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segunda-feira, 31 de março de 2014

HAVANA PARA UM INFANTE DEFUNTO



As mulheres e o cinema são os temas principais do divertidíssimo bildungsroman (romance de formação) Havana para um Infante Defunto, escrito por Guillermo Cabrera Infante (1929-2005). Movido por uma força intima avassaladora, o dublê de narrador e protagonista – homem inominado que nasceu para se apaixonar por todas as mulheres do mundo – utiliza-se do cinema como uma desculpa para fundamentar a própria educação sentimental e sexual. Ou melhor, para elaborar o discurso do amor e suas formas e das formas do meu amor – mesmo que sejam formas vazias de amor.

Com um sorriso maroto, desses que querem dizer tudo e nada ao mesmo tempo, ele não poupa esforços para repartir com o leitor um leque de lembranças sentimentais e sexuais, ocorridas entre o final da década de 1940 e a metade da década de 1950, em Havana. Com elegância estilística e riqueza vocabular (nítida herança barroca), como se fosse uma espécie de Casanova alfabetizado, multiplicando os jogos de palavras, trocadilhos, aliterações, paronomásias e ecolalias, não se constrange em revelar os fracassos românticos, as brochadas afetivas, os enganos amorosos.

Havana para um Infante Defunto inicia na infância do narrador/protagonista e vai se deslocando lentamente para a vida adulta. Sempre escorado em lembranças sexuais, o texto não se constrange em revelar, na transição entre a adolescência e a vida adulta, algumas intimidades, inclusive que nunca me senti sozinho com minha mão. Nesse ritmo, as fantasias masturbativas – que são anteriores às experiências sexuais efetivas e afetivas – ficcionalizam os dias, antecipam o momento em que o imaginário se transformará em ação concreta. Ver (imaginar) o corpo das mulheres prevê o deslumbramento e o gozo.

O narrador/protagonista, em algum momento do texto, utilizando-se da didática erótica, explica ao leitor que a pornografia de verdade é esse estranho mecanismo literário que entra pelos olhos (ou pelos ouvidos; mais, mais tarde), atua sobre a mente e faz pulsar o púbis, produzindo ereções, titilando as tetas e estimulando o clitóris. Entre a redução dos elementos amorosos e a multiplicação das sensações desconhecidas, o narrador/protagonista caminha na direção do prazer.

Na etapa seguinte dessa crônica de amores (talvez un chant d'amour, talvez un cunt d'amore), o contato físico se concretiza, a carne e o desejo se confundem com a vertigem e o encantamento. Foi com ansiedade e tesão que o narrador/protagonista percebeu que era a temporada de tornar o cinema um campo de caça. Em intermináveis tardes, assistindo filmes de segunda classe, muitas mulheres se tornam suas professoras no curso básico de sexo. O aprendizado foi lento e agradável, bolinações pouco inocentes, beijos ardentes que culminaram com um grande evento, desses que aproximam o entusiasmo em loucura: uma desconhecida o masturbou no escurinho do cinema.

Rua de Havana, nos anos 50
Nem tudo foram glórias nesse estágio amoroso. Alguns constrangedores momentos se fizeram presentes. Levado por alguns amigos, pois já era hora de conhecer o verdadeiro sexo, o narrador/protagonista fracassou em um prostíbulo (Não deixe meus amigos saberem, por favor.).

Julia Esteves, antecessora de Julieta dos Espíritos, responsável pelo desvirginamento do rapaz, era casada e tinha um olhar cor de caramelo claro. Depois de algumas pequenas dificuldades, forneceu inesquecível pós-graduação nas artes amatórias para um Romeu paupérrimo - que só podia oferecer o seu pau para toda obra obscena. Ou melhor, milhares de sacanagens, sensações sequer imaginadas antes do abrir das portas do jardim de prazeres – afinal, como disse a bella donna, desejo em forma de mulher, o amor não tem moral. As intimidades foram seguidas por crescente entusiasmo. Questões menores, alguns hiatos e entreatos, variações do coitus interruptus, impediram que o relacionamento atingisse o ápice do contentamento. Tempo suficiente para sonhar com outras guloseimas. Como o acaso amoroso sempre vem em socorro do amante fiel, bastou ouvir as palavras mágicas, mantra capaz de fazer a carne tremer e derreter instantaneamente, Já tou molhadinha, para mostrar labor e louvor na obtenção do diploma summa cum laude na cama (volúpia e orgasmo entrelaçados pelo ardor, ar e dor, quase amor, a sufocar delírios, lírios a escorrer pelo rio sexual, um manancial interminável de delícias).

