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quarta-feira, 30 de maio de 2018

SETE A UM


O dia 08 de julho de 2014 se tornou um divisor de águas para os brasileiros. No estádio Mineirão, em Belo Horizonte, a seleção de futebol que dizem representar o Brasil perdeu, na semifinal da Copa do Mundo, para a seleção alemã pelo inacreditável placar de 7 x 1.  O vexame poderia ter sido maior, bem maior. Cavalheirescamente, os adversários diminuíram o ritmo no segundo tempo. De qualquer forma, coube aos brasileiros que estavam em campo baixar a cabeça e ir para casa – chorando –, porque a derrota foi lendária! Como se não bastasse, há quem diga que o “mineiraço” foi mais humilhante que o “maracanaço” (16 de julho de 1950), quando a seleção brasileira perdeu o título para o Uruguai (2 x 1).

Em contrapartida, sem querer fazer grandes análises sociológicas, cabe lembrar que o Brasil ignora o senso crítico. Glorificamos os momentos de sucesso e “fazemos de conta” que as frustrações não aconteceram. A negação é uma das mais festejadas características da “pátria de chuteiras”.  

A literatura costuma acompanhar esse procedimento – e não só no que se refere ao nobre esporte bretão. A verdade é que somos péssimos perdedores. Nunca soubemos lidar com o que nos é desfavorável. Predomina o triunfalismo e a heroicidade nos relatos históricos e ficcionais. São raros os momento em que se ousou colocar em cena um personagem deslocado ou que foi capaz de conviver com algum tipo de dúvida. Somente as certezas prevalecem.

No Brasil, oitenta por cento da literatura sobre futebol se concentra em biografias de jogadores, histórias de clubes e análises sobre a estética que emoldura o esporte. A ficção sempre foi artigo escasso, uns três ou quatro romances e uns vinte ou trinta contos. Todos destacando o colorido e a beleza. Não há lugar para o fracasso. 

Há algumas exceções, claro. São tão raras que se confundem com o zero em alguns gráficos estatísticos.   

Coube a alguns baianos e alemães modificarem o panorama. Sintomaticamente, foi lá, em 2014, no litoral da Bahia, que a seleção germânica estabeleceu o seu quartel-general e comandou o show. A afinidade não pode ser negada.    



Como uma releitura da pergunta clássica (onde você estava no dia em que o Brasil perdeu para a Alemanha?), o livro Sete a Um (organizado por Lidiane Nunes e Tom Correia) propõe um retrato ficcional do dia fatídico. São oito contos e um, na falta de melhor expressão, ensaio autobiográfico.

No bem-humorado texto da Dagrun Hintze, a ilustre diretora de teatro coloca em cena as loucuras que costumam acontecer na vida de quem é torcedor de alguma equipe de futebol. E ela começa relatando uma das melhores histórias do livro. Na juventude, no meio de um “amasso” com o namorado, sugeriu que fossem para um lugar mais aconchegante. No caso, o apartamento do sujeito. O rapaz respondeu com um inesperado Nada de se precipitar! Decepção é uma palavra muito suave para definir a situação. No dia seguinte, a precipitação deixou de ser importante e eles puderam resolver a questão sem qualquer obstáculo! A explicação para essa confusão só se tornou conhecida um ano depois – quando eles estavam morando juntos, (...) ele tomou coragem para me dizer por que, na época, não tinha logo me levado para sua casa. Por causa da roupa de cama do Borussia Dortmund. Sim, a demência futebolística não possui limites. E, de qualquer forma, como disse o jogador e técnico inglês Gary Winston Lineker: O futebol é um esporte muito simples: 22 jogadores correm atrás da bola durante noventa minutos e, no final, os alemães sempre vencem.  

Não é bem assim, mas... Por enquanto, das vinte edições da Copa do Mundo, os alemães venceram quatro vezes (1954, 1974, 1990 e 2014). Quem é que pode adivinhar o futuro?

Hans-Ulrich Treichel, em Foucault, Freud, Futebol, utilizando tom diplomático, evitou colocar o dedo na ferida e contou uma história longínqua, dessas que poderiam ter se perdido se não fosse o poder de observação do escritor. Com doçura, humor e um pouco de melancolia, em ritmo de autoficção, começa destacando a sua ligação com o futebol através de álbuns de figurinhas e termina relatando as dificuldades de um adolescente para chamar a atenção das meninas. A narrativa ocorre na Alemanha, mas poderia ser no Brasil – desde que certos ajustes fossem feitos. A paixão pelo esporte transcende a geografia.

