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sexta-feira, 27 de abril de 2012

NOTURNO EM LÁ MENOR

teus olhos fugindo fugindo fugindo

teus olhos perdidos escapando indo

nesta mesa de bar teus olhos quero

encontrar procuro atrás da cortina

debaixo do cinzeiro dentro do copo

nas lâmpadas (neon e ilusão) e nos

desconhecidos que coabitam o nosso

refúgio mas não sabem que os olhos

teus se perderam dentro da noite e

que eu estou procurando procurando

teus olhos verdes negros castanhos

azuis multicoloridos outros terão

os lábios molhados desejos vontade

porque encontrei sonhos dores medo

estampados no teu rosto (máscara e

agonia) e resolvi procurar por teu

olhar perdido dentro deste bar−mar

quinta-feira, 26 de abril de 2012

A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO, INCULTA E BELA (ETERNAMENTE MASSACRADA PELOS FARISEUS)

Por diversos motivos, inclusive políticos, não acredito em alma penada. Infelizmente, diante das circunstancias extremas que, neste momento, afligem a nação, não posso negar o óbvio: Policarpo Quaresma, personagem emblemático de Lima Barreto, ressuscitou! Versão fake, obviamente. E aparentemente mais raivoso e insensato do que na primeira aparição. No famoso romance, Policarpo é um nacionalista, modelo xiita, desses que preenchem as horas vagas com exaltações à geografia pátria e ao estudo do tupi−guarani. Combatendo incansavelmente o mundo externo, ele quer reduzir a vida brasileira a uma redoma de cristal − onde a felicidade sufocará quaisquer elementos que possam parecer estranhos ou exógenos.

Como a História é cíclica, não é possível impedir o ressurgimento do Dr. Frankenstein – sempre disposto a gerar novos monstros. O debate cultural brasileiro está repleto de exemplos (ruins) dessa insensatez. Não bastasse o projeto esquizofrênico de um Deputado Federal, que queria impedir a contaminação do idioma português pela língua inglesa, ignorando que o português é um organismo vivo, em constante mutação, também fomos atacados pela banda podre dos caçadores de erros lingüísticos. Uma cartilha oferecida pelo Ministério da Educação foi bombardeada pela malta mais refratária à inteligência porque, absurdo dos absurdos, ousou propor o coloquialismo como ponte para a aquisição do conhecimento. Indivíduos inequivocamente ignorantes nas questões vernaculares se insurgiram contra essa libertinagem. Ora, ora, onde é que já se viu tamanha barbaridade!, disseram a mancheias os hipócritas. Tanto incomodaram que foi preciso recolher parte do material. Recentemente, a quadrilha dos politicamente corretos tentou transformar Monteiro Lobato em racista – uma bobagem tão insensata que sequer merece ser comentada.

A última novidade nesse mar de genialidade foi produzida em Minas Gerais. Um Deputado, engenheiro civil, protocolou na Assembleia estadual projeto proibindo a distribuição, na rede pública e privada, de publicações didáticas, paradidáticas e literárias com conteúdo contrário à "norma culta" ou que viole o "ensino correto" (???) da gramática do idioma nacional. O projeto também quer impedir a veiculação de conteúdos que apresentem conteúdo sexual, com descrições de atos obscenos, eróticos, e referências a incestos. Apologias e incentivos diretos ou indiretos à prática de atos criminosos também estão vetados.

Ao longo da história humana, os fariseus sempre tiveram a pretensão de ser mais realistas do que o rei.

A norma culta é apenas um parâmetro de inteligibilidade, não é uma regra de conduta social. Ninguém é mais inteligente ou preparado para a vida se não dominar a gramática ou a ortografia. No entanto, vigora uma proposta ideológica de que o desenvolvimento intelectual precisa estar conectado com o domínio pleno das regrinhas chatas - aquelas que determinam as diferenças entre “certo” e “errado” (como se isso, certo e errado existisse!). Esse pensamento reacionário está ligado com outra questão: a divisão clássica entre pobres e ricos, entre dominantes e dominados. Aqueles que estudam, sabem ler e escrever, determinam lugares no mundo - de  onde escravizam os outros. E esquecem que nem mesmo os estudiosos da gramática conseguem dominar a amplitude do conhecimento, pois, como acontece frequentemente, raras são as vezes que se mostram preparados para resolver questões práticas. E a prática é simples: comunicação é prioridade. Entre escrever pela norma culta e saber se expressar adequadamente, a segunda opção precisa prevalecer! Outra coisa, no entanto correlata, o nível de comunicação média entre profisionais "normais" é mediano (inclusive entre professores de diversas disciplinas escolares). Mas, isso não importa, porque sempre tem um sujeito ambicioso tentando mentir que sabe ler e escrever melhor do que os outros.

Não bastasse essa falácia, tem uma maior. Condicionar a literatura à tirania da norma culta é retroceder às trevas da Idade Média e do ridículo. Segundo esse obscuro deputado, nada mais resta senão condenar João Guimarães Rosa à enxovia, pão e água até que aprenda a escrever Ivo viu a uva. Ou alguma outra bobagem similar.

Por último, essa patuscada de conteúdo sexual ou erótico é outra piada sem graça. Parece até coisa de religioso (desses que preferem caçar bruxas em lugar de olhar para o próprio rabo). Por esse critério non-sense, os mineiros deverâo, a partir da promulgação do projeto, ignorar as obras de escritores como Rubem Fonseca, Carlos Drummond de Andrade, Luiz Vilela, Ivan Ângelo, Guiomar de Grammont, entre tantos outros.

Ou seja, Minas não há mais. Ou menos. Foi reduzida a uma mina, onde esconderam talentos, onde cercearam a liberdade criativa, onde escrever precisa de autorização dos censores.

A Alemanha nazista ficou célebre por diversos motivos. Um deles: censurar livros (que depois foram queimados em praça pública, como que a expurgar os pecados de quem não rezava pela cartilha oficial).


P.S.: Um trecho do poema No Caminho, com Maiakovski, do mineiro Eduardo Alves da Costa, merece ser lembrado sempre:

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

MEUS DIAS DE ESCRITOR

Quais são os limites entre o certo e o errado? Independente de discussões intermináveis, que envolvem os conflitos éticos e morais, muitas vezes a resposta está vinculada com o momento em que o conflito se apresenta. A vida está (de)composta por frágeis interesses (fama, vaidade, maldade, inveja, ciúme, cobiça). Poucos conseguem ter forças suficientes para resistir às tentações (obscuras, irresistíveis) do drama faustiano.

