Páginas

terça-feira, 31 de outubro de 2017

OITO POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (31/10/1902 – 17/08/1987)







MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


 AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.




MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.



POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.





 QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.




NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra



NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
Não se mate




sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A JACA DO CEMITÉRIO É MAIS DOCE


Santiago Hernández, protagonista do romance A Jaca do Cemitério é Mais Doce, de Manuel Herzog, nasceu tragicômico. Semelhante ao bailarino que tropeça durante o clímax da dança e beija o solo gelado do salão, causando risos e piadas nos demais convidados ao convescote, ele poderia cantar os versos de uma velha canção, Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso / E hoje descrente de tudo me resta o cansaço / cansaço da vida, cansaço de mim.

Pobre destino de alguém que, por vias transversas, lembra outro indivíduo de nome Santiago. Em comum há a suspeita de terem sido traídos. Ou melhor, sentem que as suas entranhas estão sendo corroídas pelo ácido que surge do imaginar que a musa das emoções mais profundas em algum momento trocou humores com outro homem. A possibilidade de ela ter gostado/gozado se transforma em um sentimento insuportável. 

Indícios do mal estavam inscritos no doce corpo doce de Natércia, anagrama de Caterina, nome traduzido de sua bisavó, Katarzyna Gralówna, conhecida como a Polaca, e que exercia honestamente (na medida do possível) a profissão mais antiga da humanidade no porto de Santos. Também a mãe de Natércia, Delfina, se perdeu nos braços de um pernambucano. Mulher sem marido acaba caindo na vida. Não foi esse o casoembora  o pecado não se resuma em apenas seis letras desemparelhadas. Com tais antecedentes, como ignorar os fatos?

 É um cheiro forte, (...) o amor em excesso chega a feder, feito jaca, escreve o narrador – que em muitos momentos quase se confunde com Santiago. Não seria surpresa se isso fosse, posto que Santiago descreve as suas desventuras em um diário – que, em dado momento, aparece nas mãos de Marcleide, a empregada doméstica. A isso também se acresce, durante as 135 páginas do livro, um número bastante significativos de duplos. Ou de sombras. Sobras de personagens que se desdobram em outros, como se quisessem confundir ou cindir a narrativa.

Duplos são esquizofrênicos. Ou será que os esquizofrênicos é que são duplos? Algumas perguntas não possuem resposta. Há particularidades em cada desvario, a mente adora se desviar da linearidade, o fascínio pelos cenários desconhecidos, o jogo tenso, teso, entre o yin e o yang, as duas faces da mesma moeda, elementos que se desdobram em espiral, ninguém sabe onde começa ou termina, fita de Möbius. Talvez seja por isso, em dado momento, com a pompa e a circunstância que é devida ao evento, que adentra ao proscênio a figura peculiar de Germano Quaresma, doppelgänger do escritor Manuel Herzog, e que, não satisfeito em embaralhar as cartas desse jogo sem regras, se transforma no investigador de polícia José de Alencar Segundo. Nem mesmo Simão Bacamarte (que não é personagem dessa história!) seria capaz de desatar essa maçaroca. Como se não bastasse, nesse mundo repartido entre o corpo e o espectro, Santiago acumula a tristeza na companhia de dois gatos: Chantilly (branco) e Morcego (preto).

Com as mulheres, há uma ligeira misoginia. Ligeira? Gritos e pontapés metafóricos caracterizam a relação com Marcleide. Mitiko e Cremilda são válvulas de escape sexual. A única que obteve atenção e devoção foi Natércia. Feito um cachorrinho de estimação, ele pulou, deitou, se fingiu de morto, correu atrás de gravetos, acuou de felicidade. E, obviamente, pagou contas. Para que tamanho esforço?

