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sexta-feira, 30 de março de 2012

MACHADO DE ASSIS EM TRINTA FRASES POUCO CONHECIDAS (E CINCO GRAVURAS DE JEAN-BAPTISTE DEBRET, 1768-1848)

− A monotonia é a morte. A vida está na variedade.

− (...) a paciência é a gazua do amor.

− Quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a afeição dos animais, que têm a vantagem de não discorrer nem intrigar.

− Mas quem pode adivinhar o mal, quando nos apresentam uma fisionomia risonha?

− As pequenas dívidas são aborrecidas como moscas. As grandes, logicamente, deviam ser terríveis como leões, e são mansíssimas.

− Olha, há Penélopes da virtude e Penélopes do galanteio. Umas fazem e desmancham teias por terem muito juízo; outras as fazem e desmancham por não terem nenhum.

− Há casos em que a indignação silenciosa é o mais eloquente comentário.

− Caí da poltrona; não me dividi fisicamente, como me parecera em criança; mas moralmente desdobrei−me em dois, um que imprecava, outro que gemia.

− Corrupção escondida vale tanto como a pública; a diferença é que não fede.

− Os acontecimentos parecem−me com os homens. São melindrosos, ambiciosos, impacientes, o mais pífio quer aparecer antes do mais idôneo, atropelam tudo, sem justiça nem modéstia...

− Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil, muita vez indispensável, alguma vez delicioso.

− Não falava de amor, mas perseguia−a com os olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá−los de todo.

− (...) preferi dormir, que é um modo interino de morrer.

− Creio que é ambicioso; mas na idade em que está, sem carreira, a ambição vai−se−lhe convertendo em inveja.

− Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor.

− Dissera−se que a alma da moça era uma espécie de comediante que recebera da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que a obrigava a mudar constantemente de vestuário.

− Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazê−las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde.

− Mete dinheiro na bolsa – ou no bolso, diremos hoje, e anda, vai para diante, firme, confiança na alma, ainda que tenhas feito algum negócio escuro. Não há escuridão quando há fósforos. Mete dinheiro no bolso. Vende−te bem, não compres mal os outros, corrompe e sê corrompido, mas não te esqueças do dinheiro, que é com que se compram os melões. Mete dinheiro no bolso.

− A ciência e a consciência, eis as duas condições principais para exercer a crítica.

− E ambos pararam a distancia, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muitas vezes toda a necessidade humana.


− Sua alma era uma fonte de duas bicas, vertia mel por uma e vinagre pela outra.

− Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor−próprio, que não tolerava a menor picada.

− A banalidade repete−se de século a século, e irá até à consumação dos séculos; não é folha que perca o viço.

− O ruído não é eloquência.

− (...) À noite, entre um beijo e um bocejo, o marido e a mulher abrem um para o outro a bolsa das confidências.

− A beleza é como a bravura; vale mais se não a metem à cara dos outros.

− (...) sem pecadores não há inferno, nem purgatório, e sem esses dois lugares o céu valeria menos.

− O conto do vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor, pode crer−se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi o texto primitivo do conto.

− A impunidade é o colchão dos tempos; dormem−se aí sonos deleitosos.

− Mas, como entre nós, não é comum dizer coisas novas, nós nos contentávamos com repetir verdades velhas, mas triunfantes do tempo.

quinta-feira, 29 de março de 2012

HUMOR: A FALTA QUE CHICO E MILLÔR FARÃO

O Brasil está caminhando na direção da tristeza. Seguindo o destino dos dinossauros, os humoristas são animais em extinção. Amanhã ou depois, reduzidos a verbetes menores em minidicionários de literatura, indicarão tempos antigos, em que rir era o melhor remédio. Era. Não é mais. Provavelmente jamais voltará a ser. No circuito social onde se movem os que cultivam a falta de opinião, boas gargalhadas são consideradas inoportunas e inapropriadas. O politicamente correto destruiu o humor, castrou a criatividade.

Em menos de uma semana morreram dois humoristas: Chico Anysio e Millôr Fernandes. Provavelmente ambos os dous, como dizia Machado de Assis, estavam com o prazo de validade vencido. Assim como os produtos comerciais, a vida é finita. Depois de ficarem durante alguns anos expostos na vitrine das vaidades, as Parcas (ou a fiscalização sanitária) decretaram que a vida de Chico e Millôr já não possuía condições de consumo. Nada mais havia o que fazer. Ars longa vita brevis.

