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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLIII)



Deixei a janela do escritório aberta durante boa parte do dia. No final da tarde, ao fechá-la, descobri que não estava sozinho. Tinha uma joaninha grudada na cortina. Não tenho conhecimentos entomológicos para definir a taxonomia da minha visitante. Segundo os especialistas, há seis mil espécies, distribuídas em 350 gêneros, distinguíveis por padrões de cores e pintas, além de diversas características. E, sejamos objetivos, esse costume de querer conhecer a genealogia daqueles que frequentam a nossa casa está ultrapassado.

A presença do coleóptero exigia alguma atitude. Em um primeiro momento, imaginei que poderia fazer as honras da casa e convidar a visita para o chá (e uns biscoitos amanteigados). Mas, logo depois de consultar a Wikipédia, descobri que esses animais se alimentam basicamente de ovos e larvas de outros insetos – e isso eu não tinha para oferecer. Concluí que colocá-lo de volta na natureza provavelmente seria o mais apropriado. Isso precisaria ser feito com tato e discrição. A minha intenção nunca foi a de parecer rude ou mal-educado. A senhora minha mãe jamais me perdoaria se eu demonstrasse comportamento agressivo com quem estava tentando se hospedar no apartamento em que moro.

Antes de resolver o impasse, pensei em fotografar a joaninha, talvez uma selfie de recordação para a posteridade. Talvez uma possível postagem no Instagram ou no Facebook. Foi um pensamento insensato e que se esvaiu rapidamente. Não existe motivo razoável para tornar pública a intimidade do animal – além disso, sempre há o risco de algum processo judicial por exposição indevida, dano moral ou algo similar. Desisti do intento.  

Poderia perguntar à joaninha se ela queria algum tipo de ajuda para ir embora. Poderia. Antes que tivesse a chance de fazer o questionamento, percebi que o problema era grave. Não havia a possibilidade de, digamos, abrir as asas e voar para longe. Alguma coisa estava prendendo-a na cortina. Com a ajuda de uma folha de papel, tentei libertá-la. Consegui.

Infelizmente, caiu atrás do sofá. Ninguém me condenaria se tivesse pronunciado um palavrão, efeito sonoro adequado à ocasião. Controlei o temperamento, arrastei o sofá e fui procurar por aquele ser minúsculo. O besouro não era maior do que um centímetro. E estava imóvel no chão. De forma apressada, pensei que teria que levá-lo ao hospital veterinário, talvez tivesse quebrado uma perninha ou deslocado uma asa, não imagino que tipo de traumatismo uma queda de menos de um metro pode causar nesse tipo de animal. Felizmente, não era nada grave (imagino). Ele se moveu na direção da parede.

Consegui colocá-lo em cima da folha de papel e o levei-o até a janela. Depositei aquele corpo frágil (para o meus padrões) no parapeito. Fechei a janela e as cortinas e fui tomar banho. Hoje pela manhã, quando acordei, não havia mais sinal de sua presença. Pode ter sido levado pelo vento ou então se reunido com outras joaninhas, essa é uma região propícia para que as Coccinelidaee construam moradia.

Sei lá, pode parecer ingenuidade, mas foi bom ver que a vida continua pulsando ao meu redor. E que, por isso, eu também precisei me movimentar. 


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLII)



Ontem, estive na iminência de ser devorado pelo tédio. Há momentos em que a mediação entre a casa e a rua exige alguma satisfação além daquela que é fornecida pela tela do computador ou da televisão. A alternativa está em decidir se vale o risco de enfrentar o mundo exterior. Dia de sol no inverno é sinônimo de tentação. Bermuda, camiseta, sandália e máscara – simulacro de quem estava indo para a praia (a ironia surge imediatamente: a temperatura média do Planalto Catarinense, nos últimos quinze dias, não deve ter ultrapassado 10° C).  

Não fui muito longe. A ideia era fazer o sangue circular pelo corpo. Não vejo o menor sentido em fazer exercícios físicos, detesto academias e, entre os meus melhores defeitos, não se encontra o narcisismo. Melhor é bater perna, descobrir a geografia urbana.

Como desculpa argumentei para mim mesmo que precisava pagar uma conta. Fui ao banco, à padaria e ao supermercado. Fiquei fora de casa cerca de uma hora e meia. Infelizmente, não posso sair para caminhar todos os dias. Ou melhor, não devo. Estou no grupo de risco – por diversos motivos. Mas, preciso confessar que um contato mais próximo com o mundo está fazendo falta. Gosto de ficar em casa. No entanto, não me sinto confortável em ter restrições sobre o que fazer ou deixar de fazer.

Ao voltar, tomei um banho rápido e acessei, pelo celular, o Instagram do Ppglitufsc. Vi e ouvi uma laive sobre o medo e a pandemia. Foi bom ver pessoas do meio acadêmico pensando e discutindo o tema, que provavelmente será expandido nos próximos anos com razoável produção ficcional e teórica.

Depois, algum tempo depois, sentei na frente do computador e comecei a escrever este texto. Parei antes de chegar à metade. Um ligeiro mal-estar. Não foi físico. Apenas uma sensação indefinida, dessas que surgem no horizonte, lá longe, e vão se aproximando devagar. Quando o sujeito se dá conta do perigo, ela já está instalada no sofá da sala, tomando chá com biscoitos, e olhando dentro dos nossos olhos.

Fui para a sacada do apartamento, no início da noite. Fiquei imaginando bobagens sobre os carros e as pessoas que estavam se deslocando pela avenida. A ficção fornecendo substância ao nada. Devo ter ficado lá por um bom tempo, o suficiente para perceber que o exercício da escrita estava comprometido, que era melhor deixar o Diário da Quarentena em banho-maria, amanhã é outro dia, essas conversas fiadas de quem não tem (nunca teve) compromisso com os rituais.

O resto da noite foi inquietação. Só consegui dormir lá pelas três da manhã. Acordei cedo – e isso significa antes das oito. Assisti ao jornal televisivo, a comprovação de que as notícias se repetem em um círculo de mesmice. Lavei a louça, tomei banho, li um pouco (um romance russo superengraçado). Nada muito diferente do que faço no dia a dia – estou em casa a mais de seis meses. 

Neste momento da história contemporânea, nada mais resta senão inventar resiliência. E esperar.


terça-feira, 25 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLI)


Galilée devant le Saint-Office au VaticanJoseph-Nicolas Robert-Fleury,
salon de 1847. Musée du Louvre
.


Em alguns momentos, depois de ler (ou assistir) o noticiário nacional, percebe-se que a literatura mais terrível (aquela que trata de traições, taras diversas, mediocridades e escândalos) não consegue competir com a realidade.