Vivaldo, um vivaldino que havia sido expulso da polícia, estava namorando Natércia. Foi isso, mas com outras palavras, e bem menos educadas, o que Cavalo-do-Índio segredou-lhe em momento de crueldade com o colega de serviço. Não há cristão (ou muçulmano ou budista ou ateu ou...) que consiga suportar o peso de um bom par de chifres. A masculinidade sofre desses desvios de conduta. E o soco na cara do comborço foi revidado com um tiro na perna – a marca da injuria passou a ser carregada por todo o sempre. Então, Santiago (que nunca foi santo), alegando defesa da honra, contrata bandido de plantão para liquidar a questão. A morte de Natércia foi dano colateral, estava junto com o canalha, o sangue dos dois se uniu no asfalto e isso se agregou ao sentimento de culpa.

Outros tantos eventos se seguiram. Alguns, importantes. Outros, nem tanto. A existência é confeccionada com minúcias, colcha de retalhos com as sobras do trivial. E mesmo que os descrentes garantam que a vida, qualquer vida, se parece com todas as outras vidas, imagem multiplicada no espelho, não há como negar corporeidade ao espetáculo que é contado, descrito, narrado como se fosse original, sem igual.

O homem perde tudo, até a dignidade, como os mendigos, mas a curiosidade fica, é uma praga, diz Santiago em algum momento do livro, como se estivesse a purgar os pecados, como se estivesse arrependido de entregar ao leitor todos os detalhes macabros de sua vida, principalmente a ilusão patética de desmembrar lentamente o cadáver de Natércia para alimentar a composteira. Na impossibilidade física de realizar a vingança mesquinha, transfere o ódio para um manequim (mais um duplo!). Só falta nos dizer que tudo (inclusive a vida) é merda e à merda todos retornaremos.

Dialogando com Machado de Assis e Nelson Rodrigues (um pouco menos), A Jaca do Cemitério é Mais Doce aborda – de maneira pouco usual a perda da realidade. O humor amargo, pouco espesso, agarra o leitor e embriaga.    

terça-feira, 17 de outubro de 2017

A ARTE EM QUARENTA FRASES



René Magritte

 – A arte é o remédio e o melhor deles. (Machado de Assis)

– A arte existe para que a verdade não nos destrua. (Friedrich Nietzche)

A arte é o espelho e a crônica da sua época. (William Shakespeare)

– A arte diz o indizível; exprime o inexprimível; traduz o intraduzível. (Leonardo da Vinci)

Só o amor e a arte tornam a existência tolerável. (W. Somerset Maughan)

– A arte só oferece alternativas para quem não está prisioneiro dos meios de comunicação de massa. (Umberto Eco)

– A tarefa atual da arte é introduzir o caos na ordem. (Theodor Adorno)

– Não existe obra de arte sem a colaboração do demônio. (Andre Gide)

Marcel Duchamps
 – Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno (Antonin Artaud)

– Não consigo imaginar como alguém que não escreve, pinta ou compõe pode passar pela vida (Graham Greene)

Não existe meio mais seguro para fugir do mundo do que a arte, e não há forma mais segura de se unir a ele do que a arte. (Johann Wolfgang von Goethe)

Os espelhos são usados para ver o rosto; a arte para ver a alma. (George Bernard Shaw) 

– A arte começa onde a imitação acaba. (Oscar Wilde)

A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo. (Vladimir Maiakóvski)

– Toda arte é autobiográfica: a pérola é a autobiografia da ostra. (Federico Felini)

Arte pra mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte pra mim é missão, vocação e festa. (Ariano Suassuna)

– O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar. (Fernando Pessoa)

Salvador Dali
 – Em arte, procurar não significa nada. O que importa é encontrar. (Pablo Picasso) 

A arte é um resumo da natureza feito pela imaginação. (Eça de Queiroz)

É na arte que o homem se ultrapassa definitivamente. (Simone de Beauvoir)

– Se mais de 10% da população gostar de um quadro, ele deveria ser queimado. Deve ser muito ruim. (George Bernard Shaw)

– O segredo da grande arte é ser tão pessoal e estreita que, pela força do seu exclusivismo, fala com o mundo inteiro. (Paulo Francis)