Chico era bom ator. Descendente direto dos menestréis medievais manejava com habilidade todos os truques necessários para narrar uma boa história. Contando com a colaboração de duas centenas de heterônimos, unindo carisma, cara−de−pau e physique du rôle, gostava de anunciar que o rei está nu e tem pau pequeno. O público, muitas vezes sem saber exatamente a razão, retribuía com toneladas de aplausos. Como todo centroavante, jogava para a torcida.

Millôr era vinho de outra casta, de outra safra. Sua área de atuação era mais cerebral, o meio−de−campo. Com olhar diferenciado, quando estava com a posse da bola, efetuava passes milimétricos, decisivos, desses que deixam o leitor desmarcado em condições de marcar gols improváveis. Impossível não sorrir para esses passes de mágica – que ele realizava com a leveza de quem respira ou bebe um copo de água.

Cada um deles era competente na sua especialidade. Mas... Estavam separados por abissal diferença. Enquanto Chico sempre esteve ligado à televisão (que é um veículo de comunicação conservador), Millôr espalhava artefatos subversivos ao redor do coro dos contentes. Ao lado de malucos de carteirinha como Tarso de Castro, Fortuna, Jaguar, Ziraldo, Flavio Rangel, Luiz Carlos Maciel, Henfil, Sergio Cabral, Paulo Francis, Ivan Lessa, Paulo Garcez, Martha Alencar, além de outros menos votados, fez parte da cópula, perdão, da cúpula do Pasquim, o tablóide menos comportado da história do jornalismo brasileiro. E entre outras medalhas, amargou cadeia na década de setenta do século XX. Obviamente, quarenta anos depois, isso é passado. Mais ou menos. As lembranças, como se fossem ondas do mar, vão e voltam – a vida é um eterno tsunami, como constata qualquer humorista de talento.

O poder das recordações é forte. Mais forte ainda é o poder da linguagem. O humor de qualidade costuma usar dos lugares−comuns para denunciar as injustiças e as agruras do mundo. Mas efetua esse gesto de rebeldia com habilidade, sem sugerir que está ofendendo. Ou melhor, ofende sem ser (muito) agressivo. Para que isso aconteça em bons termos constrói um vocabulário sutil, cheio de nuances, de bordões que podem ser empregados aqui e acolá, sempre diluindo o poder de impacto no agredido, que o maior prazer em uma piada está exatamente na pasmaceira da vítima.

Isso Chico Anysio e Millôr Fernandes sabiam fazer com maestria. Mas, de forma diferente. Assim como também é diferente o humor praticado pelos poucos sobreviventes da nobre arte: Aldir Blanc e Mário Prata. Depois deles só restará essa gente sem talento que confunde humor com grosseria nos shows de stand up da vida.

Chico e Millôr farão falta − esse é um daqueles elogios baratos que não economizamos quando perdemos alguém que nos é caro. Não há a mínima graça na morte.

quarta-feira, 28 de março de 2012

CONTOS DE AMOR E MORTE

Arthur Schnitzler (1862−1931) é quase desconhecido no Brasil. Não há surpresas nisso. Quem é que poderia ter interesse em um escritor austríaco do século passado? Poucos, muito poucos. No entanto, foi na Viena do século XIX, uma das herdeiras da parte "mais civilizada" da Europa Oriental, que nasceram e viveram artistas importantes como os músicos Arnold Schönberg, Alban Berg, Anton Webern e Gustav Mahler, os pintores Gustav Klint e Oscar Kokoschka, os escritores Hugo Von Hofmannsthal, Herman Broch, Karl Kraus e Stefan Zweig. Há quem arrisque dizer que a modernidade iniciou na Ringstrasse, a rua que abrigou figuras emblemáticas como Lou Andreas Salomé e Sigmund Freud.

Foi como dramaturgo e escritor de sucesso que Schnitzler ficou conhecido. Um de seus textos psicológicos mais complexos, Breve Romance de Sonho, teve uma versão cinematográfica, De Olhos Bem Fechados (Dir. Stanley Kubrick, 1999).

Pelas narrativas escritas por Schnitzler passeia uma fauna muito especial: homens e mulheres apaixonados. Muitas vezes nas versões mais confusas, frequentemente como sobreviventes de casamentos fracassados. Não bastasse isso, as convenções sociais se confundem com histórias que envolvem amantes, prostitutas, intelectuais, nobres decadentes, burgueses esclarecidos e iletrados. Todos sofrem das mesmas doenças: paixões descontroladas, ciúmes, pessimismo, fantasias persecutórias, loucuras diversas. O resultado de tamanho embate? Mortes. Muitas vezes não há cadáveres estendidos no chão − a destruição psicológica é tão devastadora que equivale.