A vida é assim, poderia-se argumentar diante de tantos desastres. Ocorre que, mesmo que se admita que algo está fora de lugar, a vida não é assim. Ou não deveria ser. Nesse beco sem saída em que o Brasil se encontra, é necessário ter consciência de que os arrivistas tomaram conta do palanque e instituíram uma narrativa que exalta a ignorância e o desprezo aos conceitos mínimos de civilidade. O país está vivendo um tempo similar ao da Idade Média, onde a superstição e o temor da ira divina negam a ciência e a lógica.  

O comportamento agressivo, a falta de decoro e o uso frequente de notícias falsas são escudos usados para esconder algum tipo de deficiência (física, psicológica, moral, intelectual – talvez todas). Esse conjunto de atitudes serve de estímulo para que a matilha (formada por ressentidos, histéricos e portadores de deficiência cognitiva) se insurja contra o racional. Presos dentro do armário fascista durante muitos anos, não souberam se comportar no momento em que abriram a porta e encontraram a claridade. Ainda estão combatendo as sombras. Mais do que uma versão farsesca do mito da caverna de Platão, falta-lhes o devido verniz cultural para perceber que lucidez deriva da palavra latina lux.

Nesse ritmo, está o caso da deputada que, dizem, ordenou a morte do esposo. Nenhuma novidade, a polícia sempre esteve próxima da política. Algumas vezes por conluio, outras para investigar crimes cometidos por parlamentares. E, no atual cenário que reveste o poder, delitos não estão em falta – além dos casos amplamente divulgados pela imprensa, algumas particularidades se destacam: lobbys, corrupção, “rachadinhas”, etc.

Representante da onda conservadora que assumiu o poder no país, a deputada, que também é pastora evangélica, comprova que algumas escolhas eleitorais não foram feitas para respeitar os interesses da democracia. Retifico, não correspondem ao exercício social. No choque entre a imagem pública e a vida privada, há segredos e infâmias – que costumam ser escondidos debaixo do tapete, junto com as demais sujeiras da vida doméstica. Como escreveu Nelson Rodrigues, Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.  

Os ingredientes que compõem a história que está nos jornais (sendo o incesto a infração de menor gravidade) fariam as delícias de escritores do porte de Restif de La Bretonne (1734-1806), Marquês de Sade (1740-1814), Nelson Rodrigues (1912-1980) e Rubem Fonseca (1925-2020). Possivelmente alguma cena do agrado de Jean Genet (1910-1986) também está presente nessa tragédia carioca. Basta ser paciente e aguardar as próximas revelações. Para o bem e para o mal, todo enredo de qualidade precisa de um (ou diversos) plot twist.

Aqueles que defendem a moral e os bons costumes, usualmente utilizando a bíblia como se fosse uma arma, acabam mostrando o quanto estão contaminados pela hipocrisia e pela desonestidade. O caso da deputada não pode ser entendido como algo isolado. Também não deve fomentar preconceitos com as escolhas religiosas. Existem maçãs podres em todos os cestos, cabe adotar mecanismos de controle para impedir que a contaminação atinja as outras frutas.



segunda-feira, 24 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CL)

 


A doença sempre ocupou um lugar de destaque na literatura. Talvez por ser uma metáfora fácil de ser assimilada pelo leitor, talvez porque a humanidade precisa, inconscientemente, negar – com todas as suas forças – o poder da morte. Independente do motivo, livros como A Montanha Mágica (Thomas Mann), A Peste (Albert Camus), Édipo-Rei (Sófocles), Decameron (Giovanni Boccaccio) e A Morte de Ivan Ilitch (Liev Tolstói) costumam ser lembrados como formas exemplares de tratamento literário sobre o tema.

Durante muito tempo, a peste negra, o câncer e a tuberculose foram fonte de inspiração para um tipo de literatura que oscila entre a resistência e a resiliência. Infelizmente, em algumas ocasiões, escorrega perigosamente para esse terreno pouco seguro que é a autoajuda, como comprova a sick lit, subgênero explorado à exaustão por John Green e Nicholas Spark, entre outros.

Nos últimos trinta anos – mais ou menos –, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS/SIDA) entrou na relação das enfermidades que merecem atenção literária – possivelmente porque em determinado momento foi interpretada como uma doença que não discriminava classes sociais ou econômicas (e atingia a todos os que tinham uma vida sexual conturbada). Mais tarde, essa tese se comprovou equivocada. Entre os muitos textos que atingiram um grau acima da média, destacam-se um conto de Susan Sontag, Assim Vivemos Agora, e o romance de Colm Tóibín, A Luz do Farol.

A estrutura polifônica (em um conto!!!) proposta por Sontag estabelece através de várias informações, algumas desencontradas, a situação crítica em que se encontra um amigo comum. O texto consegue mostrar a formação de uma rede de solidariedade – ao mesmo tempo em que vai narrando o estado de saúde do doente. Na narrativa de Tóibin, a relação familiar fragmentada encontra os laços perdidos. A irmã, a mãe e a avó se unem para cuidar do rapaz que está morrendo. Lírico, sensível, humano – não são poucos os adjetivos que podem e devem ser usados para qualificar esse romance.

Provavelmente, o Covid-19 também será alvo de algumas narrativas nos próximos anos. É o caminho natural da literatura (e, logo depois, do cinema). O advento de uma nova enfermidade (que não passa de uma mutação genética de uma doença antiga) possibilita desdobramentos infinitos do tema e das variações que o acompanham. Haverá de tudo um pouco: narrativas apocalípticas, histórias de amor, perdas emocionais, fábulas religiosas, desencontros familiares, extermínio das populações indígenas, o percurso do herói e algumas táticas de sobrevivência em um mundo hostil. Simultaneamente, as livrarias oferecerão grande quantidade de estudos literários e sociológicos – estruturas lógicas (ou não) para tentar compreender o que aconteceu (o que está acontecendo).

Em todos os textos que serão escritos em futuro próximo, a questão política será ingrediente fundamental. As razões que transformaram o Covid-19 em ameaça estão intimamente ligadas com o capitalismo predatório, com a negligência em adotar medidas de prevenção sanitária e ausência de consciência ecológica. Possivelmente esses fatores não explicam os fatos de forma direta, mas de algum modo contribuíram para que a humanidade ficasse em situação de perigo.