– A massificação procura baixar a qualidade artística para a altura do gosto médio. Em arte, o gosto médio é mais prejudicial do que o mau gosto... Nunca vi um gênio com gosto médio. (Ariano Suassuna)

É preciso ser um homem do seu tempo e um artista póstumo. (Jean Cocteau)

– A vanguarda de ontem é o chique de hoje e o clichê de amanhã. (Richard Hofstadter)  

– Qualquer idiota é capaz de pintar um quadro. Mas só um gênio é capaz de vendê-lo. (Samuel Butler)

Pablo Picasso
 – As obras de arte dividem-se em duas categorias: as de que gosto e as de que não gosto. Não conheço outro critério. (Anton Tchekhov)

– A arte de interrogar não é tão fácil como se pensa. É mais uma arte de mestres do que de discípulos; é preciso ter aprendido muitas coisas para saber perguntar o que não se sabe. (Jean-Jacques Rousseu) 

O amor e a arte não abraçam o que é belo, mas o que justamente com esse abraço se torna belo. (Karl Kraus) 

Todo o segredo da arte é talvez saber ordenar as emoções desordenadas – mas ordená-las de tal modo que se faça sentir ainda melhor a desordem. (Charles Ramuz)

As obras de arte são de uma solidão infinita: nada pior do que a crítica para as abordar. Apenas o amor pode captá-las, conservá-las, ser justo em relação a elas. (Rainer Maria Rilke) 

A arte é a contemplação; é o prazer do espírito que penetra a natureza e descobre que a natureza também tem alma. (Auguste Rodin)

De todas as coisas humanas (...) a única que tem o seu fim em si mesma é a arte. (Machado de Assis)

Francisco de Goya
 – Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver. (Bertolt Brecht)

A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são. (Fernando Pessoa)

Toda a arte e toda a filosofia podem ser consideradas como remédios da vida, ajudantes do seu crescimento ou bálsamo dos combates: postulam sempre sofrimento e sofredores. (Friedrich Nietzsche)

– A arte abstrata é um produto dos incompetentes, vendida pelos inescrupulosos e comprada pelos imbecis. (Al Capp)

A vida é a arte de tirar conclusões suficientes a partir de premissas insuficientes. (Samuel Butler)

– A lei seca da arte é esta: "Ne quid nimis”, nada além do necessário. Tudo o que supérfluo, tudo aquilo que podemos suprimir sem alterar a essência é contrário à existência da beleza. (José Ortega y Gasset)

Toda a arte é completamente inútil. (Oscar Wilde)

Vincent van Gogh


segunda-feira, 16 de outubro de 2017

BLADE RUNNER 2049



Morrer pela causa certa é a coisa mais humana que podemos fazer, diz a líder dos replicantes rebeldes para o também replicante Joe (Officer KD6-3.7), em cena emblemática de Blade Runner 2049 (Dir. Denis Villeneuve, 2017), uma espécie de sequência do clássico Blade Runner (Dir. Ridley Scott, 1982), que, por sua vez, é vagamente inspirado na narrativa Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip Kindred Dick (1928-1982).

O paradoxo se manifesta instantaneamente. Replicantes são androides, ou melhor, são seres bio-humanos, que evoluíram dos robôs da série Nexus.  Eles imitam os humanos, e foram criados para, grosso modo, servir de mão de obra descartável. Cabe-lhes obedecer, sem colocar em dúvida as tarefas que recebem – nada muito distante da situação vivenciada pelos escravos entre os séculos XV e XVII.  

A existência de Joe (Ryan Gosling) obedece a esse postulado. Encarregado pela polícia de Los Angeles de caçar e exterminar alguns tipos de replicantes, frutos de uma tiragem mais recente e que estão causando “problemas”, ele procura cumprir objetivamente todas as missões que lhe são designadas. No entanto, se há bastante movimento na vida profissional de Joe, no aspecto particular impera o vazio – exceto nos momentos em que ele interage com a imagem de Joi (Ana de Armas), uma espécie de namorada virtual (e que só existe na forma holográfica).