Na coletânea Contos de Amor e Morte, a associação entre Eros e Thanatos não é apenas um bordão publicitário. Todas as doze narrativas repetem a mesma história, o mesmo horror. E de forma sintética: com exceção dos nomes, pouco se pode perceber das características físicas das personagens. Como esclarece Wolfgang Bader, na apresentação do volume, Ele despe suas personagens de toda preocupação material e de toda determinação individual ou social, levando−as para um terreno onde estão à disposição daquilo que constitui o tema do autor: o interior do ser humano.

E o interior humano é o lugar onde o comportamento moral e sexual se esconde. Freud, certa vez, declarou evitar ler Schnitzler por receio de ser contaminado. Acho que evitei um contato com o senhor por uma espécie de medo do duplo, escreveu o pai da psicanálise por ocasião do sexagésimo aniversário de Schnitzler. Para alguns especialistas, os dois autores se confundem. Enquanto um elaborou a teoria, o outro narrou em contos, romances e peças teatrais esses abismos em que a alma humana costuma mergulhar.

Os personagens de Schnitzler são constantemente atormentados pela culpa. E ninguém escapa da punição. Parecem diagnosticar que o mundo está doente – amar é o sintoma dessa patologia.

terça-feira, 27 de março de 2012

A CASA DE PAPEL

Os livros são perigosos. Sempre foram. Muitos leitores perderam o rumo e o prumo enquanto eram engolidos pela voracidade narrativa de certas histórias. Nenhuma dúvida: jamais as histórias certas. O grande passeio turístico promovido pela literatura contempla as rotas incertas − a vida e a adrenalina se confundindo nas encruzilhadas que separam o tempero e o esmero, os laços e os nós.

Se o desejo for por tranquilidade e segurança, uma certeza: isso jamais será encontrado nas páginas de um livro. Melhor tentar o trapézio ou o automobilismo. A ficção está em contato intimo com as complicações − foguete a explodir no céu em mil estilhaços de luz e surpresas. Nem mesmo as histórias de amor escapam dessas trapaças, arruaças, vertigens e abismos.

Frequentemente, é mais difícil desfazer−se de um livro do que obtê−lo. Aderem−se a nós com um pacto de necessidade e esquecimento, tal como se fossem testemunhas de um momento de nossas vidas ao qual não regressaremos, constata o narrador da novela A Casa de Papel, do argentino de nascimento e uruguaio por opção afetiva Carlos María Dominguez.

Um professor de línguas hispânicas recebe um envelope volumoso, selos do Uruguai. Dentro, um exemplar de A Linha de Sombra, do Joseph Conrad. A capa e a contracapa sujas com uma crosta de cimento. O livro era destinado a Bluma Lennon, antiga titular da cadeira acadêmica que o narrador está substituindo e que morreu atropelada enquanto lia Emily Dickinson no meio da rua.

Esse é, digamos, o tijolo inicial da história. O que se segue por apenas 98 páginas, formato de livro de bolso, obedece a ordem natural das regras das edificações mais complicadas. Livros e paredes se confundindo com o conhecimento e a paixão amorosa.

Há também um filete de romance policial a permear o texto. Ao tentar responder às perguntas elementares (o quê?, como?, quando? e porquê?), o narrador vai investigando a alma humana, os descompassos amorosos e a obsessão pelos livros. E descobre que existem mais mistérios entre uma estante e a literatura do que imagina o leitor.

A ligação afetiva entre o bibliófilo Carlos Brauer e a professora Bluma Lennon nas ruas e quartos de hotéis em Monterrey, México, resulta em final infeliz. Nenhum problema. Essa é uma história de separação. É a impossibilidade de manterem uma relação estável que os atrai e, ao mesmo tempo, os afasta.