A pandemia não significa o fim do mundo – sempre há sobreviventes em todas as crises. Mas deve ser vista como uma advertência. Cabe aos governos adotarem algumas medidas preventivas para tentar impedir que esse fenômeno se torne rotina.


domingo, 23 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLIX)

 



Os óculos, na falta de melhor expressão, são a minha janela particular para ver o mundo. Sou míope desde um tempo que não lembro mais. E não me reconheço sem essa ferramenta de ver o longe. Por isso, e alguns outros motivos, o embaçar das lentes é um dos incômodos que mais me afeta na pandemia.

Quando uso máscara, os óculos ficam pendurados na camisa. O olhar se retrai. Uma enorme massa desfigurada se apresenta no horizonte. Olho para baixo, para evitar tropeçar nos buracos que enfeiam as ruas da cidade. Caminhar está se tornando o mais perigoso dos deslocamentos urbanos.

O alcance visual do mundo exterior desaparece. Lucina, personagem do romance chileno Sangue no Olho (São Paulo: Cosac Naify, 2015), da Lina Meruane, vai perdendo a visão aos poucos, uma tortura que vai se esparramando sem que apresente a mínima esperança de reversão. É uma perspectiva muito mais angustiante do que a metáfora política de Ensaio Sobre a Cegueira (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), de José Saramago, onde há (pedindo perdão pelo trocadilho ruim) uma luz no fim do túnel.

Jorge Luiz Borges viveu sem enxergar por 32 anos, mas nunca perdeu o costume de comprar livros. É o que relata o jovem (16 anos) Alberto Manguel, funcionário da Livraria Pygmalion, em Buenos Aires: Um dia, após escolher alguns títulos, ele me convidou para visitá-lo e ler para ele à noite, caso eu não tivesse mais nada para fazer (in: Com Borges. Belo Horizonte: Âyiné, 2018). Imagino que esse drama seja similar ao de Glauco Mattoso, que não enxerga faz algum tempo, mas continua compondo os seus poemas fesceninos com assiduidade.

Para João Cabral de Melo Neto, que foi perdendo, aos poucos, o contato com imagens e formas, a escuridão somada com a enxaqueca constante lhe tirou o gosto pela vida. A poesia cerebral, rigorosa na escolha de cada palavra, de cada verso, somente era possível na claridade.

Segundo a lenda grega, Homero era cego, recitava versos para poder sobreviver e a poesia era (literalmente) o seu alimento. John Milton teve glaucoma quando estava preso. James Joyce se submeteu a várias cirurgias oftalmológicas, mas não foi possível atenuar as lesões. Aldous Huxley foi vítima de uma doença rara aos 17 anos – na vida adulta compensou os danos com lentes de aumento. Luiz Vaz de Camões perdeu um dos olhos em uma batalha em África, mas isso não o impediu de produzir uma obra poética espetacular.

Entre os muitos medos que abrigo, a opacidade ocular tem lugar de honra. Não me parece correto viver sem poder ler, sem poder desfrutar do espetáculo das cores. Ciente de que a vida não é justa, costumo visitar o oftalmologista com alguma frequência. É o único médico em que confio.

A incompatibilidade dos óculos com a máscara possibilita uma pequena vantagem. A postura social das pequenas cidades exige que as pessoas se cumprimentem, sejam amáveis, finjam civilidade, e eu não sou fã desses procederes – principalmente em alguns casos específicos. A pandemia está proporcionando uma formula fácil: Desculpe, não te vi.  


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLVIII)

 

Anita Catarina Malfatti (1889-1964)


Alguns encontros são improváveis ou inimagináveis. Talvez seja por isso que se atribui à ficção o poder de promovê-los.  Um dos mais interessantes, para quem se interessa por artes plásticas, é o que (não) ocorreu entre Anita Malfatti e Edward Hopper.

No final de 1914, Anita Malfatti, financiada por seu tio, o arquiteto Jorge Krug, viajou para Estados Unidos. Matriculada na Art Students League, não se adaptou ao ensino, que considerou muito apegado às representações realistas. Depois de alguns meses desistiu da escola, passando a frequentar apenas as oficinas de gravura.

Uma amiga lhe contou que um professor de pintura e grande filósofo incompreendido (palavras de Anita, na conferencia que apresentou, em 1951, na Pinacoteca do Estado de São Paulo) estava reunindo um grupo de alunos para passar uma temporada em uma ilha na costa do Maine.

Aluna de Homer Boss, Anita, que tinha 25 anos, passou o verão de 1915 na ilha de Monhegan (2,2 km² de extensão e população inferior a uma centena de pessoas). Foi o período mais intenso, livre e transformador de sua vida. A turma passava os dias pintando e à noite (a ilha não tinha energia elétrica), conversavam, contavam histórias, dançavam. Aos sábados, era realizada uma pequena mostra de trabalhos, onde Homer Boss opinava e orientava os alunos. De certa forma, a Independent School of Art era o paraíso.

Na metade de 1916, Anita estava de volta a São Paulo, onde continuou pintando. Depois de visitar uma exposição da artista, Monteiro Lobato fez uma declaração de guerra no jornal O Estado de São Paulo, com o artigo A Propósito da Exposição Malfatti (publicado em 20 de dezembro de 1917 e que, mais tarde, recebeu outro título: Paranóia ou Mistificação), onde define as linhas básicas do antagonismo entre aqueles que passaram a ser chamados de modernistas e passadistas. 

Esse episódio histérico, promovido por Monteiro Lobato, é considerado uma das gêneses do modernismo no Brasil e que resultou, alguns anos depois, em um dos eventos mais significativos da história artística nacional: a Semana de Arte Moderna (13, 15 e 17 de fevereiro de 1922).

Não há provas de que Anita Malfatti e Edward Hopper tenham se encontrado em algum instante, embora ela tenha conhecido, em Nova York, Marcel Duchamps, Máximo Gorki e Juan Gris, entre outras personalidades do mundo artístico mundial. O que os une é a pintura. Mais precisamente os quadros que produziram em Monhegan (Hopper esteve lá em várias ocasiões).


Edward Hopper (1882-1967)

Hooper ficou célebre por enfatizar, de forma realista, a solidão contemporânea. Malfatti seguiu outro curso. Depois que conseguiu superar o figurativismo realista, através de cores vibrantes e temas que, quebram o estilo acadêmico clássico, introduziu uma nova perspectiva pictórica nas artes plásticas do Brasil (influenciada pela pintura de ruptura europeia – Pablo Picasso, Oscar Kokoschka, Gustav Klint, Fernand Léger, etc.).

Passados tantos anos, sem fazer comparações, pois os estilos dos dois pintores são inegavelmente diferentes (técnica, cores, pinceladas, olhares sobre a luz) e eles estiveram na ilha em momentos distintos, é interessante ver a maneira como pintaram um das atrações de Monhegan, o farol – e do mesmo ângulo.