Ocorre um curto-circuito emocional depois que Joe mata um replicante, Sapper Morton (Dave Bautista) – e em vários níveis. Dentro de uma caixa, que estava enterrada perto de uma árvore, são encontradas várias informações sobre as mutações que estão ocorrendo com os replicantes – e que, de uma forma ou de outra, colocam em risco o poder humano. Como ocorre nas sociedades totalitárias, não há espaço para a diversidade. Torna-se necessário eliminar quaisquer focos de resistência ao padrão unificador.

Essa mudança de parâmetros coloca sob os holofotes uma questão essencial. Os replicantes não possuem subjetividade. Eles não compartilham daqueles elementos singulares que distinguem os indivíduos (valores, crenças, opiniões, lembranças). Então, como explicar a rebelião que está em curso? Como entender que alguns replicantes tenham adquirido consciência de que a vida está revestida de um valor inestimável? Máquinas são máquinas – exceto nos casos em que a inteligência artificial seja autônoma para produzir um novo nível de inteligência.

(Nota 1: quem discordar dessa tipo de pensamento deve ler Homo  Deus: uma breve história do amanhã, de Yuval Noah Harari, onde as previsões sobre a composição da sociedade futura são aterradoras.)


Simultaneamente, Joe recupera uma lembrança da infância. Um pequeno cavalo esculpido em madeira se transforma em uma espécie de “Madeleine” (tema proustiano) ou “Rosebud” (de Cidadão Kane. Dir. Orson Welles, 1941). Esse caso exemplar de autoengano se revela decisivo para o andamento narrativo. Aquele que deveria se comportar como inumano vê o passado relampejar diante de seus olhos como elemento primordial da existência. De maneira completamente fora do controle de seus fabricantes, o androide adquire consciência de está se tornando humano e que a sua vida – a partir desse instante – está em perigo.

Acrescenta-se o fato de que Joe não sabe (e não tem condições de saber) de que essa memória não é sua. Ela faz parte de um implante. Então, entre o acreditar que está destinado a executar uma tarefa singular para o destino de todos e, logo depois, se desiludir com a descoberta de que tudo o que acredita (e o motiva) é uma farsa, a vida de Joe se torna intensa, imensa, maravilhosamente preenchida por uma experiência real, verdadeira, humana. 
     

Em um mundo distópico, caracterizado por grandes espaços desertos, ruínas urbanas e grandes avanços tecnológicos, Blade Runner 2049 (assim como a versão de 1982) trava um diálogo constante com o faroeste – gênero cinematográfico especular/espetacular da colonização estadunidense e constantemente reproduzido por Hollywood. As cenas de ação do filme (tiroteios, lutas físicas) estão atreladas ao mito do herói e, consequentemente, ao maniqueísmo (a divisão entre o bem e o mal sempre foi a maneira mais fácil de relativizar qualquer ação humana). A vantagem de Blade Runner 2049 está exatamente em se afastar desse esquema dualista, através do desafio intelectual. As dúvidas que o filme suscita são mais interessantes do que as respostas que apresenta. 
 

 (Nota 2: não é necessário ver/rever o Blade Runner de 1982 para entender o de 2017. Também não é necessário ler o texto de Philip Kindred Dick.  São histórias diferentes, independentes, e que estão ligadas por fios muito tênues.)  



(Nota 3: uma das cenas mais divertidas do filme é completamente acessória. A pós-modernidade cinematográfica está representada na jukebox holográfica – a projeção luminosa de Frank Sinatra [ou de Elvis Presley e Marilyn Monroe] mostra que o passado constituí a sombra de que o homem e a máquina não conseguem se separar.)


sexta-feira, 6 de outubro de 2017

KAZUO ISHIGURO



Parte do mundo literário ficou surpreso com o anúncio que a Real Academia Sueca concedeu o Prêmio Nobel de Literatura 2017 para o mais britânico dos escritores japoneses, Kazuo Ishiguro. Entre os especialistas (em literatura, em bolsas de apostas), ele não era considerado como um candidato com chances reais de receber o título e, consequentemente, o dinheiro (cerca de R$ 3,5 milhões – que equivalem aos nove milhões de coroas suecas). 