No entanto, quando a separação se efetiva, é na Argentina que o ressentimento se transforma em substância mensurável. O amor aos livros se confunde com a casa edificada com papel e argamassa. O conhecimento e a bibliofilia se transformam em objetos “uteis”. E isso significa que a metáfora do conhecimento atingiu, de forma inversa, o seu grau maior: um homem havia atravessado, com brutalidade, desgosto e certeza, sua linha de sombra.

segunda-feira, 26 de março de 2012

VINTE E CINCO FRASES PARA LER NO OUTONO, ACOMPANHADAS POR ALGUNS TRABALHOS DE ALEXANDER CALDER (1898-1976)

− A ausência diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, assim como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras. (La Rochefoucauld)

− Quando um homem se interessa pelo corpo de uma mulher, ela o acusa de só se interessar pelo corpo dela. Mas, quando ele não se interessa pelo corpo dela, ela o acusa de só se interessar pelo corpo de outras mulheres. (P. J. O’Rourke)

− Se me derem o luxo, posso passar sem o indispensável. (Oliver Wendell Holmes)

− A vida é dura e os primeiros cem anos são os piores. (Wilson Mizner)

− Uma celebridade é uma pessoa que trabalha duro a vida inteira para se tornar conhecida e depois passa a usar óculos escuros para não ser reconhecida. (Fred Allen)

− O principal problema da democracia é a lamentável tendência a fazer com que as pessoas acreditem que todos os homens são iguais, quando basta uma olhada ao redor da sala para ver que não é bem o caso. (Fran Lebowitz)

− Pedir desculpas é assentar o terreno para futuras ofensas. (Ambrose Bierce)

− Toda mulher gosta de apanhar. Menos a neurótica. O homem é que não gosta de bater. (Nelson Rodrigues)

− Só o que bota pobre pra frente é empurrão. (Barão de Itararé)

− Moralista é simplesmente a atitude que adotamos em relação às pessoas com quem antipatizamos. (Oscar Wilde)

− O infeliz namorado tinha o sestro, aliás comum, de querer ver quebrada ou inútil, a taça que ele não podia levar aos lábios. (Machado de Assis)

− Nada é mais engraçado do que a infelicidade. É a coisa mais cômica do mundo. (Samuel Beckett)

− Devemos à Idade Média duas das piores invenções da Humanidade: a pólvora e a idéia de amor romântico. (Andre Maurois)

− Os homens não fervem à mesma temperatura. (Millôr Fernandes)

− Gosto de homens que se comportem como homens – enfim, que sejam fortes e infantis. (François Sagan)

− Algumas mulheres permanecem na memória de um homem, mesmo que ele as tenha visto por um único segundo, atravessando a rua. (Rudyard Kipling)

− A mentira é a verdade atrás da máscara. (Lord Byron)

− Não há nada errado com minha mulher que um milagre não possa curar. (Henny Youngman)

− Os pais são os ossos com que os filhos afiam os dentes. (Peter Ustinov)

− Quando uma mulher "erra", os outros homens acertam o passo atrás dela. (Mae West)

− Não há fatos, só interpretações. (Friedrich Nietzsche)

− Artistas têm o direito de ser modestos e o dever de ser vaidosos. (Karl Kraus)

− O brasileiro, quando não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte. (Nelson Rodrigues)

− As mulheres começam por resistir aos avanços de um homem e terminam por bloquear a sua retirada. (Oscar Wilde)

− Um egoísta é alguém desprovido de consideração pelo egoísmo dos outros. (Ambrose Bierce)

sexta-feira, 23 de março de 2012

AUGUSTO DOS ANJOS (1884−1914)

Parnasiano ou Pré−modernista? Polêmico, desagradável ou rancoroso? São muitas as possibilidades de classificar a vida e a poesia de Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos. Provavelmente todas estão erradas. Não são palavras e conceitos que conseguem resumir a existência ou a obra de um escritor.

Nascido no interior da Paraíba, filho de dono de engenho, precisou trabalhar depois que a família perdeu a propriedade nas crises econômicas que sucederam a Abolição da Escravatura e Proclamação da República. Bacharel em Direito, jamais exerceu a profissão. Foi como professor (literatura, geografia) que sustentou a esposa e os dois filhos (houve outros dois, natimortos). Morreu de pneumonia, aos 30 anos, em Leopoldina (MG), para onde havia se mudado alguns meses antes.

Augusto dos Anjos foi autor de livro único, Eu, publicado em 1912, financiado pelo irmão, Odilon dos Anjos. A segunda edição data de 1920 e constitui o cerne do volume conhecido como Eu e Outras Poesias. Organizado e prefaciado por Orris Soares, amigo do poeta, a edição definitiva da obra de Augusto dos Anjos foi financiada pelo governo da Paraíba. O mérito dessa edição está relacionado com os 46 poemas acrescentados ao corpo do livro original – alguns poemas eram inéditos, outros tinham sido publicados esparsamente em jornais e revistas.