O Farol, 1915, de Anita Malfatti.
 


The Lighthouse at Two Lights, 1929, de Edward Hopper.

Obs: Existe outra pintura de Hopper tendo o farol como motivo temático, mas a perspectiva é outra.


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLVII)

 


Nesse período de quarentena, a vida (de um homem que mora sozinho em um apartamento enorme) pode ser comparada com a do comandante de um navio que precisa a todo instante consultar as cartas náuticas para estabelecer a melhor rota, evitar os icebergs, os bancos de areia e as tempestades marítimas. Também deve olhar para o horizonte, sempre há um farol anunciando a proximidade com a terra firme.

Não sei se essa analogia pode ser usada para destacar que, todos os dias, é imperativo decidir quais são as prioridades domésticas: lavar a louça, limpar o banheiro, trocar a roupa de cama, determinar o que almoçar e jantar, quais são as laives a serem assistidas, etc. Qualquer resolução equivocada compromete o restante do dia.

Evidentemente, pode-se optar por deixar o navio à deriva, deitar no sofá e ver algum filme ou vídeo de stand-up. A Internet está repleta desse tipo de entretenimentos. Ler, enquanto algum disco de jazz ilumina o escritório, também é uma alternativa válida. Ninguém vai tentar impedir essas atividades recreativas,... Apesar de isso tudo parecer simpático, nem sempre é a melhor solução. Infelizmente.

Algumas tarefas domésticas são inadiáveis. O lixo, por exemplo, parece se multiplicar por geração espontânea. Basta um descuido e restos de comida, embalagens de Sonho de Valsa, latas de Coca-Cola, saquinhos de chá, cascas de banana, garrafas de suco e potes vazios de iogurte formam uma pilha enorme de detritos. Como não é possível ir à cozinha sem olhar para esse desastre, não sobra alternativa senão separar os resíduos em diferentes sacos de lixo (de supermercado também servem). A matéria orgânica não deve ser misturada com a inorgânica. O que pode ser reciclado e as máscaras descartáveis usadas precisam estar separados das outras coisas. Diante dessa miríade de detalhes aumenta a vontade de juntar tudo em um único recipiente e mandar a consciência ecológica para o lugar onde o Judas perdeu as botas. Obviamente, em nome dos ideais civilizatórios, isso não acontece. No final da tarde, o sujeito precisa carregar seis ou oito pacotes até a lixeira do prédio.

Outra atividade cansativa é a limpeza da cozinha. Não creio que tamanho aborrecimento possa ser descrito em palavras. Então, nem vale a pena tentar. Quando a pandemia passar, se passar, a única atitude possível será rever o salário da Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD), porque está muito desvalorizando o esforço que ela faz.

Nesses últimos quatro ou cinco meses foram retirados das estantes uns duzentos livros (mais ou menos). Deveriam ter sido recolocados nos lugares de origem (sobrenome do autor como método de classificação) depois da leitura (ou consulta). Não foram. Pior, todo dia a tarefa é adiada. E, como se não bastasse, outros desgarrados estão se somando a essa diáspora bibliográfica. A bagunça organizada tende a se transformar em caos.

Pare o mundo, que eu quero descer. Essa é a frase que não se deve dizer (por enquanto). Apesar de todas as complicações, onde se revelam diversos níveis de inabilidade, não há (muitos) motivos para queixas. A vida tem sido generosa com os incompetentes e cabe agradecer por isso todos os dias.


terça-feira, 18 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLVI)

 


O mundo acabou. Milhares de pessoas mortas em poucos dias. Um tipo especial de gripe. São poucos os que conseguem escapar da hecatombe. Mesmo para aqueles que – no início – cumprem algum tipo de quarentena, depois de algum tempo nada mais lhes resta senão se deslocarem das cidades para o campo em busca de comida. Os meios de transporte colapsam, as fábricas deixam de produzir, não há luz elétrica, vandalismo e depredação se tornam constantes, os instintos mais primitivos e o messianismo religioso surgem como faces complementares do horror. Em linhas gerais, essa é a estrutura do romance Estação Onze, de Emily St. John Mandel (Editora Intrínseca, 2015).   

Há um grupo de leitores que defende a tese de que, para conservar a sanidade mental durante a pandemia de Covid-19, o melhor a fazer é evitar as narrativas catastróficas. Dizem que a realidade é assustadora o suficiente. Por isso, preferem livros menos contundentes.

Em contrapartida, muitas pessoas possuem entendimento diferente. Ou seja, visualizam a literatura como representação (simbólica, imaginária, alegórica) da realidade e que (nesses termos) não existe razão para se afastar dos livros que abordam temas complicados. Se a literatura é estranhamento e subversão, porque fugir desse tipo de abordagem?

Quem está com a razão? Todos e ninguém. Se alguém não consegue avançar na leitura (e não importa por qual motivo), cabe deixá-la para outro instante. Ou ignorá-la para todo o sempre. A literatura não funciona como imposição. O que vale é o prazer de ler, como defendia Roland Barthes. 

Para aqueles que decidem enfrentar a Esfinge, a Medusa ou qualquer outro monstro, há os riscos da aventura. E não são poucos. Também existem compensações. Em Estação Onze o leitor encontra um intenso dialogo com o teatro shakespeariano. Um personagem importante, Arthur Leander, morre (na primeira página) enquanto interpreta Rei Lear, peça que foi escrita em 1605, durante o surto de peste bubônica que matou 10% da população de Londres (entre 1603 e 1613). A companhia teatral Sinfonia Itinerante encena Sonhos de uma Noite de Verão em praça pública. Há vestígios de A Tempestade (com destaque para o isolamento). Parte da fruição da leitura está em procurar por essas referências, concordando que alguns livros foram escritos para, entre outras coisas, despertar a curiosidade do leitor. Encontrar easter eggs é uma forma de se aproximar do Aleph borgiano, lugar impreciso onde todos os livros se conectam, onde as bibliotecas se multiplicam.  

A morte de Arthur e a gripe da Geórgia vão afetar (em maior ou menor grau) praticamente todos os personagens do livro – uma espécie de efeito dominó. Entre as ruínas, todos eles lutam desesperadamente para continuarem vivos, para não esquecer o peso que é carregar o passado (um dos personagens, Clark Thompson, constrói um Museu da Civilização, com objetos que servem de lembrança do mundo que foi destruído).

A frase tatuada no antebraço esquerdo de Kirsten Raymonde, Sobreviver não é o suficiente (retirada de Star Trek: Voyager, episódio 122), significa, entre outras coisas, que a arte, a solidariedade e a esperança são formas de ligação com o humano. A frase também é o lema da Sinfonia Itinerante.

