumulador. Nunca me preocupei em ter dinheiro na conta bancária ou em comprar carro ou imóvel. Meu objeto do desejo sempre foi ter livros. Quanto mais, melhor. E isso, de certa forma (mas não da forma certa), explica porque escolhi a literatura como elemento norteador de minhas escolhas.

Paro diante das estantes (os livros envolvidos pelo que Walter Benjamin chamou de suave tédio da ordem) e vejo aqueles que li e aqueles que – eis o paradoxo – jamais lerei. Sinto um prazer que a outras pessoas parece estranho, esquisito, pouco compreensível. A isso se acresce o fato de que gosto mais da companhia das criaturas de papel do que das pessoas de carne e osso. Quando falam de minha falta de sociabilidade, esboço um esgar de canto de lábio e sigo em frente.

Outro dia, no rascunho de um artigo que está sendo desenvolvido, citei um conto da Susan Sontag. Publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em formato de bolso, tem menos de 60 páginas. Ou seja, é um livro fácil de desaparecer entre centenas de outros volumes. Fui procurá-lo. Não estava onde deveria estar. Também estava ausente em vários lugares possíveis.

Defendo a tese de que os livros se movem quando o leitor não está olhando. Não importa o cuidado organizacional, retirar e recolocar no lugar certo, eles, os livros, adoram se esconder. E somente reaparecem quando querem – e isso pode acontecer vários meses depois ou nunca!

Revirei prateleiras, movi dezenas, centenas de volumes do lugar. Olhando para aquele mar de histórias, lamentei não saber em que profundeza abissal estava o Assim Vivemos Agora. Como nunca tive vocação para herói, adiei a busca, sentei no sofá, sequei o suor da testa, tentei negar a forte dor nas costas e, para não perder a viagem, amaldiçoei a humanidade.

Na tentativa de acalmar a ansiedade, acessei a Estante Virtual. Na eventualidade de precisar adquirir uma cópia, fui verificar a disponibilidade. Encontrei três exemplares. O primeiro, R$ 85,00 (mais R$ 6,53 de frete); o segundo, R$ 90,00 (mais R$ 8,05 de frete); o último, R$ 130,00 (frete grátis!).

A mercantilização da literatura acompanhou os avanços da tecnologia. Vinte anos atrás, os livros ficavam esquecidos nas prateleiras obscuras de algum sebo mal localizado. Os garimpeiros literários precisavam ter espírito de aventura para extrair do pó e das traças as raridades que se encontravam escondidas entre exemplares de autoajuda e romances açucarados. Quem leu John Dunning sabe o que isso significa. Com a Internet, as listas dos acervos foram digitalizadas e a lei da oferta e da procura se transformou em arma de combate. Para piorar a situação, o mundo bibliográfico foi invadido pela multiplicidade de sebos gourmet. Ou seja, prometem mil serviços "especiais" ao consumidor – livros higienizados, autografados, primeiras edições, ... Tudo isso com preços acessíveis a quem acertou – sozinho – na mega sena.

Algum tempo atrás, na última mudança física, tentando colocar alguma desordem na bagunça que caracteriza a biblioteca, separei a literatura estadunidense das demais literaturas. Empilhados contra a parede, seguindo a fórmula exemplar do delegado Espinosa (personagem do Luiz Alfredo Garcia-Roza), os livros esperam por algum tipo de organização. Paul Auster está misturado com Sherwood Anderson, Ross Macdonald faz companhia para Ralph Ellison, Patti Smith parece ignorar Jonathan Safran Foer. Miscelânea e balburdia. Um dia desses, não sei quando, entro em uma loja e compro novas estantes.

Susan Sontag (1933-2004)
“Só pode estar ali”, disse a mim mesmo, apesar de ter conferido a ausência dois dias antes. Sentei no chão e comecei, outra vez, a busca. É impressionante a capacidade de dispersão de quem procura por algo e encontra vários brinquedos pelo caminho. Entre devaneios e interrupções (fui aquecer a água para o chá, fui até o escritório levar alguns volumes que tinha separado para trabalhos futuros, fui ler as edições virtuais dos jornais, etc.), segui na faina de tentar encontrar algo que não desejava se localizado.

Há quem aposte que a primeira Lei de Murphy (se algo puder dar errado, dará) é mais importante do que todas as leis da física. Nunca consegui encontrar explicação “científica” capaz de negar esse axioma. Por exemplo, a fila ao lado flui com mais rapidez   enquanto que naquela em que estamos alguém resolveu pagar 518 boletos, o pão sempre cai no chão com o lado untado em manteiga para baixo, etc e tal.

De qualquer forma, um fio de esperança sempre se fez presente. Ninguém abre mão da probabilidade de encontrar o objeto perdido na última gaveta, na última pilha de roupas, no último lugar possível de estar. Não é comum, mas acontece. Faz parte do show.

Eis o fato desolador: o livro não estava lá! Ou estava e eu, mais uma vez, não o vi. Queria tê-lo encontrado. Mas, ele desapareceu, volatilizou, sumiu. Talvez esteja em algum lugar que não procurei. Talvez não exista mais. É uma tristeza dizer isso, mas os livros também morrem.        

Incêndio da Biblioteca de Alexandria (48 a. C.)

Em tempo

1) Diante da estante em que estão aprisionados os escritores latino-americanos, descubro que o exemplar de Asco, do hondurenho Horácio Castellanos Moya, também está desaparecido.

2) Em lugar incerto e não identificado está um pacote da Livraria Cultura. A transportadora alega ter entregado. Reafirmei para a Livraria que não recebi. Enquanto não localizam o controle e verificam a procedência da minha reclamação, lembrei de uma das minhas muitas conversas com Mestre João Rath, o ilustre proprietário de A Sua Livraria. Ele não se cansava de contar que o seu estabelecimento comercial foi assaltado diversas vezes. Nunca levaram um livro sequer!

3) Ó céus! Ó vida! Ó azar!, se lamentava Hardy, em um desenho animado antigo.