Dos textos brasileiros, O Hexa de Meu Pai, de Elieser Cesar, chama a atenção pelo lirismo e pela delicadeza. Diante do pai, corroído por um câncer horroroso, o narrador (e o restante da família) decide mentir sobre o resultado do jogo entre Brasil e Alemanha. Ele não quer ampliar a dor do homem que está próximo da morte. O nonsense da situação (que evoca, ao longe, o filme Adeus, Lenin!, dirigido por Wolfgang Becker, 2003) impede que a narrativa se transforme em um drama pesado. Na manhã seguinte, morreu, cercado pelos filhos, com o rosto salpicado pelas lágrimas de minha mãe e sereno como um velho canário que deixara para sempre a gaiola onde cantara a vida toda. Tomara que lá, no céu, onde não entra mentira, meu pai não venha a descobrir a verdade.

A vida amorosa também corre risco de levar uma “sacolada” de gols. É o que acontece com o narrador de Gertrud, de Luís Pimentel. Ao escolher assistir os jogos da Copa do Mundo, o narrador negligencia o namoro com a alemã (que estava no Brasil para cursar alguma pós-graduação não identificada). Infração grave, diriam os deuses do amor. Como o inferno sempre está próximo, o castigo não demorou. No dia do jogo, a namorada solicitou, ele liberou e o apartamento foi superpovoado por alemães (que surgiram não se sabe de onde). Todos assistindo o jogo. Todos fazendo festa, exceto o anfitrião. Quando o juiz apitou pela última vez, e a lambança acabou no Estádio do Mineirão, a confusão começou em minha casa. Os alemães pareciam estar novamente invadindo territórios alheios em período de guerra, agitando bandeiras, tocando cornetas, subindo no sofá e gritando da janela. Paciência tem limite! Os bárbaros foram expulsos do recinto – infelizmente a bárbara alemã acompanhou a turba. E o futebol promoveu mais uma separação.

Em A Vida é um Eterno Descenso, de Claudia Tajes, o protagonista é um “empresário” de futebol, que imagina ter acertado – metaforicamente – na loteria. Só que não. Kenedi, futuro craque, foi vendido para um time da Ucrânia – mas recusa a viagem. O motivo? A namorada está grávida. O problema maior é que a criança também pode ser filha do empresário. Dandara (nascida Conceição) fez, durante algum tempo, jornada dupla. Disposto a ganhar a partida no grito, o sujeito utiliza-se de recursos pouco éticos. Obviamente, se esqueceu de combinar com os russos. Além de saber que o time do Luiz Felipe Scolari levou a goleada, tomou um revés, com direito a surra da família de Kenedi. Acordei do lado de fora do prédio, encolhido no chão, sem sapatos, com a sensação de ter um quilo de guisado de segunda no lugar do cérebro.
 
Marcus Borgón escolheu um ângulo diferenciado. O narrador de O Resto do Mundo, garçom de um bar que montou telão para transmitir o jogo, precisa se equilibrar entre os pedidos, as piadas grosseiras e a raiva de ver a turba infantilizada perdendo a dignidade diante de da televisão. O espírito “do contra” ele herdou do pai, que trabalhava com mudanças e transporte de material de construção. Em época de Copa do Mundo, ninguém faz mudança, reforma ou edificação. Todos ficam catatônicos, apenas os jogos transmitidos pela televisão interessam. A voz do pai, furioso, ecoa na mente do garçom como um mantra: Vocês estão festejando a própria desgraça. Alguns anos depois, lembrando a fúria paterna, ele repete o comportamento e torce contra. Não torce pela Alemanha, torce contra a equipe verde-amarela: No intervalo, os comentaristas se esforçam para explicar o inexplicável. Todos falavam em pane, apagão. Para mim foi uma catarse. Aquele buzinaço insuportável definhando, como um disco em rotação mais lenta. O salão apaziguado. O infortúnio do Outro é uma forma de alegria (Schadenfreude). No fim, a compensação: O cozinheiro separava as carnes. O 7x1 ficara entalado. Muita comida sem ser tocada. Não teríamos que sortear. Costumávamos dividir as sobras. No início aquilo me causava repulsa. Mas a fome nos devora a dignidade.