O romance Meus Dias de Escritor, de Tobias Wolff, está concentrado em um desses momentos críticos. O colégio interno onde o narrador estuda cultiva a literatura com o mesmo entusiasmo que outros colégios dedicam ao basquete ou ao baseball. Ao final de cada ano letivo, a escola convida um escritor célebre para uma palestra. O vencedor do concurso literário promovido em homenagem ao evento ganha o prazer de passar algum tempo na companhia do convidado. Além disso, o texto vencedor é publicado, com destaque, no jornal da escola.

Todos os integrantes do grupo que edita a revista literária Troubadour (George Kellogg, William White, Jeffrey Purcell e o narrador) sonham em conquistar essa honra. Inclusive, porque − deitados nos prazeres da meritocracia − eles se imaginam melhores escritores do que os outros alunos. Quase ninguém discorda dessa tese quando Kellogg escreve o poema vencedor no ano em que Robert Frost foi o convidado.

No segundo ano, a escola recebeu Ayn Rand e o concurso literário foi vencido por um "azarão": Big Jeff (primo de Jeffrey Purcell, conhecido como Little Jeff).

Aqueles que tinham ambição literária perceberam que precisariam se esforçar um pouco mais.

Certa noite, o narrador estava na redação da revista, nervoso demais para uma outra tentativa com a história que não estava conseguindo escrever. O convidado daquele ano era Ernest Hemingway. Depois de folhear algumas revistas antigas de outros colégios e de ler vários contos, encontrou (em uma revista de um colégio interno feminino), uma história muito bem escrita chamada Festa de Verão. Imediatamente se identificou com aquelas palavras − Voltei ao início e li de novo, dessa vez lentamente, sentindo o tempo todo a impressão de que meu cofre mais íntimo tinha sido arrebentado e saqueado, e todas as coisas escondidas espalhavam−se ali naquelas paginas. Desde a primeira frase eu olhava para o meu rosto.

Seguindo um exercício de redação criativa que praticava, começou a copiar a história. Sem pensar muito nas conseqüências − na medida em que ia transcrevendo a narrativa −, alterou alguns detalhes, mudou o gênero do narrador (era uma mulher). Enfim, intermediado pela máquina de escrever, transportou o conto alheio para os seus domínios.

No dia seguinte, inscreveu Festa de Verão no concurso. Transcorrido o tempo hábil, o resultado da competição se tornou público. O narrador de Meus Dias de Escritor foi contemplado com a honra de encontrar Ernest Hemingway.

Não demorou muito e alguém descobriu o engodo. A diretoria da escola recebeu uma cópia da página da revista onde o texto havia sido publicado originalmente. Não houve surpresa: expulsão – que foi realizada com a maior discrição possível.

Ironicamente, a desonestidade intelectual foi em vão. Hemingway não compareceu ao encontro com os alunos: suicidou−se em julho de 1961.

O fio narrativo só é recomposto muitos anos depois. As diversas pontas soltas se unem no emaranhado emocional que envolve a idade adulta (momento em que o passado é apenas uma sombra que tinha sido esquecida lentamente, sem preocupações, sem culpas). Em um encontro ocasional com um dos professores do colégio, o narrador descobre que não foi o único a ultrapassar a linha ética e moral. E − nos moldes de uma última lição escolar − descobre que, diante de uma situação constrangedora, para aqueles que possuem caráter, há várias formas de reagir, de se redimir e de gozar do prazer proporcionado pela redenção.

terça-feira, 24 de abril de 2012

A CONTADORA DE FILMES

Final dos anos 50, no norte do Chile. Algumas famílias se concentram em torno da mina de salitre. O fio da vida desaparecendo no trabalho pesado e na pobreza. Muitas vezes não há dinheiro para pagar pela comida. Um dos administradores faz agiotagem e penhora os documentos dos credores.

Nos finais de semana, a única diversão possível é ir ao cinema. Uma das famílias contorna o problema com uma solução criativa: cada um dos cinco filhos precisa assistir a um filme. A ideia é descobrir qual deles conseguirá contar melhor a história para os outros. A vencedora é a filha caçula, Maria Margarida. Combinando imaginação farta e interpretação teatral, a menina de 12 anos encanta a todos. E é, a partir desse momento, que ela descobre o seu lugar no mundo.

Ao mesmo tempo, passa a contribuir com a renda familiar. Como poucos podem ir ao cinema, o ingresso custa caro, a população da vila passam a se reunir na casa de Maria Margarida para ouvi−la contar os filmes. Aqueles que podem contribuir fazem pequenas doações. A fama da menina faz com que receba convites para contar os filmes aos velhos e doentes. Ou a aqueles que podem pagar por sessões extras. Em uma dessas vezes, sofre abuso sexual. Depois de muito pensar, conta para o irmão mais velho o que aconteceu. Algum tempo depois, o administrador da mina é encontrado morto.

Depois disso, sem muitas novidades, os dias e as noites transcorrem naquela região inóspita, próxima do deserto de Atacama. O pai de Maria Margarida, um alcoólatra que estava invalido, morre. Os irmãos se perdem no mundo. E surge a televisão.

Contar histórias e filmes perde a função. Na luta diária pela sobrevivência, manter a sanidade e a integridade corporal exige primazia. Maria Margarida se torna amante de um dos donos da mina.

Essa história simples e emocionante, com um final surpreendente (mas que só pode ser aquilatado por quem ler as 106 páginas dessa pequena joia) é o enredo da novela A Contadora de Filmes, escrita pelo chileno Hernán Rivera Letelier, autor do também genial O Fantasista.

Como um livro não é apenas um objeto para uso descartável, em que se deposita parte do conhecimento, para uso transitório, a editora Cosac Naify – seguindo a linha editorial que caracteriza suas excelentes publicações – apostou em projeto gráfico diferenciado, de extremo bom gosto. Não será surpresa, se até o final do ano, o volume ganhar algum prêmio específico!

segunda-feira, 23 de abril de 2012

XINGU

Para o aficionado pelo cinema nacional, a leitura de Minha Cerimônia do Adeus, texto escrito por Fernanda Torres e publicado na revista Piauí (n° 67, abril de 2012), sobre algumas historias relacionadas com as filmagens de Quarup, em 1989, serve de convite para assistir Xingu (Dir. Cao Hamburger, 2012), uma espécie de hagiografia cinematográfica dos irmãos Villas−Bôas.