Ao adotar como recurso técnico o flash-back, ou seja, os deslocamentos temporais, Emily St. John Mandel forneceu condição para que o encadeamento se realize com eficiência, gerando interesse e expectativa no leitor. A narrativa está centrada no realismo (e, portanto, afastada da ficção científica). 

Alguns leitores encontrarão semelhanças com A Estrada, do Cormac McCarthy – não é coincidência.              

Emily St. Johh Mandel


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLV)

 


Durante o sábado e o domingo preferi ficar quieto, internado dentro de mim mesmo. Foi uma pausa, um intervalo necessário. Anulei o mundo exterior e me concentrei no que acontece no microcosmo que define o que está ao meu redor. Por dois dias, não me deixei envolver pelas complicações do presente, embora o futuro e o passado tenham relampejado em alguns momentos como que fossem anúncios de tempestades.

Não assisti telejornais, não me envolvi nas polemicas da Internet, sequer dei um passo para fora do apartamento. Reclusão completa. Quase uma situação comum em tempos de pandemia. Felizmente, estou ciente de que não existem cenas típicas – independente de quantas vezes se repitam. Na rotação que caracteriza os fatos, tudo possui aparência de novo, seja porque o papel de embrulho é diferente, seja porque a mudança está se processando a cada instante.     

Nessa ciranda, que ecoa Heráclito de Éfeso, alguns indivíduos possuem algum tipo de sensibilidade sísmica e percebem que alguma coisa precisa ser feita para impedir que a rachadura na parede cause o desmoronamento da casa.

Sintomaticamente, epidemiologicamente, isso não acontece com a maioria da população.  Os adeptos do nem tô aí preferem abrir as portas que levam ao escapismo. Envoltos por uma nuvem de fumaça tóxica não sentem a atrofia dos sentidos e abraçam o negacionismo – fantasia de felicidade que consiste em evitar tudo o que possa causar alguma reflexão.

Cada um reage com os instrumentos que dispõe.

Nesse momento em que falta empatia com a situação anômala em que estamos vivendo, tento imaginar algumas situações-limite literárias: a angústia de Anton Pavlovitch Tchekhov na Ilha de Sacalina, no mar de Okhotsk, a solidão que acompanhou Alfred Dreifus e Henri Charrière (Papillon) na Ilha do Diabo, ao norte da Guiana Francesa, ou o desalento de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, que cumpriu pena de prisão em Omsk, na Sibéria. Pode-se dizer o mesmo sobre os mundos ficcionais de Robinson Crusoé, a Família Robinson e os moradores de Oran. São experiências de degredo terríveis.

Etimologicamente, a palavra isolamento (radical isola, derivação de insula, ilha em latim) indica uma situação de afastamento, de limitação espacial, de restrição de movimentos. De maneira objetiva, pode-se dizer que aquele que está separado do Outro não consegue ver nada além do que está diante dos seus olhos – e muitas dessas imagens são frutos da imaginação, de um desejar que não se concretiza. Essa alienação contrasta, de forma mais intensa, com a carência produzida pela ausência do afeto. Quando John Donne escreveu que Nenhum homem é uma ilha, talvez estivesse sonhando com um tempo em que os acidentes geográficos seriam extintos e as pessoas poderiam se unir e formar continentes. Talvez estivesse pensando que, com esse tipo de utopia, seria possível projetar uma sociedade mais fraterna e menos injusta.

Hoje é segunda-feira. A redoma está aberta – outra vez.


sexta-feira, 14 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLIV)

 


Chove torrencialmente. A criança que fui imaginou que seria interessante ir para a rua e brincar com barquinhos de papel. Reprimi essa vontade. A possibilidade de ficar gripado pesou na decisão. O melhor a fazer, neste momento, é adiar. A aposentadoria está próxima e então, quando esse dia chegar (se chegar...) poderei fazer o que quiser – no máximo, dirão que estou senil.

Das dobraduras com papel, só sei fazer barquinhos. Minha psicanálise de boteco diz que essa vontade de partir jamais se concretizará. São muitas âncoras. E o oceano não tem fim. Escrever é uma forma de projetar os carimbos no passaporte.

Ah, tenho inveja de quem domina a arte do origami. Queria saber construir tsurus.

Depois que ultrapassei o abismo que existe entre os 18 e os 60 anos, a vida ficou mais confusa. Não estou dizendo/escrevendo que ficou pior. Nada disso. Mas, a verdade é que não fiquei mais sábio (sim, eu tinha essa ilusão), desisti de tentar controlar a ansiedade, a minha vida afetiva continua miserável e estou cada vez mais distante de conseguir ganhar algum dinheiro além daquele que garante a minha sobrevivência. Às vezes, tenho vestígios de alegria (uma expressão que tomei emprestado de uma personagem da Emily St. John Mandel).

Ao acordar, doem algumas partes do corpo. Fisgadas, câimbras. Nada insuportável. Ainda. Não dependo de 50 remédios diferentes. Ainda. O único que me acompanha é o Pepsamar, mas é raro o seu uso. Entre os médicos, só visito com alguma regularidade o oftalmologista. A miopia é o meu pior castigo.

Gosto de caminhar. Sempre que possível por ruas diferentes. A pandemia me fez diminuir essa rotina. Mas, munido das devidas precauções, vou ao supermercado, à padaria, ao banco. Não é o ideal, mas serve para desenferrujar os ossos, para desfazer essa impressão (cada vez mais angustiante) de que estou prisioneiro.

Toda vez que saia de casa, levava um livro na bolsa ou na mão. Sempre que possível (filas, repartição, logo depois do almoço) me distanciava do mundo objetivo e mergulhava na vida das criaturas de papel. Infelizmente, tive que abandonar esse costume. A possibilidade de ser contaminado pelo Covid-19 restringiu a geografia da leitura. Ler se tornou um hábito caseiro. 

Costumo esquecer o nome das pessoas, mas lembro de cenas de livros que li a mais de 40 anos e fico triste porque isso não tem a mínima importância. Não serve sequer para resolver problemas de palavras cruzadas.

Sou viciado em chocolate, Coca-Cola, tiramissu, gelatina e sorvete de pistache. Tomo chá diariamente e acredito que a vida seria melhor se as pessoas escutassem mais música e falassem menos. 

Sou um viajante. Em vários sentidos. Ao mesmo tempo, não sou uma pessoa fácil. Há um fosso com jacarés famintos ao meu redor. 