Em paródia do vim, vi e venci, o corpo de Julieta se transforma no mais glorioso dos campos de batalha. Foi lá que, na primeira vez, a espada trespassou (três vezes!) as fronteiras do encanto. Foi lá que o rapaz construiu um dístico comportamental: Hoje, para mim, quanto mais dissoluto for, melhor; como a liberdade começa na libertinagem, proclamo indecência ou morte!

O bom da vida é a certeza de que, em algum momento, o que é bom acaba. Simples assim. Rompido o lacre, o corpo e o desejo se transformam em domínio público. Leva quem chegar primeiro. E nem precisa embrulhar. Talvez isso explique porque o narrador se transforma em homem casado, desses que preferem construir uma história fora do contexto familiar. As aventuras extraconjugais espelham uma forma de resistência contra a esposa – que logo fica grávida e que é citada no texto como se fosse um peso a ser carregado por Sísifo. Cinemas, ruas, praças, motéis – nada escapa do território demarcado pela imensidão da devassidão. A educação erótica se multiplica em miríade de lições, corpos que são fu(n)didos por outros corpos, alquimia divina, explosão de sabores e saberes, contentamento.

O amor possessivo se manifesta como uma espécie de alucinação. Margarita Del Valle (ou Violeta ou qualquer que seja o seu nome, pois nomes são apenas referências passageiras), mais do que a fonte de regozijo sexual, sinaliza para o desmoronamento das certezas, para as vertigens do abismo. Sob a égide de Odisseus, o narrador/protagonista foi capaz da determinação necessária para resistir ao canto da sereia (música que conduz a vítima aos confins do inferno). Infelicidade é o outro nome da ausência.

Relato íntimo das dificuldades econômicas e sociais da geração que antecedeu a Revolução Cubana de 1959, momento em que o narrador/protagonista tenta mimetizar os sons, as cores, os cheiros e os sentimentos do povo cubano, Havana para um Infante Defunto, mais do que um relato sobre a virilidade e o delírio cinematográfico, é uma divertida leitura fescenina – que faz o leitor dizer, depois da última página, foi um lazer (repetindo o trocadilho involuntário de uma das personagens do romance).

segunda-feira, 24 de março de 2014

PEDALANDO COM MOLIÈRE



O núcleo da tragicomédia O Misantropo (Le Misanthrope), escrita em 1666 pelo mais importante dramaturgo francês, Molière (nascido Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673), aborda o horror produzido por pequenas vilanias, pela mesquinhez e pela vaidade excessiva.  
 
O filme Pedalando com Molière (Alceste à Bicyclette. Dir. Philippe Le Guay, 2013), penetra no interior dessas trevas. Mais do que um exercício de metalinguagem (uma história teatral contada pela ótica do cinema), mostra a tumultuada luta de egos entre dois atores, Serge Tanneur (Fabrice Luchini) e Gauthier Valonce (Lambert Wilson).

Serge se aposentou do teatro e do cinema, pois não acredita mais no ofício artístico: não há amizade, nem fidelidade, nem lealdade. Depois de uma crise de depressão, mudou-se para Île de Ré (ilha costeira francesa, situada no Oceano Atlântico, frente a La Rochelle, no Departamento de Charente-Maritime). Escolheu viver sozinho, sem amigos, em uma casa que está em péssimas condições. Quer manter o mínimo contato com o resto do mundo.

Gauthier, estrela do seriado televisivo Docteur Morange, está em crise artística. Não satisfeito em ser popular, quer agregar qualidade intelectual à sua vida profissional. Ambiciona montar O Misantropo.

Gauthier vai visitar Serge e faz o convite. Recebe um sonoro não como resposta. Ou melhor, aceita uma proposta insólita: ensaiar a peça durante cinco dias. Depois, se tudo correr bem, talvez Serge aceite participar do projeto.  
 
O narcisismo dos atores – que desconhecem tudo o que não se refere ao próprio umbigo – se pronuncia no momento da escolha dos personagens. Gauthier quer interpretar Alceste. Serge recusa Philinte. Depois de alguma discussão, o consenso surge quando concordam alterar os papeis – embora seja visível que Serge, ao contrário de Gauthier, conhece o texto com grande profundidade.