Cláudio, Orlando e Leonardo Villas−Bôas foram, talvez, os maiores defensores da causa indígena no Brasil. No entanto, não fizeram o trabalho sozinhos. Nem que fossem super−heróis de história−em−quadrinho conseguiriam executar essa façanha. Sem a ajuda de inúmeros sertanistas (inclusive o médico Noel Nutels, que aparece de relance no filme) e algumas figuras públicas (Janio Quadros à frente) não teria sido possível, por exemplo, criar o Parque Nacional do Xingu, reserva indígena que garante a sobrevivência de diversas nações silvícolas.

Infelizmente, o roteiro de Xingu apostou na produção do artificialismo − na medida em que eliminou a análise crítica sobre alguns fatos. Simultaneamente, não soube resistir à ambicão de reproduzir a proposta estética dos documentários apresentados no National Geographic Channel. Em outras palavras, seguindo a ingenuidade defendida pelo triunfalismo da História, mostrar Orlando (interpretado por Felipe Camargo) com uma arara no ombro é muito mais interessante (e mais rentável economicamente) do que tecer análises sobre os episódios sangrentos que envolvem e encobrem a covardia predatória do homem branco. Não importa que os personagens repitam esse mantra (que o homem branco é o inimigo) toda vez que o conflito se instala, nada fazer contra é que é a questão. A mesma abordagem vale para as cenas que mostram várias brigas fraternas (representação grosseira, anestésica e alienante de que os sertanistas eram "gente como a gente").

Salvo episódios rápidos (ocupação violenta das terras indígenas, danos causados pela gripe e o início da Transamazônica), o filme não causa impacto. Ou estranhamento (exceto na última abordagem indígena). Parte dessa percepção, filtrada pelo uso indiscriminado do enquadramento politicamente correto (o filme utiliza com regularidade o plano americano), está relacionada com uma questão objetiva: o relacionamento superficial entre os homens brancos "bons" e os aborígenes. As questões políticas e economicas raramente são abordadas, pois o ângulo proposto pelo filme não as comportam. Nesse contexto, onde o folclore e o clichê se misturam indiscriminadamente, a figura indígena quase atrapalha. A missão civilizatória (que, em alguns momentos, se assemelha com algumas manifestações religiosas) dos irmãos Villas−Bôas é auto−suficiente. E isso significa que, para dar ares de verossimilhança ao filme e à crueldade (onde as nações indígenas são sempre vítimas), o filme está repleto de índios fantasiados de atores − todos comportadíssimos, dóceis, incapazes de lutarem por seus direitos. E por que fariam isso, se os irmãos Villas−Bôas lá estavam para protegê-los?

Comparado com outros dois filmes de ficção sobre a questão indígena brasileira, Quarup (Dir. Ruy Guerra, 1989) e Hans Staden (Dir. Luis Alberto Pereira, 1999), Xingu parece desenho animado. Diverte, mas não educa.

Enfim, se o espectador engajado (talvez depois de ter lido o artigo de Fernanda Torres) entrar na sala de cinema imaginando que verá um soco no estômago dos predadores, o melhor a fazer é desistir de Xingu – que, no máximo, não passa de um ridículo e comportado peteleco.

P.S.: Magnífica interpretação de João Miguel, como Cláudio Villas−Bôas.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A PELE QUE HABITO

O rosto nos identifica, diz o cirurgião plástico Robert Ledgard (interpretado por Antonio Bandeiras), no início do filme La Piel que Habito (Dir. Pedro Almodóvar, 2011). Não é verdade, como ele mesmo admite algum tempo depois. O que caracteriza exteriormente um homem ou uma mulher é o corpo. Poucas situações são mais angustiantes do que viver dentro de um corpo que não corresponde à projeção mental que o indivíduo faz de si mesmo. A figura da travesti, corpo em mutação, expõe esse descompasso.

Baseado no romance Mygale (Tarântula), de Thierry Jonquet, La Piel que Habito é, para dizer o mínimo, um filme desagradável. Com o passar do tempo e a multiplicação dos títulos que integram a sua filmografia, Almodóvar perdeu o senso de humor. Seus últimos filmes se caracterizam pela seriedade, pela melancolia, pela necessidade agressiva de causar desconforto no espectador. Parece outro. Definitivamente, não é mais aquele que dirigiu Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988) e Tacones Lejanos (1991). Será isso ruim? Difícil dizer, mas muitos fãs detestam essa fase negra de Almodóvar.

La Piel que Habito conta uma história trágica, onde o voyeurismo e a insensatez se misturam em uma argamassa de horror. Robert perdeu a esposa depois de um acidente automobilístico – ela estava fugindo com o amante (Zeca, irmão de Robert). A filha do casal sofreu uma tentativa de estupro durante uma festa. Seguindo a trilha das disfunções emocionais, a menina enlouquece. Mais tarde, suicida−se.

O que não pode conseguir o amor de um louco?, pergunta Marília, a dublê de empregada e mãe de Robert e Zeca. A resposta não é fácil, embora o filme tenha a pretensão de demonstrar − de maneira pouco ortodoxa − o que pode ocorrer no encontro entre o ódio sem limites e um homem sem compromisso ético, que deseja vingar a filha e recuperar o afeto da mulher que o abandonou.

Para que isso aconteça, Robert (que de certa forma lembra o personagem interpretado por Bandeiras em Atame!, de 1989) elabora um plano macabro − espécie de releitura a−pós−o−moderno dos mitos de Frankenstein (Mary Shelley) e Pigmaleão (George Bernard Shaw). Ou seja, criar um indivíduo, através de um corpo novo, e, seguindo a lei natural desse tipo de evento, permitir que a criatura domine o criador.

