Páginas

sábado, 24 de novembro de 2018

WISLAWA SZYMBORSKA: SEIS POEMAS

Wislawa Szymborska (1923 - 2012)



POSSIBILIDADES

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outras coisas com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para somar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão.




TEM AQUELES QUE

Tem aqueles que executam a vida de modo eficaz.
Põem ordem em si mesmos e ao seu redor.
Têm resposta correta e jeito para tudo.

Adivinham logo quem a quem, quem com quem,
com que objetivo, por onde.

Batem o carimbo das verdades únicas,
colocam no triturador os fatos desnecessários,
e as pessoas desconhecidas
em fichários de antemão destinados e elas.

Pensam só o quanto vale a pena,
nem um instante mais,
pois detrás desse instante espreita a dúvida.

E quando recebem dispensa da existência,
deixam o posto
pela porta indicada.

Às vezes os invejo
– por sorte isso passa.




FILHOS DA ÉPOCA

Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
 são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferencia cuja forma
se discutia por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casa, ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.




MAPA

Plano como a mesa
na qual está colocado.
Por baixo dele nada se move
nem busca vazão.
Sobre ele – meu hálito humano
não cria vórtices de ar
e toda a sua superfície
deixa em silêncio.

Suas planícies, vales são sempre verdes,
os planaltos, montanhas amarelas e marrons
e os mares, oceanos são de um azul amistoso
nas margens rasgadas.

Tudo aqui é pequeno, próximo e acessível.
Posso tocar os vulcões com a ponta da unha,
acariciar os polos sem luvas grossas.
Com um olhar posso
abarcar cada deserto
junto com um rio situado logo ao lado.

As selvas são assinaladas com algumas árvores
entre as quais seria difícil se perder.

No oriente e ocidente,
acima e abaixo do equador –
como poeira assentou o silêncio
e em cada partícula
pessoas vivem lá suas vidas.
Valas comuns e súbitas ruínas
não cabem nesse quadro.

As fronteiras dos países mal são visíveis
como se hesitassem entre ser e não ser.

Gosto dos mapas porque mentem.
Porque não dão acesso à verdade crua.
Porque magnânimos e bem-humorados
abrem-se na mesa um mundo
que não é deste mundo.




GATO NUM APARTAMENTO VAZIO

Morrer – isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes. Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não acende.

Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Algo aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até um regra foi quebrada
e os papeis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho
sobre patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.




VIDA DIFÍCIL COM A MEMÓRIA

Sou um péssimo público para a minha memória.
Ela quer que eu ouça sua voz incessantemente,
mas eu me agito, tusso,
ouço e não ouço,
saio, volto e saio de novo.

Ela requer todo o meu tempo e atenção.
Quando durmo, é fácil para ela.
De dia já nem tanto, o que a magoa.

Me propõe zelosamente velhas cartas, fotos,
resolve fatos importantes e desimportantes,
devolve a vista para paisagens ignoradas,
e povoa-as com os meus mortos.

Nos seus relatos sou sempre mais jovem.
Isso é bom, mas por que sempre essa história?
Cada espelho me dá outras notícias.

Irrita-se quando dou de ombros.
E então se vinga remexendo todos os meus erros,
graves, mas que já não pesam.
Me olha nos olhos, espera minha reação.
Por fim me consola; podia ter sido pior.

Quer que agora eu viva só para ela e com ela.
De preferencia num quarto escuro e fechado,
mas nos meus planos ainda figuram o sol presente,
as nuvens atuais, as estradas correntes.

Às vezes fico farta de sua companhia.
Proponho nos separarmos. De hoje para sempre.
Então sorri com complacência,
sabe que também para mim seria uma condenação.  


PS 1) Todos os poemas foram traduzidos por Regina Przybycien. 
PS 2) Segundo Regina Przybycien, a pronúncia para Wislawa Szymborska é, mais ou menos, Vissuáva Chembórska. 

domingo, 11 de novembro de 2018

PAI, PAI


Há quem acredite que uma das mais significativas metáforas para caracterizar a família está na expressão “moedor de carne”. As almas mais sensíveis consideram essa ideia uma extravagância, alegando que o processo civilizatório nos afastou da barbárie. Não é isso o que pensam nove entre dez estudiosos do tema, lembrando que o otimismo higienizador ignora que a estrutura familiar está alicerçada na violência (simbólica, imaginária, concreta).   