Alguns calos doem mais do que os outros. Perder a namorada é sempre traumático. Em Glorinha Toda Solta, de Carlos Barbosa, a descrição de uma derrocada amorosa supera o acontecimento histórico. Glorinha preferiu dormir nos braços de outro a continuar suportando as idiossincrasias de um professor que gosta de matar a sede e a saudade no bar do Florêncio. O que se segue é discurso, afinal falar sozinho foi o que restou ao protagonista/narrador do conto, a mulher se divertindo com outras paisagens e outros sabores. Glorinha estava solta no mundo para, talvez, esquecer-se de mim, do fisco que representei para ela no embate da turma. Solta no mundo, quem sabe, para construir uma nova história, uma história vencedora e profícua. Ou não estivesse toda solta, mas aconchegada em novos braços e afetos, e nem precisasse mais vender perfumes e bijuterias de porta em porta. De tudo e mais um pouco, sobrou canalizar a raiva,  no jogo final, contra a Argentina: Gol da Alemanha, porra!

Quase toda a humanidade foi destruída por uma hecatombe. Sobrou cerca de um décimo da população. Um grupo de pesquisadores trabalhou para preservar o que o planeta criara em milênios, no campo das artes, ciências, tecnologia, esportes, indústria, cultura, fatos históricos e tudo o mais. Com esse enredo, Mayrant Gallo propôs uma reflexão apocalíptica em O que Houve Depois. O narrador, responsável pela história das glórias brasileiras no futebol, vai se encontrar – em Paris, em segredo – com o seu equivalente alemão. A grande dúvida (e temor) está na possibilidade dos germânicos salvarem o 7 x 1 – lembrando eternamente a humilhação que impuseram à seleção canarinho. Quando os dois homens se encontram, as diferenças se tornam evidentes. O mundo não gira em torno do ego. O futebol não tem a importância que os brasileiros lhe atribuem.

Como se fosse uma bola solta dentro da grande área, Lima Trindade chuta a política na direção do gol.  Oito de Julho faz um recorte dos protestos contra a Copa do Mundo. O narrador não consegue ver o jogo. Suas preocupações estão na batalha que ocorre nas ruas próximas ao Mineirão. Em lugar dos passes, das firulas, dos dribles e dos gols, o seu universo se resume em coquetéis molotov, gás lacrimogênio, golpes de cassetetes, correrias, desencontros, insanidade. A fumaça ardia em meus olhos. A mochila estava aberta e, sem eu perceber, enquanto corria, meus pertences se perdiam na fuga. É essa perda gradual de pertences, de cidadania, de democracia, que o conto nos conta. A truculência da polícia e o vandalismo de alguns manifestantes se confundem. Há momentos em que fica difícil discernir quem é o mocinho e quem é o bandido. Talvez não haja distinção. Talvez todos sejam selvagens – e o placar do jogo um reflexo esclarecedor dessa situação.         

Resumo da ópera e do livro: na véspera de uma nova Copa do Mundo é sempre salutar olhar para trás e ver que o futuro foi escrito no passado. Aquele que se nutre de sonhos corre o risco de cair da cama. Os contos incluídos no Sete a Um não pretendem fazer previsões – inclusive porque a bola de cristal está no conserto. O que podemos encontrar no livro são outras coisas: humor, amor, dribles, trapalhadas e alguns gols literários.             
    

segunda-feira, 7 de maio de 2018

ALVES & CIA



Depois da traição matrimonial, nada mais pode ser encarado com seriedade. Os momentos ridículos se sucedem aos milhares. Não importa se há ocorrência de algum tipo de reação (intempestiva ou não), não importa o olhar escandalizado dos familiares, não importa se os amigos e os vizinhos fingem nada saber. Tudo se transforma em comédia. Tudo. 
 
Em uma pequena novela, e que foi publicada postumamente, em 1925, Alves & Cia, Eça de Queiroz (1845-1900), conta a história de Godofredo da Conceição Alves, um indivíduo que se sentia pertencendo a essa tribo grotesca de maridos traídos, que não podiam entrar em casa sem que, de dentro, escapasse um amante. Razões para tal pensar não lhe faltavam, pois coube-lhe o azar de flagrar a caríssima consorte aos beijos com outro. E o que há de mais mirabolante nesse desagradável episódio é que o comborço,  Machado, era seu (dele) sócio.

Com ares de humilhado e ofendido, aos gritos exigiu que a esposa retornasse à casa de seu (dela) pai. Não havia mais motivos para viverem juntos. O casamento estava acabado.