Vicente Guillén Piñero, o estuprador, é sequestrado. Depois de ser submetido a vários graus de tortura psíquica, é conduzido para o centro cirúrgico existente na mansão do médico, onde Robert realiza uma vaginoplastia no prisioneiro. Depois da troca de sexo, inúmeras outras cirurgias plásticas. Aos poucos, o corpo masculino vai perdendo suas características - e o corpo da mulher vai sendo modelado. Vicente se transforma em Vera Cruz, uma espécie de ressurreição da esposa morta de Robert.

A cruz que Vera (ou Vicente) precisa carregar está metamorfoseada em três prisões. Primeiro, a sensação desagradável de estar dentro de um corpo que não é o seu. Depois, o quarto onde vive. Trancado a chave, esse cárcere com algum conforto, estabelece os limites entre o permitido e o restrito. Para não enlouquecer, enquanto Robert inscreveu em seu corpo um relato de ódio, Vera, a prisioneira, escreve nas paredes do quarto um auto de resistência. São as palavras grafitadas na divisa entre os cômodos da mansão que estabelecem a sanidade.

A terceira masmorra reflete o que a criminologia denomina Síndrome de Estocolmo. Ou seja, a possibilidade da vítima (principalmente nos casos de seqüestro) se envolver emocionalmente com o seu carrasco. Essa transmutação afetiva resulta em dependência amorosa. O agressor se torna amante, o agredido se torna cúmplice. E a diferença entre uma coisa e outra esvaece na confusão mental.

Seja um ardil, seja efeito da sujeição aos caprichos do torturador, Vera passa a agir como mulher. Uma mulher apaixonada por Robert.

Essa máscara desaparece quando um jornal publica fotos de várias pessoas desaparecidas. Ao ver o rosto modificado pela correção estética, Vera/Vicente recupera a noção ética, embora o corpo marcado pela transformação física não possa mais ser corrigido – como se pode ver no desespero relatado na cena final.


quinta-feira, 19 de abril de 2012

e. e. cummings (1894−1962)

Edward Estlin Cummings gostava de assinar seus textos com letras minúsculas: e. e. cummings.

Entre 1911 e 1915 foi aluno de Harvard, especializando−se em literatura grega. Servindo no corpo de ambulâncias do exército estadunidense, foi voluntário na Primeira Guerra Mundial. O livro The Enormous Room, uma espécie particular de memórias do cárcere, publicado em 1922, relata o período em que esteve preso em campo de concentração francês. Depois da guerra, nos anos 20, visitou a Europa várias vezes. Nunca teve emprego fixo.

Foi poeta, dramaturgo, pintor, artista plástico. No entanto, é pouco (re)conhecido pelo público brasileiro, embora sua influência em alguns setores artísticos, principalmente na poesia concreta, seja decisiva para explicar algumas (a)venturas da vanguarda poética.

O poeta Augusto de Campos (junto com os dois outros integrantes do triunvirato concretista: Haroldo de Campos e Décio Pignatari) é provavelmente o grande responsável pela difusão da poesia de e. e. cummings no Brasil. A edição pioneira de Dez Poemas de e. e. cummings, publicada pelo Setor de Documentação do Ministério da Educação, em 1960, teve tiragem limitada. A segunda edição, 20 Poem(a)s, publicada em 1979, pela Noa−Noa (leia−se Cleber Teixeira), também teve pequena tiragem. Somente em 1986, com a edição de 40 Poem(a)s, publicada pela Brasiliense, é que ocorreu uma maior difusão (principalmente entre os jovens). A recente publicação de Poem(a)s, pela Editora da Unicamp, além de ampliar o número dos poemas traduzidos, também acrescentou material iconográfico.

e. e. cummings não é um poeta fácil, embora aborde temas universais (principalmente o amor e as relações sociais). Seus poemas se caracterizam pela distribuição não−convencional de versos e palavras no espaço (geo)gráfico e poético da página. Misturando letras maiúsculas e minúsculas (o que causa uma imagem tipográfica próxima de algumas proposições das artes plásticas), subvertendo a pontuação, desrespeitando as regras de separação silábica, explorando a sintaxe, a gramática e a fonética (de onde extrai sons e signos imperceptíveis ao olhar e ao ouvido educado pelas normas instituídas pela prosódia acadêmica), e. e. cummings é um revolucionário.

Embora seus poemas tenham sido influenciados pelo surrealismo e pelo dadaísmo, e. e. cummings conservou linearidade com a lucidez e a transmissão da mensagem poética. Em nenhum de seus textos há elementos excessivos ou ornamentais.

e. e. cummings publicou mais de 900 poemas, distribuídos em cerca de uma dezena de livros. Mas, foi somente a partir dos anos 50 do século passado é que se tornou uma das vozes mais importantes da poesia ocidental. Entre 1952 e 1953, proferiu uma série de palestras em Harvard: i: six nonlectures.

Vítima de ataque cardíaco, faleceu em 1962. No ano seguinte foi publicada uma coleção de poemas inéditos: 73 Poems.

P.S.: O grande problema das traduções de Augusto de Campos (que são excelentes) é uma preocupação excessiva com o grafismo e nenhuma com os poemas mais líricos. Assim, para o leitor dessas traduções, fica a impressão truncada de que ele era um poeta formalista – hipótese agradável para justificar o paideuma concretista e absolutamente injusta com a riqueza poética de e. e. cummings.



quarta-feira, 18 de abril de 2012

MENINO DE LUGAR NENHUM

A infância e a adolescência são parte do território sagrado em que a literatura inglesa está encastelada. Basta lembrar as fantasias que envolvem Peter Pan (James Barrie) e Alice no País das Maravilhas (Lewis Carrol). Ou a assustadora crueldade facilmente encontrável em romances como Oliver Twist (Charles Dickens), O Senhor das Moscas (William Golding) e Reparação (Ian McEwan). São incontáveis os livros que abordam as questões relacionadas com a iniciação amorosa e sexual. Normalmente, esses Bildungromans (Romances de Formação) englobam desde algumas das narrativas escritas por Jane Austen até textos contemporâneos como O Mar e Luz Antiga (John Banville), Por Acaso (Ali Smith), A Biblioteca da Piscina (Allan Hollinghurst). A descoberta do mundo, com suas mentiras e decepções, está descrita em romances de primeira qualidade como Uma Escola para a Vida (Muriel Sparks), Império do Sol (J. G. Ballard), Dentes Brancos (Zadie Smith), Bem−vindo ao Clube (Jonathan Coe), Não me Abandone Jamais (Kazuo Ishiguro) e O Dom de Gabriel (Hanif Kureish).