Quando foi publicado, Eu não obteve boa acolhida. O público leitor da Velha República, educado pela elegância parnasiana, não estava preparado para uma poesia voltada ao horrendo, à degradação física, à interpretação pessimista da realidade, ao uso da linguagem cientifica como instrumental poético. Muitos críticos da época, inclusive Manuel Bandeira, não hesitaram em considerar Eu como um livro de "mau gosto". A esse juízo de valor se acrescenta episódios grotescos como o da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que incluiu Eu em sua biblioteca, por tratar de assuntos científicos!

Os poemas de Augusto dos Anjos (fortemente influenciados por Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe, Cesário Verde e Antero de Quental, Charles Darwin e Friedrich Nietzsche) revelam a sua multiplicidade de interesses: ciências naturais, química, mitologia, matemática, religião, geografia e filosofia.

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má do zodíaco.
Profundíssimo hipocondríaco,
Esse ambiente me causa repugnância...
Sobe−me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de cardíaco.
Já o verme – esse operário das ruínas
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê−los,
E há de deixar−me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!


Embora tenha escrito em diversos sistemas métricos, foi o soneto decassílabo que consagrou Augusto dos Anjos. Cultivando a morbidez e o dualismo agônico, compôs versos de impactante força e misteriosa musicalidade. Como pode ser comprovado em poemas clássicos como Psicologia de um Vencido ou Versos Íntimos.

Augusto dos Anjos foi um poeta avant la lettre, pois soube antecipar alguns recursos da modernidade: pessimismo sobre a condição humana, excesso verborrágico, frequente adjetivação, renovação vocabular e o uso distintivo de recursos gráficos (pontos de exclamação, reticências, letras maiúsculas).


VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – essa pantera –
Foi tu companheira inseparável!
Acostuma−te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,
Apedreja essa vil mão que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


A Universidade Federal da Paraíba, em parceria com o SESC, no Teatro Lima Penante, em João Pessoa, apresentou em 2011, uma leitura dramática do espetáculo Eu, baseado nos poemas de Augusto dos Anjos.



quinta-feira, 22 de março de 2012

LAURA

Laura era viúva. O falecido teve uma dessas mortes de caricatura. Em plena lua de mel. Leito nupcial. Ataque cardíaco. Fulminante. Antes mesmo de consumar o que lhe era − por direito cartorial e religioso − permitido consumir. Nada muito diferente do que Dona Antônia, a augusta e excelentíssima mãe do finado, havia previsto vários anos antes quando constatou que levantar e baixar o copo de cerveja em cima da mesa, no boteco da esquina, talvez tenha sido a coisa mais parecida com exercício aeróbico que seu dileto filho alguma vez fizera na vida.

Laura não era virgem, mas ficou com fome. Não podia ver um homem em condições de uso que sentia uma necessidade atávica de afiar as garras e saborear a vítima como se fosse um bom filé. Só sossegava depois de ouvir a voz do coitado solicitando socorro ou uma ambulância.

Quando conheceu Rogério, suspirou. Quer dizer, sentiu um calor insensato, uma vontade infinita de gemer sem sentir dor, como naquela canção fora de moda que ela, às vezes, lembrava no meio da madrugada ao ver a metade vazia de sua cama. Assim como dois mais dois é igual a três mais um, começou a elaborar um plano para executar diversas e variadas safadezas − dessas que sequer as almas mais perversas são capazes de imaginar ou inventar. Queria tudo. E mais um pouco. Um pouco mais nunca é demais, que ninguém duvidasse do que ela era capaz.

Sem constrangimento ou temor, instalou o terror. Diante do escolhido, disse o que queria, como queria e porque o queria. O rapaz ouviu e tremeu. Nunca, jamais, em tempo algum, imaginou a situação. Aquela, pelo menos. A praxe em circunstâncias similares envolvia outras abordagens. A principal era fazer pose de pirata antes de praticar violências contra navios desprotegidos.

A fala de Laura instituiu outras urgências no falo de Rogério. Difícil recusar a mistura de encantamento e medo. Difícil aceitar as mentiras que, por um motivo ou outro, ocupam o lugar daquilo que talvez pudesse ser a verdade. A vida está repleta dessas encruzilhadas.

Sem medir as consequências, foi em frente. Com olhar de canibal estampado no rosto, Rogério caminhou na direção do matadouro. Quem seria capaz de recusar tamanho banquete?

Raios e trovões cruzavam a noite enquanto, dentro do quarto, sob os lençóis, os amantes descobriam prazeres escondidos nos corpos um do outro. As roupas ficaram empilhadas em uma cadeira, a camisa escorrendo pelo espaldar, querendo fazer companhia para as meias − que estavam espalhadas no chão.