O relacionamento entre pais e filhos não foge da regra geral. A inveja, a luta pelo poder, o complexo de Édipo, a mesquinharia – são incontáveis os motivos para que a confusão se instaure diariamente. 

Além disso, as demandas específicas de cada uma das partes (muitas vezes genuínas) raramente são atendidas na integralidade. A agressividade surge como uma resposta imediata para a ausência de satisfação. 

Escrito com fúria e obsessão, mágoa e coragem, Pai, Pai, de João Silvério Trevisan, está além do depoimento autobiográfico. Manejando o bisturi literário, o escritor esgaçou o tecido social e, na medida em que a razão superou a emoção, procurou mostrar parte das vísceras do mundo doméstico. Essa visão têm a seu favor o desmascaramento do idealismo. Raramente a família se transforma em sinônimo do paraíso.

Menino que não se enquadrava no rótulo da masculinidade projetada pelo pai, em determinado momento Trevisan imaginou que poderia escapar do horror familiar. Aos dez anos de idade, apoiado pela mãe, ingressou em um seminário católico. Como era de se prever, a tentativa foi infrutífera. No mínimo, trocou uma tortura por outra. Os estudos religiosos estavam atrelados a uma série de regras severas – e que tinham como objetivo controlar o corpo e a mente dos alunos. Não foi fácil se adaptar a essa reclusão ordenada.

Além das muralhas do seminário, assombrado pelas lembranças do pai alcoólatra e violento, Trevisan percebe rapidamente que não basta se pretender órfão da paternidade. Isso é ilusão. A ausência do afeto não abre espaço para qualquer coisa que não seja o afeto. 

Simultânea aos problemas parentais, a explosão hormonal da adolescência. O corpo de outros rapazes projetando o desejo. Esses impulsos, pouco aceitáveis em quem se propõe a seguir a carreira sacerdotal, foram sublimados intelectualmente com leituras e uma nova paixão, o cinema. Foi no cineclube que fundou no seminário que Trevisan expandiu o horizonte e forneceu uma nova perspectiva para sua vida.

Depois de dez anos vivendo a castração afetiva e intelectual, não foi possível adiar a decisão extrema: Trevisan abandonou o seminário. Romper com as amarras do constructo religioso configura – naquele instante – um caminho menos doloroso do que ficar aprisionado mentalmente no interdito. Evidentemente, essa escolha, qualquer escolha, implica em enfrentar (e superar) outras barreiras. O mundo fora da redoma eclesiástica se apresentou pouco amistoso. As armadilhas se multiplicaram. E, nesse instante, surge outro trauma a superar: a morte da mãe.

Somando a orfandade simbólica (pai) com a orfandade física (mãe), resta apenas a fraternidade (com todos os seus traumas) para diminuir a solidão. A irmã e o irmão mais novo passam a ser uma espécie de ligação entre a família biológica e o passado em comum (conjunto de histórias que, a qualquer instante, pode se perder). Nesse contexto, “inventar” novos pais não se mostra suficiente. A prótese jamais substituirá integralmente o que se perdeu. A carência também não pode ser superada através da paixão – que muitas vezes é transitória e traumática. O vazio existencial costuma aumentar, jamais diminuir.   
       
Que tipo de batalha ainda é preciso para que eu seja herói?, pergunta Trevisan, quase ao final do livro. Por maiores que sejam as tentativas, incluindo nesse pacote centenas de sessões psicanalíticas e a inutilidade contemporânea da heroicidade, a resposta ainda se mostra inconclusa, visto que muitos indivíduos raramente conseguem superar os horrores espelhados na paternidade. A figura física do pai desaparece, mas não morre. A imagem residual (e os seus componentes míticos) continua a atormentar aqueles que, no tempo devido, não enfrentaram os fantasmas que habitam a cela familiar. 