Na Grã−Bretanha, David Mitchel (ainda) não é considerado um escritor do primeiro time − apesar de ter publicado um romance emblemático, Cloud Atlas, ganhador, entre outros prêmios, do British Book Awards Best Literary Fiction, de 2003. No mesmo ano, Mitchel foi eleito pela revista Granta um dos melhores escritores jovens da Inglaterra.

Mas quem disse que o mundo precisa fazer sentido?, pergunta Jason Taylor, 13 anos, narrador e personagem principal de Menino de Lugar Nenhum, romance finalista do Man Booker Prize, de 2006. Ninguém – poderia ser uma boa resposta. Mas, provavelmente não é o suficiente. Falta, no mínimo, uma pequena dose de humor. Afinal, como disse um especialista em romances de entretenimento, o estadunidense Tom Clancy, Você sabe qual é a diferença entre a ficção e a realidade? A ficção precisa ter sentido. E isso significa que os frutos da imaginação precisam estar mais próximos do real (seja lá o que isso for) do que o real. Na modernidade, onde muitos conceitos são fluídos, voláteis, poucos conseguem administrar essa contradição, esse sofisma, esse impasse. Talvez porque o enigma não admite solução, talvez porque existe solução.

A história que Jason conta para o leitor é uma forma de defesa contra as ofensas da vida. E elas, as ofensas, são muitas. Algumas são fantasmas – espectros que adquirem existência quando a mente, na falta de melhor coisa para fazer, resolve enlouquecer. Outras são autênticas, palpáveis, capazes de machucar − como a separação dos pais. Há aquelas fáceis de entender − como a turma de valentões do colégio. Também existem as incompreensíveis − como a Guerra pelo controle das ilhas Falklands (Malvinas), lugar para onde alguns jovens ingleses são enviados para morrer.

Depois de uma série de infortúnios e algumas alegrias, Jason acumulou inúmeras cicatrizes. E o propósito da sua narrativa está no estabelecer esse andamento, esse desconforto. Ao mesmo tempo, ele quer retratar − com honestidade, com sensibilidade − a geração que sobreviveu ao deplorável espetáculo protagonizado por Margareth Thatcher, a mulher que quebrou a espinha do Estado inglês e abriu as portas do Império para o capitalismo selvagem. Evidentemente, a senhora primeiro−ministro não levou em consideração as necessidades da população − que precisou sobreviver a um dos maiores índices de desemprego da história inglesa recente. A economia é a guerra por outros meios, deve ter sussurrado algum burocrata inepto. Ou melhor, Os fins justificam os meios, como recomenda o manual dos políticos eternamente "interessados" no bem−estar do povo.

Com uma prosa finamente elaborada, mistura de humor com ingenuidade, crueldade com lirismo, David Mitchel conseguiu, através da voz de Jason Taylor, produzir um romance de qualidade – que talvez possa ser resumido no axioma elaborado pelo menino de quase 14 anos: O mundo é um diretor de colégio que pune nossos erros.

terça-feira, 17 de abril de 2012

TEATRO

Na contracorrente do capitalismo predatório e da massificação produzida pela reprodutibilidade técnica, o teatro provavelmente é a única forma artística que ainda não perdeu integramente a aura. Por maiores que sejam os percalços impostos pela contemporaneidade, ainda é instrumento de resistência contra as iniqüidades sociais e econômicas que devoram, com o perdão do clichê, corações e mentes. No entanto, essa semi−independência não foi conquistada sem concessões. Ficaram para trás inúmeros ideais − provavelmente estendidos no proscênio do palco italiano das ilusões perdidas. Em outras palavras, a qualidade e o compromisso com a transformação social já não são mais os mesmos. A dramaturgia produzida por William Shakespeare, Anton Tchekhov, Henrik Ibsen, August Strindberg, Luigi Pirandello, Bertolt Brecht, Eugene O’Neill, Jean−Paul Sartre, Harold Pinter ou Dario Fo, entre outros, desapareceu no pó da estrada que leva o nada ao lugar nenhum.

Ir ao teatro é um ritual de passagem. A breve ansiedade de chegar uns quinze minutos antes do horário se soma ao prazer de ouvir o sinal que indica o inicio da peça. Assistir a um espetáculo que jamais vai se repetir, mimeses do axioma de Heráclito de Éfeso (Ninguém se banha duas vezes nas águas de um mesmo rio), se assemelha a uma dádiva divina. Impossível roubar essa experiência dionisíaca.

Entre o abrir das cortinas e o corpo que se ajeita na poltrona, uma coleção de minúcias se desenvolve em torno da imaginação. Lá atrás do cenário, entre o camarim e a boca de cena, os últimos detalhes quase enlouquecem quem trabalha na produção. Enquanto a ação dramática recorta os acontecimentos no limite da proposta narrativa, somem copos e corpos que deveriam aparecer no primeiro ato. Atores ensaiam crises histéricas enquanto roldanas rangem. Alguém corre para lá e para cá, tentando encontrar o fio desconectado que impede que a aparelhagem musical funcione. Improvisação é a palavra mágica que permite transformar a fantasia em realidade. Seria trágico, não fosse comédia.

O teatro se confunde com a vida. Somos cínicos. Somos cênicos. Durante a duração do espetáculo, o faz de contas substitui os fatos, impõe outra ilusão. O jogo das aparências, construído pela narrativa, esconde a bagunça dos bastidores – qualquer semelhança com as relações políticas jamais será mera coincidência.

Apagam-se as luzes, holofotes se concentram no palco, a música começa a tomar conta do ambiente, nada mais importa. A vida é sonho, como disse Calderón de La Barca.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A FESTA

O romance A Festa, escrito por Ivan Ângelo, em 1976, pode ser descrito de diversas maneiras. Talvez a mais apropriada seja anticonvencional. Com uma estrutura de quebra-cabeças (que lembra O Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortázar, e alguns experimentos do Nouveau Roman), a narrativa é composta por textos semelhantes a contos e que sugerem diversas ordens de leitura.

Do ponto de vista formal, a narrativa está dividida em duas partes, que podem ser identificadas por um interessante recurso editorial. A primeira parte, impressa em papel comum, está dividida em oito episódios e abrange 133 páginas. A segunda parte, 58 páginas impressas em papel colorido, consiste em 61 notas explicativas aos fragmentos da primeira parte.