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLIII)

 


Anos oitenta. Eu era Aluno do Terceirão do Colégio Diocesano. Período noturno.  Minhas ausências em sala de aula eram compensadas pelas inúmeras garrafas de cerveja que costumava abater em um bar que ficava na outra quadra (Rua Coronel Cordova, 441). Habitualmente era acompanhado por um amigo, Getúlio (que, na época, era o presidente do Centro Cívico Frei Nicodemos).

O Cisne Branco era esfumaçado e pouco iluminado. E parecia um corredor estreito. As mesas estavam encostadas na parede e eram separadas por biombos (dos dois lados, o que diminuía em muito o espaço de movimentação dos clientes).  Não era o ambiente ideal para claustrófobos. O grande diferencial do lugar era o respeito à privacidade do(s) cliente(s). Para fazer os pedidos era necessário acionar um interruptor, que acendia uma lâmpada na parede, acima da mesa. As garçonetes eram gentis e atenciosas (e, por alguns trocados, poderiam acompanhar algum solitário no final do expediente). O dono parecia um buldogue e ficava atrás da caixa registradora, controlando tudo.

Naquela época, todos os bêbados respeitáveis (alguns nem tanto) costumavam passar por lá, seja para molhar a palavra ou para outras atividades. Nesse segundo caso, estavam os encontros extraconjugais. Se o sujeito queria levar alguma companhia para conversar e combinar alguma atividade posterior, então era o local ideal.

Situado no centro da cidade, próximo de dois colégios, o Cisne Branco costumava receber muitos estudantes. Alguns estavam fugindo das aulas (meu caso), outros queriam participar do folclore etílico, e, por ultimo, mas jamais o pior motivo, estavam iniciando a vida sexual. Ninguém se decepcionava.

Alguns amigos de longa data (todos muito mais velhos) eram fregueses assíduos. Lembro, particularmente, de Wilsinho Antunes, Athos Athayde e Rogério Castro.

Fui coadjuvante em um dos episódios mais patéticos desse período. Jonas Malinverni (que, naquele período, era estudante de arquitetura) me contou que estava preocupado com o artista plástico Clênio Souza. Figurinha carimbada da vida cultural da província, Clênio era tudo, menos dócil. Depois de brigar com a namorada, declarou solenemente que iria se suicidar. Jonas, temendo esse trágico desfecho, me pediu ajuda para tentar encontrar o sujeito, que estava desaparecido. Imaginando que, na pior das hipóteses, isso serviria de desculpa para abrir mais algumas ampolas do precioso líquido, indiquei o boteco e disse: Vamos ver se ele está aí. Estava. Completamente bêbado, inconsciente, o rosto dentro de um prato de macarrão à bolonhesa. Depois de uns dez minutos, em que tentamos reanimar o cara, o levamos até o banheiro e, além de jogar um pouco de água no seu rosto, limpamos um pouco daquela sujeira. Aproveitei a oportunidade para revistar os seus bolsos. Queria, no mínimo, encontrar algum para a cerveja. Maior decepção. O dinheiro que ele tinha mal deu para pagar a conta.

Depois de tudo isso, foi uma epopeia levar o suicida para casa. Ele morava com a irmã, lá no bairro Vila Comboni (uns seis quilômetros do Centro). Jonas, um eterno pão-duro, não quis chamar táxi, então fomos caminhando, um de cada lado, abraçando o bêbado, que várias vezes quase caiu. No dia seguinte, como sempre acontece nesses casos, Clênio não se lembrava de nada.

Evidentemente, tenho lembranças de outros eventos, alguns proibidos para menores de 50 anos, mas os contarei (com todo o cuidado para não ofender a moral e os bons costumes das pessoas de bem) em outra oportunidade.  


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLII)

 


Dia de chuva exige energia redobrada. Paciência e música também não fazem mal. Aproveitei para executar algumas tarefas que tinham sido adiadas (nunca é demais afirmar que postergar é um verbo amoroso na minha vida).

No período da manhã me dediquei às tarefas de rotina: lavar a louça, encharcar o banheiro com água sanitária, varrer o escritório, tomar banho, responder parte da correspondência virtual, acessar a internet e ler as notícias do dia.

Também fui à janela, para ver a chuva (miúda, fria, poética) durante uma meia hora. Espantei a sensação de solidão, tomando chá, aquecendo as mãos no calor da caneca.

Depois do almoço (bife a milanesa), li algumas páginas de Estação Onze (Emily Saint John Mandel), uma narrativa apocalíptica que só descobri a existência recentemente. Além do diálogo incessante com a obra de Shakespeare, o livro retrata as ruínas de um mundo que quase desaparece depois de um surto de gripe. Lembra um pouco A Estrada (Cormac McCarthy), mas não muito, e faz algumas referências aos tempos atuais (embora tenha sido escrito em 2014).

Depois de procurar (e encontrar) alguns documentos da minha mãe, separei muitas notas fiscais (e recibos) que estavam acumuladas em uma gaveta. Joguei parte dessa papelada inútil no lixo. Guardei as faturas de condomínio, luz e telefone (nunca se sabe o que pode acontecer no amanhã). Assisti uma laive da Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Comprei dois livros na Estante Virtual (um ensaio sobre Walter Benjamin e um romance nacional distópico, mas baseado nas relações político-religiosas contemporâneas). Ouvi um pouco de música. Assisti outra laive.  

Mas nenhuma dessas atividades exaustivas serviu para diminuir a alegria que senti ao constatar que a gelatina que fiz ontem ficou excelente. O sabor e a consistência estão perfeitos. Com a colher na mão, a criança que existe dentro de mim reapareceu, comeu tudo e pediu mais. Infelizmente, só poderei repor o estoque amanhã ou sexta-feira.

A vantagem é que, nesse ritmo de destreza gastronômica, posso pensar em novas aventuras, quiçá bolo de caneca ou, no caso de um surto de ambição, pudim. O céu é o limite e a cozinha deixará de ser território de passagem.

Enquanto isso não acontece, sigo usando o micro-ondas para esquentar a comida ou a água. Ainda não encontrei outras utilidades (que devem existir, creio). Tenho grande apreço pela geladeira, pois sem ela precisaria beber coca-cola na temperatura ambiente – e isso é horrível. Claro, há outras vantagens, conserva o iogurte, o sorvete e, agora, a gelatina. Os armários são apenas depósitos de louça e comida, tenho pouco interesse no que eles podem me dizer – e quando falam, sempre é para me avisar que preciso ir ao supermercado. Com a pia tenho uma relação passivo-agressiva, gosto de vê-la como um móvel inofensivo e que vai se transformando em monstro na medida em que a louça fica suja. 