 A família de Kazuo Ishiguro mudou-se para Inglaterra quando ele tinha cinco anos de idade. Por diversos motivos foram adiando a volta ao Japão e, por fim, adotaram a cidadania britânica. Ishiguro foi aluno das universidades de Kent e East Anglia (onde estudou “escrita criativa”, no curso ministrado por Malcolm Bradbury). A carreira literária iniciou com Uma Pálida Visão dos Montes, em 1982. Quatro anos depois, publicou Um Artista do Mundo Flutuante (vencedor do Whitbread Book of the Year, de 1986). Alcançou o sucesso com Vestígios do Dia, ganhador do Booker Prize, de 1989. A história de um mordomo que abdica da vida pessoal para poder servir melhor ao patrão e que, em dado momento, precisa conviver com mudanças sociais e econômicas que ele não entende ganhou adaptação cinematográfica (The Remains of the Day. Dir. James Ivory, 1993). O filme concorreu a oito Oscar, mas não recebeu nenhum. 

 Nos anos seguintes, Ishiguro publicou O Inconsolável (1995), Quando Éramos Órfãos (2000), Não Me Abandone Jamais (2005), Noturnos (2009) e O Gigante Enterrado (2015). Todos foram recebidos com algumas reservas. A guinada na direção da ficção científica em Não Me Abandone Jamais, que tem toques de “déjà vu”, pois trata de um mundo distópico onde as crianças e adolescentes são utilizados para abastecer o mercado de transplantes de órgãos, causou perplexidade no mundo literário inglês. A versão cinematográfica também não obteve grande sucesso (Never Let Me Go. Dir. Mark Romanek, 2010). 

O último livro publicado até o momento, O Gigante Enterrado, uma fantasia medieval, onde dragões se misturam com névoas do esquecimento e cavaleiros que serviram ao rei Arthur, seguiu o mesmo caminho, com resenhas bastante agressivas em virtude do tom ameno utilizado para narrar alguns momentos da identidade britânica. Para alguns críticos, o edulcoramento infantojuvenil do livro desconsidera as lutas entre anglos e saxões e a consequente violência que as caracterizou.

Evidentemente, todas essas observações se baseiam em critérios de análise literária. Para o público, muitas são irrelevantes – o leitor se satisfaz com uma trama envolvente. E poucos se interessam em discutir o estilo seco, exato, narrativamente distante que caracteriza a prosa de Kazuo Ishiguro. Simultaneamente, ninguém consegue negar a sua habilidade na carpintaria literária – e que está expressa na forma com que construiu contos e romances. Talvez seja essa a motivação que ele encontrou para abandonar o realismo tradicional e enveredar por outros gêneros narrativos (ficção científica, fantasia histórica). Enfim, Ishiguro mostra que não está preocupado em ser rotulado como um escritor de estilo definitivo. Ao contrário, quer explorar alternativas e, de certa forma, se divertir.


NOTA ADICIONAL


Kazuo Ishiguro é um dos expoentes do movimento inglês denominado World Fiction. Entre os anos 70 e 80, como consequência do pós-colonialismo, a Inglaterra abrigou muitos escritores oriundos de outras regiões do planeta. Os mais influentes escritores desse grupo são Hanif Kureish (pai paquistanês), Michel Ondaatje (nascido no Sri Lanka), Zadie Smith (mãe jamaicana), Monica Ali (nascida em Bangladesh), Salman Rushdie (de origem indiana), Doris Lessing (nascida na Pérsia), Vidiadhar Surajprasad Naipaul (nascido em Trinidad) e John Maxwell Coetzee (nascido em África do Sul). Embora muitos discordem, há quem considere que, nesse balaio de gatos, devem estar incluídos “os suspeitos de sempre”: irlandeses, galeses, escoceses, canadenses, australianos, etc.