O enredo também não é de fácil entendimento. Puro labirinto onde é fácil se perder. Centrado em Belo Horizonte, há um entrecruzamento de inúmeras histórias e que culminam em uma festa promovida por Roberto J. Miranda (amante de Lúcio, noivo de fachada de Andrea). Antes do evento social, a narrativa está focada na repressão policial e política contra um grupo de nordestinos famintos (liderados por Marcionílio de Mattos) e que acabaram de chegar à cidade. Embora jamais se encontrem, um jornalista (Samuel) e um funcionário público (Carlos) se envolvem na confusão. Um morador próximo, testemunha ocular das arbitrariedades policiais, Ataíde, acaba preso – sua esposa, Cremilda de Tal, vítima de chantagem, mantém relações sexuais com integrantes dos órgãos de repressão política. Um casal, Candinho e Juliana (amante de Carlos), se odeia e planeja a destruição mútua. O marido envenena um bolo com arsênico e oferece à esposa. Para não despertar suspeitas, também come um pedaço. A empregada, Lady, segundo a regra de ouro da investigação policial de que o culpado é o mordomo, é acusada de duplo homicídio. A vida sexual da jornalista Andrea é devassada em uma delegacia. A festa foi invadida por um bando de rapazes, que destruíram o apartamento.

A multiplicidade de histórias, algumas ocorrendo simultaneamente, permite uma tessitura narrativa rica, plural e, em alguns momentos, confusa – confirmando que o diabo se esconde nos detalhes. Misturando opressão estatal, erotismo, dramas burgueses e luta de classes, além de intercalar vários estilos e pontos de vista narrativos, o romance, em alguns momentos, assemelha-se a um Samba do Crioulo Doido. Por isso, talvez a leitura mais adequada seja a de intercalar o texto da primeira parte com as notas referentes da segunda parte. De qualquer forma, nesse jogo entre o aparente e o real, a possibilidade de falta de entendimento é significativa. O quadro total demora a surgir – fato que traduz um dos maiores problemas desse tipo de construção literária: os leitores mais impacientes abandonarão o livro antes do fim da narrativa.

Romance político por excelência, A Festa não resistiu ao desgaste do tempo. Provavelmente só é lembrado por alguns arqueólogos literários. Além de a forma estrutural exigir uma atenção desnecessária em romances pré-roterizados para o cinema e televisão, o pouco interesse nas complicações históricas dos anos 70 do século passado não é suficiente para eliminar o hiato criado em torno do discutível compromisso da literatura com as questões de seu tempo. Como é de conhecimento geral, amplo e irrestrito, a literatura brasileira escolheu deixar que esses temas desapareçam nas páginas dos livros de História.

De qualquer forma, seja um romance datado (ou não), seja um texto difícil de ser lido (ou não), A Festa é um vigoroso exercício de criatividade e uma prova inconteste de que é possível conciliar literatura, política e forma estética.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

HISTÓRIAS DE LITERATURA E CEGUEIRA

Ler e escrever são atos visuais. São os olhos que definem as cores e os contornos do mundo literário. Sem a córnea, o cristalino e a íris, emerge a necessidade de alguém auxiliar na construção da escritura, a quebrar o protocolo solitário da criação. São os olhos e as mãos que percebem e manejam o texto, que corrigem as palavras, as frases e os sentidos. E estabelecem a fluência narrativa. A visão compõe a ilusão de que ler é compreender as histórias que foram gravadas no papel com tinta (real, virtual, invisível).

Alguns escritores ficaram cegos. O final de suas vidas se tornou opaco, mineral. Entre óculos e bengalas, três casos clássicos: Jorge Luis Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce. O primeiro amargou trinta anos de absoluta escuridão. O segundo ficou sem ver as cores por quase oito anos. O terceiro, envolto em sofrimentos e desamparo, foi perdendo lentamente a visão.

Todos eles morreram no escuro, próximos de repetir o mote goethiano: Mehr Licht! (Mais luz!).

Julian Fuks (Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e Eu, 2004), escreveu três narrativas ficcionais em torno desse trio. Agrupou esses textos em um único volume, Histórias de Literatura e Cegueira (Borges, João Cabral e Joyce).

Felizmente, não se deixou levar pelas referências dos mitos gregos (Tirésias, Édipo). Também não quis orbitar em torno de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Sequer ousou a pesquisa linguística ou o experimento com diversos narradores de Blindness, de Henry Green. Ganhou o leitor.

Infelizmente, por algum motivo inexplicável, tentou se aproximar do estilo consagrado por cada um dos homenageados. Perdeu o leitor. Certas narrativas se tornam desconfortáveis ao tentar emular o que não precisa ser imitado.

Histórias de Literatura e Cegueira está dividido em três partes independentes e que relatam particularidades de cada um dos casos. Borges parece uma marionete, manipulado por sua mãe, Leonor, e pela esposa, Maria Kodama. Fora dessa narrativa carcerária, o texto oscila entre a Buenos Aires sem substância e a Genebra inexpressiva. Os lugares-comuns que identificam a linguagem borgeana se repetem ao longo do texto na tentativa pouco espessa de refazer o velho truque da verossimilhança. Entre bibliotecas e poemas, o Outro não se faz presente. Um tédio sem fim.

João Cabral recebe a visita de um jornalista que o quer entrevistar. Dentro da sala, fantasiado de Manolete em arena catalã, o rapaz não consegue realizar o trabalho que se propôs. Falta-lhe coragem para provocar o Miura, sobra-lhe admiração pela poesia do dono da casa. Por outro lado, João Cabral nada mais tem a dizer. Os versos não mais fazem parte de sua vida. O que quer é que a dor-de-cabeça diminua e os dias não sejam longos. Nesse deserto de ações e ideias, há uma interrupção. Inez, uma das filhas de João Cabral, aparece para ler para o pai. Toda a cena é a descrição do desastre. A leitura é insípida. O ambiente é inóspito. A linguagem do texto e, por extensão, a do narrador do conto sobre João Cabral, é seca e árida. O Nordeste imitado não é o Nordeste, é imitação.