O desassossego que antecede o som de prato estilhaçado no piso cerâmico da cozinha é metáfora da existência humana. Foi isso o que Laura murmurou no ouvido de Rogério. Ele não entendeu nada. Talvez não estivesse em condições de entender qualquer coisa. O desejo causa embotamento, sussurrou a fêmea. E completou o massacre dizendo que sexo é luta de guerrilha, campo minado espalhado pela cama.

Rogério quase se declarou apaixonado. Laura (usando do sagrado direito de proprietária do diversificado supermercado sexual que estava alimentando o rapaz) agiu com rapidez e, no uso plenipotenciário do veto, matou o sentimento com meia dúzia de frases desagradáveis. Sequer teve compaixão quando ouviu a voz chorosa declarar que, algum tempo antes, havia perdido o sono. No escuro, durante muito tempo, ficou olhando ela dormir, o fio da vida ligando a respiração suave ao silêncio da noite.

Laura encerrou o assunto decretando horror às palavras gastas pelo atrito entre os corpos. E, antes que ele esboçasse alguma reação, o mandou embora, não queria mais brincar. Na porta do apartamento beijou o rosto do amante e encerrou o encontro. Com voz visivelmente irritada, declarou:

- Foi muito bom, muito divertido, mas a fila anda.


Ilustrações de Pierre Bonnard (1867-1947)

quarta-feira, 21 de março de 2012

MAR DE HISTÓRIAS

A ideia era copilar um pouco da história do conto mundial. Tarefa gigantesca. Provavelmente não seria aceita nos dias de hoje. Mas, na metade do século XX − quando a Internet ainda não havia achatado o saber, e o conhecimento enciclopédico ainda tinha algum valor −, o projeto desenvolvido por Paulo Ronai e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (aquele mesmo do Dicionário) foi um sucesso. Por diversos motivos. O mais prosaico: os dez volumes de Mar de Histórias ocupam 16,5 cm na estante e pesam quase três quilos. Não é pouca coisa. E para quem deseja impressionar amigos ou clientes, "tanto conhecimento" ajuda na composição do cenário intelectual.

Mas, o mais importante é o conteúdo. Raras coleções de textos literários conseguem traçar um panorama tão abrangente e com tanta qualidade. Entre os anos 70 e 90 do século XX, foi pelo Mar de Histórias que a aventura literária separou a ignorância do esclarecimento.

Estou na minha terceira coleção de Mar de Histórias.

A primeira, junto com outros livros, desapareceu entre mudanças e tragédias familiares. Sobraram uns dois volumes, talvez o terceiro e o oitavo, mas não tenho certeza. Prometi a mim mesmo reconstruir a coleção. Demorou vários anos até que isso fosse possível.

Da segunda coleção, dois livros desapareceram em circunstâncias estranhas. O segundo volume foi perdido dentro do ônibus, na volta de uma viagem para Florianópolis. Levei para ilustrar um trabalho acadêmico, alguma coisa relacionada com o Rip van Winkle, do Washington Irving. Foi e não voltou. Não lembro exatamente das circunstancias. Só percebi a ausência alguns dias depois, quando olhei para a estante e não o vi lá. O volume cinco foi emprestado para um estudante que precisava do conto José Matias, do Eça de Queirós. Nunca mais vi o livro ou o aluno.

Em todas as circunstâncias adquirir os livros nunca foi fácil, meus rendimentos sempre foram insuficientes para financiar todas as minhas aventuras. Imagino que, atualmente, os dez volumes devem custar entre R$ 300 e R$ 350.

Dito isso, descontados os tropeços, estou na terceira coleção. Avaliei o estado físico dos livros remanescentes, descartei mais uns dois ou três, e consegui comprar os que estavam faltando. Infelizmente, não são exemplares da mesma edição. Alguns são da segunda, outros da terceira. Pensei em uniformizar a coleção. A Estante Virtual está ai para isso mesmo. Mas,... Controlei a ansiedade. Há coisas mais importantes para gastar minhas energias (e o dinheiro que não tenho).

Minhas primeiras leituras do Decamerão (Giovanni Boccaccio) foram no Mar de Histórias. Gostei tanto que logo depois comprei o texto completo, acho que foi numa daquelas edições populares, vendidas em banca de jornal, e que faziam enorme sucesso na época. Li, deliciado, todas aquelas sacanagens envolvendo padres, freiras, reis e camponeses. Quando revisitei esse delírio, na versão cinematográfica dirigida por Pier−Paolo Pasolini, a parte mais difícil foi ignorar a imagem residual que leitura deixou impressa na minha mente.