Evidentemente, as coisas já foram piores. Morei, durante muito tempo, em um apartamento minúsculo, onde a cozinha era quase ficcional.




terça-feira, 11 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLI)

 


Feitiço do Tempo é o título que o filme Groundhog Day (Dir. Harold Ramis, 1993) recebeu no Brasil.

O egocêntrico jornalista e meteorologista Phil Connors (Bill Murray) vai até a cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, para fazer uma reportagem sobre o festival Dia da Marmota (02 de fevereiro). Segundo a lenda local, o animal (que também se chama Phil) tem o poder de prever qual será a duração do inverno olhando para a própria sombra.

Ao acordar, Phil ouve a rádio-relógio e, em seguida, protagoniza uma série de pequenos eventos. Depois de realizar o trabalho, descobre que não pode ir embora, porque uma tempestade de neve fechou a rodovia. Nos dias seguintes, há uma repetição de tudo o que aconteceu nos dias anteriores. Em algum momento, Phil percebe que, inexplicavelmente, ele está preso no dia 02 de fevereiro.

Ciente de que está sendo devorado por uma versão moderna do mito de Sísifo, começa a se antecipar aos acontecimentos e promove algumas alterações na ordem dos fatos. Nada muda (todas as manhãs o radio-relógio o acorda com as mesmas notícias), embora tudo seja novidade. A revolta contra a ausência do futuro não impede a repetição.

A alegoria proposta pelo filme se transformou em metáfora dessa indefinição que chamamos de realidade. Com a pandemia, somos prisioneiros de um tempo que não se move. Na espera de uma vacina ou da imunidade de rebanho – o que vier primeiro –, aguardamos por uma solução que talvez não aconteça no médio prazo. O anúncio de que algumas pesquisas sobre a doença estão prestes a apresentar bons resultados não tranquiliza as pessoas; ao contrário, aumenta a ansiedade, porque induz uma noção vazia de esperança. Depois de cinco meses de quarentena, as tarefas domésticas parecem encenar um pesadelo sem fim. As notícias de mortes de amigos e conhecidos estão se tornando rotina.

Por outro lado, há boas notícias (se é que é possível dizer esse tipo de coisa). A escola está sendo mais valorizada. As famílias descobriram que não estão preparadas para fornecer educação escolar para os filhos. Querem voltar a terceirizar essa tarefa com o professor. A pandemia mostrou que o ensino doméstico (homeschooling) e o ensino remoto (vídeo-aula) são inviáveis e que contribuem para a queda de rendimento dos alunos. Mesmo nos sistemas híbridos, essa defasagem está se mostrando significativa. Quando for feita a avaliação de 2020, não será surpresa se a conclusão indicar que a atual geração de estudantes perdeu o ano escolar. Caberá aos professores a tarefa de tentar recuperar todos os prejuízos.

Outra questão importante é que o afeto está ganhando novos contornos. E deverá ser mais valorizado quando a tempestade passar. O afastamento físico de familiares, amigos e colegas profissionais se manifesta como dor, como luto (simbólico, imaginário e real). Abraços e beijos são ações que aproximam as pessoas, que mostram a essência do humano. A interdição desses gestos – porque possuem a forma de ameaça – promove a desestabilização emocional e criam uma barreira que não é natural.

Não podemos ficar encarcerados no tempo, como Phil Connors. Precisamos acordar e ver um novo dia. De preferência, sem repetições.  

 


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXL)


Cena do filme Première Année (Primeiro Ano), dirigido por Thomas Lilti, 2018. 
 

Em literatura, é pecado indesculpável  confundir obra e escritor. Queria escrever autor, mas diversos teóricos (Roland Barthes e Michel Foucault iniciaram a confusão) sentiram prazer em matar o autor, então... (e, para não tumultuar o meio de campo, devemos deixar essa discussão para depois). De qualquer forma, o que precisa ficar claro é que a figura física daquele que escreve não pode ser equiparado com o texto publicado.

Explico. Ezra Pound, Louis-Ferdinand Céline e Pierre Drieu de La Rochelle eram fascistas. No entanto, escreveram romances e estudos teóricos de importância fundamental para a literatura. Recusar, ou melhor, cancelar esses trabalhos significa ignorar que o(a) escritor(a) é, em primeira instância, um ser humano – portanto, passível de deslizes éticos e morais. Decretar juízo de valor sobre a história pessoal do(a) sujeito(a) constitui um rebaixamento inapropriado, pois quer medir a qualidade literária com a régua do politicamente correto.     

William Burroughs matou a esposa acidentalmente – o filósofo Louis Althusser também fez isso; Ernest Hemingway (Prêmio Nobel de Literatura, 1954) e Charles Bukowski, além de alcoólatras, eram machistas; V. S. Naipaul (Prêmio Nobel de Literatura, 2001) era uma pessoa detestável sob diversos aspectos; Dostoiévski, além de alcoólatra, tinha problemas com jogos de cartas e roleta. Monteiro Lobato era racista; O Marquês de Sade era sádico e maníaco sexual; Philip K. Dick era esquizofrênico; James Joyce costumava pedir dinheiro emprestado e nunca devolvia; Anne Sexton, Sylvia Plath e Virgínia Woolf eram maníacas-depressivas e se suicidaram; a inimizade entre os irmãos Heinrich e Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929), Lawrence e Gerald Durrell ultrapassava as fronteiras do bom comportamento; Jack Kerouac era viciado em anfetaminas.

A lista dos(as) escritores(as) “defeituosos” se prolonga na direção do infinito. Mas nenhum desses desvios de conduta desmerece o trabalho literário. Deixar de ler um livro por qualquer motivo que não seja as deficiências do próprio livro constitui um sacrilégio e uma prova cabal de miséria intelectual.

As áreas que podem determinar a qualidade de um texto são, em ultima instância, a crítica literária e o gosto pessoal. Ao lado dos critérios técnicos (que podem estabelecer um grau de avaliação para os inúmeros elementos que compõem a obra), as preferências do leitor ajudam a determinar se uma narrativa deve ou não integrar o cânone. Mas todos esses instrumentos de análise são subjetivos e podem ser contestados a qualquer momento. A literatura não quer estabelecer algum tipo de ordem definitiva (melhor ou pior) ou garantir que o leitor não terá decepções; o que ela almeja é o constante diálogo entre o(s) livro(s) e o leitor. Disso deve resultar a fruição do texto. Elementos externos (curiosidades, histórias paralelas) e a vida pessoal do escritor não representam um acréscimo ou um demérito na produção literária.