Nada é mais descartável (e, consequentemente, mais atual) na contemporaneidade do que construir um pastiche da linguagem joyceana. Parece moderno. O velho – embrulhado para presente – sendo apresentado como novo. As palavras-valises ofuscam as informações. Diante dos malabarismos linguísticos, o desnecessário prevalece. O texto, pretexto para escrever sobre o nada, transforma-se em tapume a impedir a visão dos leitores, lençol branco estendido diante dos globos oculares.

Dizem que Julian está com um novo livro à disposição dos leitores nas prateleiras das livrarias, Procura do Romance. Vou comprar um exemplar, ansioso para me livrar da má impressão que Histórias de Literatura e Cegueira causou.



quinta-feira, 12 de abril de 2012

MANUEL BANDEIRA: NA VIDA INTEIRA QUE PODIA TER SIDO E QUE NÃO FOI

José Paulo Paes, em um poema gráfico, publicado nos anos 80 do século passado, trabalha com um jogo de palavras em que a palavra menor se transforma em enorme. É um milagre alquímico – o sonho de qualquer poeta que ambiciona conciliar forma e conteúdo. Ao mesmo tempo, é a mais completa tradução da poesia de Manuel Carneiro de Sousa Bandeira (1886-1968).

Bandeira foi uma metáfora viva, hasteada em lugar privilegiado. Ou melhor, uma declaração pública de que existem elementos primordiais para enfrentar a escuridão daqueles que viveram (ainda vivem) dentro da caverna. Com versos aparentemente fáceis, sem ingredientes épicos, parece indicar distância do altar sagrado dos grandes temas. Quem pensa assim, obviamente, está equivocado. Debaixo dessa toalha isenta de bordados se esconde uma mesa de mármore, onde as emoções são dissecadas agilmente pelo bisturi da poesia. Um dos prazeres propostos pelos versos de Manuel Bandeira está em revelar que a existência humana está entrelaçada por sutilezas de infinita complexidade, o comum e o raro reunidos em torno da imensidão social. Centrado em três vertentes básicas (a infância, o amor e a morte), o poeta não hesitou em descrever o sentimento lírico com incontornável beleza. Além disso, como que a se proteger das agressões da vida urbana, construiu um paraíso particular: É outra civilização / Tem um processo seguro / De impedir a concepção / Tem telefone automático / Tem alcalóides à vontade / Tem prostitutas bonitas / Para a gente namorar.

Talvez esse afastamento do mundo “real” esteja escorado no medo da morte. A indesejada das gentes visitou Manuel Bandeira quando ele tinha 18 anos. Não queria levá-lo – ainda. Mas, deixou um aviso bem claro de que a vida é transitória, e que a tuberculose é apenas um dos muitos meios com que as Parcas se apropriam das almas. O poeta não se deixou abater, apesar da doença não ter cura na época. Na procura por um lugar onde pudesse ter algum sossego, morou em lugares tão dispares como Campanha, Teresópolis, Maranguape, Uruquê e Quixeramobim. Quase dez anos após os primeiros sinais da moléstia, arrumou as malas e, em 1913, foi passar uma temporada em Clavadel, na Suíça. Ficou amigo de Paul Éluard e voltou melhor um ano e pouco depois, cheio de idéias, repleto de poemas. Publicou seu primeiro livro, Cinza das Horas, em 1917. Foi com poesia, humor amargo e ironia que driblou as ameaças, afastou o pessimismo e passou a viver intensamente, como se cada dia fosse o último. Paradoxalmente, viveu até os 82 anos, Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei..., como escreveu naquele poema dedicado a outro poeta do existir, Jaime Ovalle.

A vida pessoal de Manuel Bandeira pode ser descrita como discreta. No entanto, ele teve inúmeras namoradas. Nos últimos anos de sua vida viveu maritalmente com Maria de Lourdes Heitor de Souza.

Parte importante da história de Manuel Bandeira está retratada no depoimento autobiográfico Itinerário de Pasárgada, onde, em forma de depoimento (e testamento) literário, conta algumas histórias da infância e da formação literária. Também menciona amigos, livros e autores que o influenciaram. Além disso, o professor de literatura do Colégio Pedro II (Rio de Janeiro) não economizou nas lições pedagógicas e revela segredos do difícil ofício que escolheu para expressar os tormentos que o afligiam. Esse livro, monumental documento histórico, somente foi escrito depois de insistentes e impertinentes pedidos de Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, discípulos e admiradores do poeta.

Embora não tenha participado pessoalmente da Semana de Arte Moderna, em 1922, sua obra poética costuma ser mencionada como integrante daquela proposta revolucionária. Parte desse entendimento está relacionada com a amizade que teve com Mário de Andrade e porque Ronald de Carvalho leu um de seus poemas, Os Sapos, durante o evento. Mas, como lembra Bandeira, (...) não quisemos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca repudiamos o soneto nem, de um modo geral, os versos metrificados e rimados. Em seguida, complementa, como que a pedir desculpas pela falta: Pouco me deve o movimento; o que eu devo a ele é enorme. Não é só por intermédio dele que vim a tomar conhecimento da arte de vanguarda na Europa (da literatura e também das artes plásticas e da música), como me vi sempre estimulado pela aura de simpatia que me vinha do grupo paulista.

Publicou Ritmo Dissoluto (1924), Libertinagem (1930) e Estrela da Manhã (1936). Em 1940 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Sua obra literária não se restringe à poesia. Publicou resenhas literárias, algumas traduções (de excelente qualidade) e vários ensaios.

No dia 13 de outubro de 1968, Manuel Bandeira morreu, vítima de hemorragia gástrica. Aquele que pediu para ser perdoado por ser um poeta menor engrandeceu a literatura brasileira.


PORQUINHO-DA- ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava.
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.


CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite e seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
com cada coisa em seu lugar.





quarta-feira, 11 de abril de 2012

TRINTA FRASES DE MILLÔR FERNANDES

Considero o máximo da habilidade político-econômica a desses caras que se locupletam no capitalismo entrando pela esquerda.

– De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência.

Se os seus princípios são rígidos e inabaláveis, você, pessoalmente, já não precisa ser tanto.

– A mulher do vizinho é sempre mais magra do que a nossa.

Precisamos de reformas drásticas, que deixem tudo exatamente como está.