Gauthier, vaidoso, gosta de interagir com outros seres humanos. Hospedado no Hotel Le Clocher, conhece a sobrinha da concierge: uma atriz iniciante no cinema pornô. Esse momento serve de contraponto entre a amoralidade da modernidade e as regras morais do passado – espelhadas por O Misantropo.

Em determinado momento, o ensaio precisa ser interrompido. Serge, que tem mais de 50 anos, quer fazer uma vasectomia. Diz que não quer se arriscar a ter outros descendentes. Ou seja, considera o único filho um ingrato, pois não fala com ele a mais de dez anos. Como decide ir de ônibus, acaba encontrando Francesca (Maya Sansa), que lhe oferece uma carona. Aceita o convite, as desculpas (ela tinha sido grosseira com os dois atores) e estabelece um fiapo de relacionamento com a bela italiana. No hospital, como uma criança que olha a vitrine de uma loja de doces, desiste da operação.

Nos intervalos do ensaio, Francesca torna-se uma companhia frequente. Embora ela esteja se mudando para a Itália, quer repartir seus últimos momentos com os dois atores. Serge, de uma maneira ou de outra, começa a alimentar algum tipo de esperança – que é desfeito no momento que Gauthier lhe confessa ter ultrapassado uma das barreiras fundamentais da confiança entre dois homens que pretendem dividir o palco.

 O título do filme está relacionado com dois momentos emblemáticos. O primeiro, quando os dois atores repassam o texto em um passeio de bicicleta. O segundo é mais decisivo. Gauthier está em uma festa para promover a peça. Serge, vestido de Alceste, vai até lá de bicicleta. Informa que não aceita alternar os papeis, quer ser – sempre! – Alceste. Isso gera uma grande confusão e os dois atores trocam murros. Depois de separados, Serge – ou melhor, Alceste –, sem perceber que está confundindo a situação teatral com a situação “real” (que é também ficcional), discursa: Os tempos em que vivemos são tão perversos que devo me afastar da companhia dos homens. A dor é grande demais para suportar. Retiremo-nos desta selva, deste lugar cruel, já que vocês, homens, vivem como lobos. Traidores, vocês não me verão entre vocês um só dia.

As cenas finais espelham a ironia com que a vida celebra a arrogância humana.  Serge, um Alceste extemporâneo, mais uma vez sozinho, vai até a praia e recita um trecho de O Misantropo. Gauthier, de volta a Paris, consegue montar o espetáculo. Na noite de estreia, sala lotada. Em uma das cenas mais intensas da peça, esquece o texto!

sexta-feira, 21 de março de 2014

FLORES RARAS



O filme é bom – o livro é melhor. Embora essa afirmação não seja uma surpresa na discussão que contrasta cinema com literatura, Flores Raras (Dir. Bruno Barreto, 2013) consegue – qualitativamente – diminuir a distância entre texto e imagem.

Com nível de produção internacional, o longa-metragem baseado no texto biográfico Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, e centralizado no triângulo amoroso protagonizado por Elizabeth Bishop (1911-1979), Mary Stearns Morse (1914-2002) e Maria Carlota (Lota, Lotta) Costallat de Macedo Soares (1910-1967), consegue romper com a proposta de entretenimento de terceira classe que caracteriza o cinema brasileiro contemporâneo. Um dos “achados” que contribuiu para concretizar essa proeza foi a ideia de utilizar One Art como fio de ligação entre o início e o fim do filme – artifício narrativo que estabelece cadência de grande beleza – e serve de espelho, em diversos momentos, para outros poemas: Sleeping on the Ceiling, The Shampoo, Insomnia, At the Fishhouses. Outro diferencial significativo é a utilização do idioma inglês em 90% da narrativa – além de estabelecer o estranhamento como ferramenta de intervenção artística, prepara o filme para o mercado internacional.


ONE ART

 

The art of losing isn’t hard to master

so many things seem filled with the intente

to be lost that their loss is no disaster.

 

Lose something every day. Accept the fluster

of lost door keys, the hour badly spent.

The art of losing isn’t hard to master.

 

Then practice losing farther, losing faster:

places, and names, and where it was you meant

to travel. None of these will bring disaster.