José Maria de Eça de Queiroz (1845 - 1900)
Godofredo, como cabe a todo marido traído, ficou sem chão. A solidão era a recompensa que recebia depois de vários anos adorando aquela mulher pérfida! Simultaneamente, entrou em depressão, pensou em suicídio, a vida tinha perdido o sentido, era um homem derrotado. Mas, seja porque o caso não era para tanto, seja porque foi tomado por falta de coragem, desistiu desse plano estapafúrdio. E, como se o desgosto não fosse o suficiente, recebeu a visita de Neto, o pai da traidora. Diante do sogro discursou, fez exposição de motivos, quase exigiu solidariedade. O velho, conhecedor desses rompantes pouco inteligentes, ouviu a peroração durante algum tempo. Em dado momento, tomou a palavra e rebateu os argumentos do genro com inúmeras considerações sobre a aventura humana. Tergiversando, mostrou que a situação não era propícia para rompantes. Por fim, fez o Godofredo perceber que a sua filha, em razão dos acontecimentos, ficara desamparada e que a sociedade logo saberia dos detalhes, um escândalo sem proporções. Talvez por cansaço, talvez porque viu nas palavras do sogro uma ameaça, Godofredo aceitou pagar uma mesada à esposa, a título de compensação pelo rompimento matrimonial. 

Nos dias seguintes, a agonia de Godofredo se intensificou. Depois de muito pensar, resolveu que a situação assaz vexaminosa exigia uma atitude enérgica. Disposto a lavar a honra com sangue, imaginou um duelo. Para que isso se concretizasse, enviou um bilhete ao Machado exigindo um encontro para resolver a pendência. Frente a frente, os dois homens tiveram dificuldades para conversar. No início. Logo esse embaraço foi superado. As condições propostas pelo marido ofendido para dar um término à questão foram rechaçadas. Godofredo ficou falando sozinho.

A multiplicidade de erros não terminou com esse fracasso. Godofredo foi pedir conselhos ao Medeiros e ao Carvalho, velhos confrades de pândega e negociatas. Evidentemente, eles se solidarizaram. Era uma lástima. No entanto, consideraram que um duelo de morte configurava um evidente exagero. Não lhes cabia servir de testemunhas em uma maluquice de tal porte. A diplomacia poderia evitar os excessos, sugeriram ao desconsolado companheiro. E, com tal argumento, se autonomearam embaixadores. Resultado: foram ter algum tipo de entendimento com os representantes da causa de Machado. Diversas reuniões ocorreram, onde se discutiu as versões do caso, o teor das cartas que os amantes trocaram entre si e um sem fim de detalhes. Era necessário esclarecer os acontecimentos.

Enquanto isso, Godofredo sofria as dores do isolamento. Ao colocar a solução do caso nas mãos dos amigos, perdeu as rédeas da situação. Nesse momento, resta ao leitor observar com mais atenção o protagonista do dramalhão e concluir que a tolice é a sua (dele) característica mais marcante. Quando os representantes plenipotenciários da demanda lhe informaram que as partes, durante as conversações, haviam concluído que o caso todo estava longe de ser uma traição no sentido mais vil do ato e que fora apenas um “namorico”, Godofredo não se indignou contra tal resolução. Fez as reclamações de praxe, mas, no intimo, já estava convencido de que a fúria fora debelada. Estava manso como um cordeiro. Precisava, apenas, de um incentivo para deixar de lado o desfecho trágico. Aceitou, resignadamente, as recomendações de fazer uma viagem durante alguns meses, deixando que o tempo depurasse as tempestades e trouxesse de volta os dias de sol.

O narrador dessas peripécias poderia encerrar o caso com esse apaziguamento. Afinal, todos se salvaram. Quer dizer, nem todos. Godofredo ao voltar, viu a esposa algumas vezes na rua. Houve constrangimento, mas também houve o despertar da velha chama, brasa dormida, fagulha que estava escondida entre as cinzas daquele incêndio nefasto. Não lhe foi possível resistir. Tolice por tolice, concluiu que um leito aquecido é o melhor remédio para as noites frias. Reatou. Colocou ordem na sua vida desregulada.

Como se não bastasse, também fez as pazes com Machado. Deixou a cólera no passado – embora, vez ou outra, tivesse algum ataque de ciúme ou lembrasse da ignomínia. Por fim, voltou a receber o rapaz em sua (dele) casa, como se fosse um integrante da família.