– Os flashes dos fotógrafos são relâmpagos que ameaçam a nossa vaidade.

Quem não tem lenço se despede menos.

– Pé-de-atleta é uma doença facilmente curável: cérebro de atleta é que não tem cura.

Quando um cara diz que fala por experiência é porque ainda não adquiriu experiência bastante para calar a boca.

– A Academia Brasileira de Letras se compõe de 39 membros e um morto rotativo.

A maior vantagem da comida macrobiótica é que, por mais que você coma, por mais que encha o estômago, está sempre perfeitamente subalimentado.

– Não gosto da direita porque ela é de direita, e não gosto da esquerda porque ela é de direita.

A História do Brasil não é a mesma no Paraguai.

– Nós, os humoristas, temos bastante importância para ser presos e nenhuma para ser soltos.

Anarquia é apenas um regime em que você dá ao palhaço a administração do circo. (E quase sempre ele é muito bem sucedido).

– A diferença entre o dinheiro miúdo e o dinheiro graúdo é que este, naturalmente, fala mais alto.

Se todos os seres humanos tivessem ouvido realmente apurado, nenhum idiota teria coragem de inventar o acordeom.

– Algumas mulheres se acham tão lindas que, quando se olham no espelho, não se reconhecem.

Roube ainda hoje! Amanhã pode ser ilegal.

– À noite (na penumbra aconchegante das alcovas permissivas) todos os pardos são gatos.

O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris.

– Cuidado com as imitações – sexo só existem dois.

Não desespere. Muita coisa pode acontecer entre o machado e a cabeça.

– O que prejudica nossa imprensa é a mania de certos cidadãos se defenderem quando são atacados.

O homem é o único animal que come sem fome e vai para a cama de pau mole.

– Alguns livros são do tipo que, quando você os larga, não consegue pegar mais.

Se eu consultasse médicos, já estaria morto há muito tempo.

– Quem diz que ninguém é perfeito é porque nunca lidou com um perfeito idiota.

Os cavalos não apostam nos homens.

– Já estou vendo o pus no fim do túnel.

terça-feira, 10 de abril de 2012

CLIFFORD “CLIFF” JANEWAY

Livros e crimes violentos. Com essa proposta o estadunidense John Dunning escreveu uma série de romances. Literatura de entretenimento. Primeira classe. O protagonista, Clifford Janeway, Cliff para os amigos, se desdobra em dupla jornada de trabalho: desvendar mistérios relacionados com bibliofilia e administrar a livraria Twice Told Books, em Denver (Colorado). Essa situação é conseqüência de um momento de insanidade. Coisa pouca se levarmos em consideração a longa tradição de machos-alfa (Philip Marlowe, Sam Spade acenando da primeira fila) que povoam a literatura que mistura ação, mistério e aquelas histórias que alegram as páginas mais sangrentas dos piores jornais.

Cliff Janeway é definido por uma das personagens femininas de Edições Perigosas de uma maneira pouco simpática: Você traz a violência debaixo do braço. Ela o acompanha aonde quer que vá. Você a carrega como outros homens carregam valises. Definitivamente, esse não é o melhor cartão de visitas que poderia ser apresentado a alguma moçoila indefesa ou “femme fatale” com quem ele poderia protagonizar travessuras de cama, mesa e banho.

Depois que pediu demissão da polícia, Janeway preferiu ganhar a vida ou gastar o tempo comprando e vendendo livros antigos – edições raras, fora do mercado, somente acessíveis para uma meia dúzia de afortunados (em vários sentidos). Ou seja, pelo pior motivo possível se tornou um especialista na arte de negociar um tipo muito especial de brinquedo para adultos com alto quociente de inteligência e auto-estima beirando o rodapé.

Infelizmente, por mais doce que seja essa atividade, onde o conhecimento e a paixão se misturam com a insensatez, Tudo se [resume] em dinheiro. (...) Precisaria de outras coisas – conhecimento, gosto, olho clínico, intuição, sangue de jogador, imaginação de prostituta. Mas, sem dinheiro, não se pode nem começar.

Essa lição, Janeway não precisou de muito tempo para aprender. Quase imediatamente descobriu que por trás de um bom lote de livros raros sempre existe uma história sórdida. O enredo de Edições Perigosas confirma esse palpite. Um dono de livraria ambicioso, alguns alfarrabistas (comerciante de livros no varejo) e um colecionador que talvez desconhecesse que guardava uma pequena fortuna em livros raros – são esses os ingredientes básicos (e suficientes) para equilibrar um texto dinâmico, repleto de diálogos e cenas sangrentas. Nenhum leitor que aprendeu a se divertir com a cartilha escrita por Raymond Chandler e Dashiel Hammet pode exigir mais do que isso.

O desfecho do mistério ocorre depois que as pistas, quase imperceptíveis, vão sendo espalhadas ao longo das páginas que compõem a planície narrativa. O jogo de esconde-esconde não apresenta muitas dificuldades. Leitores mais treinados nesse tipo de charadas chegam a solução do enigma antes do terceiro quarto do livro. Não tem importância. Dunning não escreve para competir com aqueles que adquirem seus livros. Quer divertir. E para isso competência não lhe falta. Tanto que, depois da última página, não é possível impedir a vontade de “quero mais”.

Todas as histórias protagonizadas por Cliff Janeway são narradas em primeira pessoa, uma forma explicita de revelar que o personagem que trabalha com livros também os escreve. E o faz de tal forma que a atividade literária se mostra complementar em todos os aspectos do saber.

Em outros livros da série, em lugar de ficar atrás do balcão, esperando que surja do nada algum cliente disposto a gastar pequena fortuna com os livros expostos na vitrina, Cliff Janeway revela incrível disposição para se envolver em confusão. Em Impressões e Provas, A Promessa do Livreiro, Assinaturas e Assassinatos, O Último Caso da Colecionadora de Livros, seja ao contar a história da procura por um exemplar raríssimo de O Corvo (Edgar Allan Poe) ou recuperar um lote de livros roubados a muito tempo, seja em histórias relacionadas com livros autografados ou coleção de livros infantis, o prazer do leitor está garantido.

Sem se preocupar em economizar hematomas e conquistas amorosas, Janeway, por mais que goste de livros, nunca se libertará da pesada carga que o destino colocou em suas costas: resolver crimes.