A liberdade precisa ser construída com o sangue daquele que gerou quem quer se libertar. "Matar o pai", no sentido freudiano, significa ter estabilidade emocional para acionar a guilhotina. A culpa (essa interdição católica) jamais pode ser um impedimento. 

Em uma outra rota de colisão, talvez tolerância e perdão sejam as palavras que faltam nos relacionamentos entre pais e filhos. De qualquer forma, se a vida é eterno aprendizado, poucos conseguem alcançar a sabedoria. Depois de cultivar anos de amargor, Trevisan descobre, por meio de um mecanismo onírico, que Naquele exato momento, compreendi que quem sofrera não fora eu, mas o pai dentro de mim. Percebi que eu precisava cuidar desse velho senhor, tão esquálido que parecia egresso de um campo de concentração. Seu pouco peso evidenciava a dimensão do desamparo nele encarnado. Acolhi meu pai nu e o abracei sem medo, com a convicção de que ele sempre precisou de mim, e eu nunca tinha me dado conta. Para que me acreditasse, afirmei repetidamente que o perdoava pelas dores do passado. Mas dessa vez tive certeza (daí a epifania) de algo que eu apenas supusera antes: meu pai tinha passado a vida numa infelicidade descomunal. Fizera outros sofrerem porque sofria muito, isso é tudo. Lamentavelmente, não é tudo. Talvez não seja nem uma fração mínima. E o entendimento, depois que uma das partes (por qualquer motivo) foi impedida de interagir, não redime a agressividade produzida no passado. Pais e filhos estão separados pelo tempo, pela experiência de vida e pela ausência de alguma forma de ajuste entre os diversos litígios que os separam. Esses obstáculos jamais serão rompidos  o que não impede, obviamente, que a parte sobrevivente projete algum ato de contrição.           

Homossexual, Trevisan não repetiu a experiência paterna. Preferiu ser filho de si mesmo. Em determinado momento, consciente de que a paternidade produz vulnerabilidades, declara: Talvez o meu grande medo de exercer a função paterna seja exatamente o medo de trair – resultado da experiência de ser traído, tantas vezes. Mas implica também no medo de fracassar. É uma extenuante jornada essa que começa na traição assumida, passa pelo perdão concedido e chega ao amor de reparação. De tão difícil, essa talvez seja tarefa a ser cumprida numa próxima vida, se isso pudesse existir.

Em efeito especular, o escritor repete o discurso grandiloquente (e inócuo) de Brás Cubas, o anti-herói machadiano: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. Para conseguir realizar – plenamente – essa confissão, ele precisou de 253 páginas, divididas em dezenas de capítulos curtos, que parecem ter sido escritos para ser publicados em folhetim. Faltou a ironia da dedicatória: ao mestre, com carinho.

Pai, Pai é livro de difícil digestão. A forma com que o tema (paternidade x filiação) foi tratado por Trevisan talvez afaste alguns leitores mais ou menos sensíveis. A crueldade (quando focaliza dramas pessoais que estão próximos) costuma ser negada – poucos indivíduos conseguem reconhecer as próprias vulnerabilidades.  

Pai, Pai é livro forte e literatura de excelente qualidade.   



TRECHO ESCOLHIDO

Quase todas as manhãs, quando vou passear com minha cachorra Nina na Praça Dom José Gaspar, ao lado de casa, encontro um grupo de moradores de rua alcoólatras. Alguns até me cumprimentam, em tom exageradamente eufórico. Têm idades variadas, mas raramente muito jovens, como é mais comum entre os drogados. Os alcoólatras se juntam numa roda, conversando com entusiasmo e alegria irresponsável ou cantando desafinado para matar o tempo da sua dor, enquanto passam a garrafa de pinga entre si, como um cachimbo da paz. O que mais me impressiona, no entanto, é um certo senso de solidariedade com que eles repartem algumas frutas semipodres, colocadas no centro da roda, sobre um jornal ao chão – talvez frutas ganhas de um distribuidor que todas as manhãs traz encomendas para os restaurantes do entorno. Mesmo a alegria exasperada não esconde o clima geral de melancolia, por sua resignação e falta de perspectiva, até quase o niilismo. Outro dia me peguei imaginando se meu pai não poderia acabar numa roda dessas. A lembrança talvez não seja casual. No meio do grupo, há um senhor de idade indefinida que teima em me cumprimentar me chamando de “pai”. Às vezes, exagera e grita para mim, quando passo: “Papai, papai”. Além de me desagradar, isso me intriga. Qual seria a imensa falta que ele sofre, até o ponto de ver um pai em alguém sem qualquer apelo paternal como eu – que desfilo com minha ferida quase impossível de esconder? Estranha sensação: de caçador de pai, tornar-se pai caçado. 