 

I lost my mother’s watch. And look! my last, or

next-to-last, of three loved houses went.

The art of losing isn’t hard to master.

 

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,

some realms I owned, two rivers, a continent.

I miss them, but it wasn’t a disaster.

 

– Even losing you (the joking voice, a gesture

I love) I shan’t have lied. It’s evident

the art of losing’s not too hard to master

though it may look like (Write it!) like disaster.  



O principal cenário da narrativa é a fazenda Samambaia, em Petrópolis, uma espécie de Paraíso terrestre. Nesse lugar as mulheres usam roupas masculinas, fumam em quantidade industrial, ficam bêbadas e praticam sexo umas com as outras. Lota (Glória Pires) é o estereotipo da mulher que se sente bem nesse tipo de situação – com um agravante: é absolutamente insensível para quaisquer sentimentos que não sejam os próprios. Em contrapartida, Mary  Stearns Morse (Tracy Middendorf) representa a porção “mulherzinha”, a guardadora da santidade do lar, a responsável pela educação dos filhos. Quando Elizabeth Bishop (Miranda Otto) entra em cena, reencenando o mito do Anjo da Anunciação, ocorre a ruptura da tranquilidade familiar.

Diante da tragédia, Mary, a parte mais fraca do triângulo, fica quase sem escolhas. Para não perder tudo, aceita viver à margem de uma história de amor que poderia ser a sua. Como compensação por ter sido excluída da cama de Lota, adota uma menina.

Selvagem paixão acomete a fêmea alfa e a intelectual melancólica, insegura e carente. Lota de Macedo Soares explode rochas, constrói um estúdio para a nova amante (a quem chama de “Cookie”) e acalma Mary. Elizabeth Bishop, maravilhada por se tornar o centro das atenções, observa os costumes brasileiros, escreve poemas e se embebeda toda vez que alguma coisa a desagrada. Eu não estou bêbada, só estou chorando em inglês, declara poeticamente a vencedora do Prêmio Pulitzer de 1956. Em outra oportunidade, o discurso é mais explicito: Eu não bebo porque as coisas vão mal. Eu quero beber a cada minuto de cada dia. As coisas indo mal são só desculpas para ficar bêbada.

 Na medida em que o tempo passa, as mudanças começam a surgir. A história de amor se transforma em pesadelo. O incontornável desconforto se instala, junto com o abandono. As perigosas ligações políticas entre Lota e Carlos Lacerda servem de desculpas para azedar o relacionamento. O mal-estar se multiplica com a construção do Parque do Flamengo (projeto em que Lota canalizou todas as suas energias) e o golpe militar de primeiro de abril de 1964. Enquanto a brasileira se mostra simpatizante ao novo governo, a estadunidense não compreende como é possível aceitar passivamente a perda das liberdades individuais.

A escritora que disse que Eu tenho um compromisso com o pessimismo, assim não fico desapontada, um dia se cansa de brincar de namoradinha e volta para Nova York. Não é a ruptura definitiva, mas é o início do fim. Em algumas situações, a forma mais intensa do amar está em compreender que não há mais amor.  


Cinema dramático, Flores Raras celebra – com sutileza e delicadeza – os relacionamentos tumultuados e os finais infelizes. Na última cena, no Central Park, Elizabeth Bishop, na companhia de seu grande amigo, o poeta Robert Lowell (Trent Williams), percebe que the art of losing’s not too hard to master / though it may look like (...) like disaster (a arte de perder não chega a ser mistério / por mais que pareça [...] um desastre).

UMA ARTE

(tradução informal)

 

A arte de perder não é nenhum mistério.

Tantas coisas contém em si o acidente 

de perdê-las, que perder não é um desastre.

 

Perca um pouco a cada dia. Aceite o susto

de perder as chaves, a hora gasta inutilmente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Depois perca mais rápido, com critério:

lugares, nomes, as escalas da viagem

que não fez. Nada disso é um desastre.

 

Perdi o relógio de mamãe. Ah, e nem quero

lembrar a perda de três ótimas casas.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Perdi duas cidades lindas. E um império

que era meu, dois rios e mais um continente.

Tenho saudade dele. Mas não é nenhum desastre.

 

Mesmo perder você (a voz, os gestos que eu amo) não muda nada.

Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério

Por mais que pareça (escreva!) um desastre.