O leitor se apaixona pelo livro – o escritor é apenas um instrumento dessa ação.


domingo, 9 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXXIX)

 

Algumas surpresas se escondem dentro dos livros. Não estou me referindo ao conteúdo ou ao tema abordado. Trata-se de outra coisa. Ontem, a Rede Globo, no meio da madrugada, exibiu Berenice Procura (dir. Allan Fiterman, 2018), baseado no romance homônimo do Luiz Alfredo Garcia-Roza.  

Movido pela curiosidade, li uma breve sinopse do filme em um desses blogs de cinema. Uma história maluca, uma mulher que dirige táxi, uma travesti assassinada, drama familiar misturado com suspense policial. Em primeiro plano, a paisagem carioca. O Delegado Espinosa, personagem icônico do Garcia-Roza, está ausente.

Com vontade de assistir o filme, procurei o volume na estante para antecipar alguns detalhes. Ao folheá-lo, caiu no chão a nota fiscal de compra. Cenas antigas voltaram a ter nitidez.

Adquiri o livro em dezembro de 2005 e só fui pagar três meses depois. Naquele tempo, cada vez mais longínquo, eu podia fazer fiado na livraria. Culpa, obviamente, de Dona Maria Rath, que, muitos anos antes, em gesto insensato, me disse que eu poderia levar todos os livros que quisesse e que não precisava me preocupar em resgatar a dívida. Ela ia anotando e, quando a minha situação financeira melhorasse, a gente entraria em acordo.

Assim como os alcoólatras, os diabéticos e os usuários de drogas, os bibliófilos são viciados perigosos. A mentira torna-se um hábito recorrente. Ter a posse deste ou daquele livro faz com que se esqueçam de cumprir com as promessas. Claro que tentei pagar todas as contas, algumas vezes com uns seis meses de atraso, mas... sempre queria ler os lançamentos, algum clássico que ainda não tinha. Alguém fazia alguma recomendação e eu não conseguia me controlar.  No balcão da livraria, encomendava os livros.



Naquela época, funcionário público municipal de quinto escalão, pagando aluguel e pensão para o filho, no meio de um curso acadêmico que me obrigava a ir para Florianópolis toda semana, frequentando bar, restaurantes e similares, quando é que poderia dispor de sobra de caixa?

Algumas vezes, como é comum entre os inconsequentes, transferi a responsabilidade. Disse para Dona Maria: Por favor, corte o meu crédito, diga que não posso mais levar nada, não tenho dinheiro para pagar o que devo. Ela olhava para mim, ria e balançava a cabeça, incrédula. Não se preocupe, um dia você paga – respondia com aquela voz de avó, com aquele carinho que nunca mereci.

Na semana seguinte, ela me telefonava, convidando para dar uma olhada no caminhão da Livraria Curitiba, que estava chegando à cidade. Quem sabe o Josué trouxe alguma coisa que te interesse, avisava. A tentação vencia a prudência e o saldo devedor era ampliado com mais três ou quatro romances e uns dois ensaios literários.

Fomos arrastando essa situação até 2009, quando A Sua Livraria fechou as portas. Esporadicamente, fui amortizando o débito, mas não tenho certeza se paguei tudo o que devia.

Insone, vi Berenice procura. Filme ruim, com personagens rasos. A sensação de decepção (o roteiro não deu conta do enredo) vai me obrigar a reler o romance de Garcia-Roza   para confirmar ou desmentir o que vi na tela da televisão.



sábado, 8 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXXVIII)

 

Na pré-adolescência, o irmão de um amigo era aluno do curso por correspondência técnico em eletrônica do Instituto Universal Brasileiro. Lembro que montou um rádio normal (onde podíamos ouvir o célebre slogan regional: Se a Clube não deu, é porque não aconteceu) e um rádio amador (que durante muito tempo foi uma forma de comunicação alternativa entre os malucos). Evidentemente, apesar do exagero, esse cara era visto pela família e pelos amigos como um cientista. Algum tempo depois, eles se mudaram para o litoral e perdi o contato. 

Lembrei-me disso, tantos anos depois, porque o tecnicismo está voltando à tona como parte do conceito neoliberal de divisão do trabalho. Aqueles que querem impedir que parte da população obtenha ascensão social, econômica e política estão defendendo a ideia de que o país não deve saturar o mercado com profissionais de curso superior. Nessa visão, parte da população apta para ingressar no mercado de trabalho (especialmente negros, pardos e pobres) deve se concentrar no ensino técnico, fornecendo, dizem eles, a base para que alguns setores da economia se desenvolvam com tranquilidade. E quem não conseguir uma formação técnica, deve se contentar com as demais funções, aquelas que exigem trabalho braçal e oferecem salários aviltantes.

Por trás desse conceito está um regime de subordinação do trabalhador. Algo similar ao antigo pensamento escravocrata de que não se deve misturar qualquer um com gente de bem e que cada um deve saber o seu lugar. Ao defender a reserva de mercado do ensino universitário (o que significa eliminar o sistema de cotas), a meritocracia emerge como uma força que quer, a qualquer custo, controlar as relações econômicas – e, simultaneamente, se recusa a dividir as relações de poder com aqueles que não possuem berço. Mais do que uma ressignificação do conceito Casa Grande & Senzala, confirma a segregação e o preconceito estrutural do Brasil.

A implantação do sistema de uberização de trabalho sanciona esse pensamento – e multiplica a precariedade em tempos de Covid-19. A exposição diária a uma possível contaminação (e a consequente perda do emprego e, talvez, da vida), além de rebaixar a cotação desses trabalhadores no mercado laboral, não fornece garantias básicas, pois os trabalhadores estão desprotegidos juridicamente pelas anomalias promovidas pela flexibilização das relações trabalhistas – que, mais uma vez, remete ao sistema escravocrata.

A reforma previdenciária, que ampliou o tempo de serviço, aumentou o valor das contribuições e implantou teto para o benefício da aposentadoria, produzirá, em médio prazo, uma horda de cidadãos em estado de pobreza absoluta. O Estado está implantando a necropolítica (ver o índice de suicídios entre velhos, no Chile, onde este tipo de experimento eugênico foi testado pela primeira vez na América Latina).

Por fim, a cruzada do Estado contra os sindicatos (um dos instrumentos mais eficientes de proteção dos direitos do trabalhador) ampliou o poder de pressão econômica do patrão, permitindo que os valores dos salários sejam determinados de acordo com a conveniência – e muito distante de alguma cifra que possa ser considerada adequada para remunerar a força de trabalho.

Resta para o trabalhador adotar o discurso da servidão voluntária ou procurar alternativas para se defender da opressão estatal. No final do ano teremos eleições. É uma possibilidade.