Xavier de Maistre, Fiodor Dostoievski, Gérard de Nerval, Jerome K. Jerome e Rainer Maria Rilke são autores que integram a coleção e que nunca mais esqueci. Parte do ritual de leitura era complementado com visitas à Biblioteca Pública. A carteirinha número 318 registra, nesse período, pilhas de livros emprestados. Crime e Castigo e Os Cadernos de Malte Laurids Brigge são textos que li nessa época, influenciado pelo Mar de Historias.

Depois de tantos anos acumulando poeira nas estantes, olho para os livros com nostalgia e carinho.
De vez em quando abro um volume e releio, aleatoriamente, algum conto. Não é a mesma coisa. Nos tempos de antigamente havia mais sabor. Quer dizer, eu imaginava que havia. O que é uma bobagem. O ser humano muda a cada instante e o texto gravado no papel fica parado no tempo. Nada é permanente. Embora seja difícil perceber que a vida (e, por extensão, a leitura) evolui. Muitos livros são substituídos por traduções mais atuais, menos datadas, que acrescentam informações ou variações de linguagem mais adaptadas à contemporaneidade. De qualquer forma, não é isso que é o mais importante. O importante é que muitos leitores naufragaram e se salvaram nas páginas do Mar de Histórias.

terça-feira, 20 de março de 2012

OUTONO

Folhas caindo das árvores – essa é a imagem típica do outono. Artistas plásticos e poetas adoram essa época do ano. É um daqueles momentos em que o talento serve de inspiração para descrever a transição entre a superficialidade dos amores de verão e a solidão do inverno.

A paisagem vai ganhando novas cores, mais sombrias, mais próximas da realidade. Nuvens encobrem o sol, que rapidamente se torna uma réstia, como se fosse a visita de um amigo distante − desses que nos alegram com a presença durante um ou dois dias e que, depois que partem, demoram a voltar.

O resto do tempo será frio, triste e melancólico. Chuvas súbitas no meio da tarde. O céu plúmbeo é uma constante – algumas vezes, irritante. As noites são mais longas e começam mais cedo. Não há o que impeça o frio.

Cabernet Sauvignon, Malbec, Merlot, Carmenère, Pinot Noir, Syrah, Tannat − como se fossem versos de um poema épico, essas palavras mágicas são recitadas na embriagues produzida pela muralha de gelo que o outono começa a construir ao redor de nós. Com uma taça de vinho na mão, o mundo se abre em emoções e sentimentos, o romance encontrando formas de unir homens e mulheres.

A ditadura dos corpos perfeitos desaparece por trás das mudanças climáticas. Durante um ano estará ausente. Talvez seja recordada pelos saudosistas, ao folhearem as páginas de velhas revistas. O instante nostálgico, a eterna vontade de morar no Norte ou Nordeste acenará como se fosse um bilhete de loteria premiado.

No outono, as pessoas ficam mais elegantes. Escolher um casaco ou alguma roupa de lã implica em entender que a vida é mais complicada do que o abrir e fechar as portas do guarda−roupas. Cada vestimenta, cada acessório, é um aditivo para a libido. São esses pequenos truques da sedução que permitem gozosos voos da imaginação. Despir−se é mais excitante do que estar despido.

No outono, a felicidade está nos pequenos gestos, nas surpresas do amor: dormir de conchinha, um beijo pela manhã, caminhar de mãos dadas, xícaras de chocolate quente como carta de (más ou boas) intenções.

O outono é uma espécie de cartão−postal, perdido dentro de caixa de sapato, entre contas de luz e recibos de condomínio. Depois de espanar a poeira, depois de escolher um lugar para fixar a paisagem na parede, é hora de viver uma das épocas mais interessantes do ano.

Durante três meses, o outono acompanhará o existir – enquanto as folhas caem.

segunda-feira, 19 de março de 2012

CHET BAKER (1929−1988)

Chesney Henry Baker Júnior sentia incerto prazer mórbido quando ultrapassava limites. Auto−destrutivo, viciado em todas as drogas possíveis de obter antes da polícia chegar à cena do crime, tentou manter a chama da vida até o prazer ínfimo da próxima dose. Estava sempre precisando de dinheiro − para sustentar traficantes, prostitutas e agiotas. Centenas de discos levam o seu nome na capa, milhares de gravações com clássicos inesquecíveis, o talento resumido entre os estúdios de gravações, os bares de quinta categoria e a degradação corporal.