Na cena final, muitos anos depois, os amigos confraternizam:

Bate então no ombro do seu amigo, lembra-lhe o passado, diz-lhe:

– E nós que estivemos para nos bater, Machado! A gente em novo sempre é muito imprudente... E por causa de uma tolice, amigo Machado!

E o outro bate-lhe no ombro também, responde sorrindo:

– Por causa duma grande tolice, Alves amigo.


Alves & Cia, mais do que uma farsa burguesa, revela, com doses homéricas de ironia e cinismo, o quão tola pode ser a vida de quem se deixa levar pelas aparências e pelo ordenamento social.

Concluída a leitura do livro, cabe esclarecer que a delegação presidida por Medeiros e Carvalho não era gratuita. Eles não mediram esforços para impedir o duelo porque estavam legislando em causa própria: para qualquer um dos dois seria uma amolação ter que se bater em armas contra algum marido enlouquecido. Que Godofredo tivesse sido premiado na loteria dos traídos, vá lá, mas dar (mau) exemplo aos outros não era conveniente a ninguém. Como disse Carvalho, a determinada altura da narrativa: Homem, isto melhor é a gente divertir-se por sua conta, que os outros se divirtam à nossa custa...


TRECHO ESCOLHIDO

 

Era uma longa história, que o Medeiros contou com detalhes, gozando. Tinham falado ao Machado, que lhes prometeu que dois amigos dele estariam às quatro horas em casa dele, Medeiros. E pontualmente apareceram lá o Nunes Vidal, que ele conhecia perfeitamente, rapaz de experiência em coisas de honra, e o Cunha, o Albertinho Cunha, que pouco falava, estava como um comparsa. Entraram, cumprimentos, etc., tudo muito grave, e toda a amabilidade. Depois vieram à questão: o Nunes Vidal declarou logo que, em princípio, o sr. Machado estava pronto a aceitar todas as condições, todas quaisquer que fossem, propostas pelo sr. Alves. Inteiramente todas. Mas que ele, Nunes Vidal, e ali o seu amigo Cunha, entendiam que o dever das testemunhas, num conflito, era, antes de tudo, procurar paz e conciliação. E que portanto, se em princípio o seu constituinte, o sr. Machado, por um excesso de pundonor e orgulho, estava disposto a deixar-se matar, eles, suas testemunhas, que tinham tomado nas suas mãos os interesses dele, estavam ali, e tinham vindo ali, não só para procurar, tanto quanto possível, o evitar que sucedesse uma desgraça no campo ao seu amigo, mas mesmo que em volta do nome dele se fizesse um escândalo, que o prejudicaria...

 

– Tudo isso bem dito – acrescentou o Medeiros –, tudo muito bem explicado, com bonitas palavras... Sério, gostei do Vidal.

 

– Ah, rapaz de muito talento – murmurou o Carvalho.

 

Enfim, Vidal terminara por dizer, que tudo bem considerado, não julgavam que houvesse motivo para um duelo grave à pistola.

 

Outra vez a falta de motivos. Godofredo despropositou:

 

– Com mil diabos, então que queria esse asno que o Machado me tivesse feito de pior?

 

Com um gesto, Medeiros conteve-o.

 

– Não te exaltes, não te exaltes... Deixe estar que lá lhe disse tudo. O Vidal é muito esperto, mas olha que não me calei. Pergunta ao Carvalho...

 

– Andaste como um rábula – disse Carvalho.

 

– Mas então que diabo disse o Vidal? – exclamou ainda Godofredo.

 

O Vidal dissera que não havia motivo de sangue, porque o que se passara entre Machado e a senhora fora um simples namoro...

 

Godofredo teve um gesto furioso. E o Medeiros, erguendo-se também:

 

– Não te exaltes, escuta. Eu lá lhe disse tudo. Contei-lhe do modo como o apanhaste, e a carta, meu riquinho que tarde a de ontem, e o resto. Apresentei-lhe todos os dados para o convencer que o adultério era completo... Não é verdade, Carvalho?

 

– Todos.

 

– Disse-lhe claramente: meu constituinte, o nosso amigo Alves, é, em toda a extensão da palavra, um marido que... Enfim, necessita reparação. Não é verdade, Carvalho?

 

Carvalho fez um gesto de assentimento.

 

– Mas o Nunes provou-me que não. Tinha lido as cartas ele também, o Machado contara-lhe tudo, e depois de ter combinado, pensado, chegara a este resultado: que não passara de namoro.