A verdade é que sempre me recusei a ser pai. No decorrer da vida, fugi da paternidade de todas as maneiras que pude. Desde a paternidade explícita – não tendo filhos – até o rechaço à ideia de ocupar eu mesmo o papel de herói ou mito. Inclusive a ideia de ser professor me causa estranheza. Não me acho vocacionado nem preparado para transmitir saber. Como Sócrates, não acredito em saber legítimo fora da experiência pessoal. Acho que tal ceticismo resulta do meu espanto ante a fragilidade de uma criança – que experimentei na pele. Eu não saberia educar um filho, tal o meu medo de errar, magoar, prejudicar. Às vezes, chega a me parecer insano que as pessoas coloquem filhos no mundo. É desumano o risco que se corre para educar uma criança até torna-la adulta, responsável e cidadã autônoma. O mais próximo que consegui chegar foi criar minha cachorra, uma airedale terrier malandra. Pratico com ela o que me é possível relativamente a ser pai. Mas me irrita ao extremo quando ouço alguém mencionando, mesmo com a melhor das intenções, que ela é minha filha. Não, não é. Nem por brincadeira. Se penso bem, insana será talvez a minha atitude. De um modo ou de outro, com gosto ou desgosto, o ato mesmo de envelhecer implica assumir a função paterna. Nesses momentos, estremeço. E tenho pena do meu pai.


sábado, 10 de novembro de 2018

JORGE DE SENA: SEIS POEMAS

Jorge Cândido de Sena (1919 - 1978)



EM CRETA, COM O MINOTAURO

I
Nascido em Portugal, de pais portugueses
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Colecionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.

II
O Minotauro compreenderr-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Parsifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valery, o cretino, achava um dos mais belos da “langue”.
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heroicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexemos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.

III
É aí que quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de todo essa merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos dos outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.

IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedacam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até os joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.

V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.

 
Antônio Cândido e Gilda de Mello e Sousa no batizado de
Maria José, oitava filha de Jorge de Sena.
Araraquara, SP, 17/02/1962

CONHEÇO O SAL...

Conheço o sal da tua pele seca
depois do estio que volveu inverno
da carne repousada em suor noturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração do sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.




POST-SCRIPTUM

Não sou daqueles cujos ossos se guardam,
nem sou sequer dos que os vindouros lamentam
não hajam sido guardados a tempo de ser ossos.

Igualmente não sou dos que serão estandartes
em lutas de sangue ou de palavras,
por uns odiado quanto me amem outros.

Não sou sequer dos que são voz de encanto,
ciciando na penumbra ao jovem solitário,
a beleza vaga que em seus sonhos houver.

Nem serei ao menos consolação dos tristes,
dos humilhados, dos que fervem raivas
de uma vida inteira a pouco e pouco traída.

Não, não serei nada do que fica ou serve,
e morrerei, quando morrer, comigo.

Só muito a medo, a horas mortas, me lerá,
de todos e de si disfarçando,
curioso, aquel’ que aceita suspeitar
quando mesmo a poesia ainda é disfarce da vida.




CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento dos outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E, mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, havereis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.




CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue”.
Por serem fieis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isso nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isso o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fluíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos foi cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor
que outros não amaram porque lho roubaram.




A PORTUGAL

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.   

Torpe dejeto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esse sentimento de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:

eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas ser’s minha, não.