Provavelmente acreditava estar protegido pelos deuses.


O trompete foi a arma com que Chet Baker enfrentou a adversidade. Filho de músico, desde criança se interessou pela música. Em casa, cantava acompanhando o rádio. Sua mãe, Vera, o levava a pequenos shows de calouros, onde o rosto bonito e a voz fina faziam algum sucesso. Chesney pai, um alcoólatra violento, concluiu que esse perfil não era adequado para o filho. Tratou de repaginar o menino com algo másculo: um trombone. O instrumento era muito grande, quase do tamanho do rapaz. Ao ver que tinha escolhido o instrumento errado, a contragosto o trocou por um trompete.

Segundo a lenda familiar, o aprendizado demorou apenas duas semanas. Um recorde, pois a maioria dos instrumentistas precisa entender, além da teoria musical, as dificuldades técnicas de um instrumento bastante complexo. Músico intuitivo, Chet expandia o ritmo das melodias e encantava a todos com improvisações de rara qualidade.


Tinha bom ouvido − bastava duas ou três audições para entender a melodia. Não lhe foi difícil aprender novas canções. Harry James, principalmente. E, nesse ritmo, devorou a juventude, compartilhando a música com carros velozes, sexo casual e pequenas transgressões. 

Para fugir do ambiente familiar opressivo, se alistou no exército. A II Guerra Mundial tinha terminado, mas o colonialismo estadunidense não. Em Berlim, ao ouvir um ensaio da banda do 56° Exército, finalmente encontrou um lugar no mundo. Como não sabia ler partitura direito, aprendeu de ouvido o repertório da banda. E, sem se preocupar com as dificuldades, seguiu em frente. O próximo passo estava em um grupo menor, uma orquestra dançante do Exército. Foi ali, como uma espécie de terapia contra o exílio pouco confortável, que se deixou seduzir por um novo estilo jazzístico: o bebop. Ao ouvir a música produzida por alguns dos mais importantes músicos do período (Stan Keaton, Woody Herman, Dizzy Gillespie) se descobriu apaixonado à primeira nota, ao primeiro acorde. Entre tanta beleza queria acordar no mundo sonoro que parecia fazer parte de algum conto de fadas com final feliz.

Dispensado do Exército, Baker voltou para casa dos pais, terminou o colegial − onde se tornou o encrenqueiro oficial. Brigava o tempo todo. No El Camino Júnior College, em Torrance (Califórnia), conheceu a música de Miles Davis. Na companhia de alguns amigos passou a fumar maconha. Não terminou o curso. Preferiu a vida. Em Los Angeles arrumou emprego em uma banda que se apresentava em um hotel. Logo depois estava tocando em todo lugar que fosse permitido.

Nas palavras de James Gavin, na biografia No Fundo de um Sonho – a longa noite de Chet Baker: Centenas de jovens músicos tinham voltado da guerra e ansiavam por tocar jazz de verdade em vez de musica de bandas do exército. Invadindo bares, restaurantes, clubes, garagens, porões e estúdios, tocavam 24 horas por dia. A música era uma droga e nunca havia o bastante para eles.

Drogas, um tema recorrente na seção dos metais: Charlie Parker, Art Pepper, Dexter Gordon, Miles Davis, Chet Baker e milhares de outros. Dava para montar diversas bandas, naqueles anos loucos, com a turma que considerava que os paraísos artificiais eram uma espécie de passaporte para a arte, para a música. A regra geral era viver o mais intensamente possível. E isso significava um caminho sem volta: drogas, sexo e jazz.

Chet Baker tinha fascínio pelas drogas e por seus usuários. Adorava os marginais, aqueles que costumam participar de intermináveis jam sessions na face escura da lua. Sentia grande prazer quando estava na companhia dessa gente. Foi em um desses momentos que descobriu a heroína. A primeira picada não foi boa. Um ano depois, experimentou outra vez. Nunca mais conseguiu se livrar dessa namorada possessiva.

O resto da história não é difícil de ser resumido. O talento sendo consumido pelas inúmeras dificuldades, as várias vezes em que esteve preso, a loucura de ser espancado até quase a morte, meses de recuperação, o reaprender a tocar, o retorno ao vício, algumas overdoses, as promessas quebradas, os filhos que raramente via, o horror sendo revisitado constantemente. E o mistério de sua morte. Ninguém sabe se ele se suicidou ou se foi jogado pela janela de um hotel em Amsterdã. Caso a segunda hipótese seja a verdadeira, o principal motivo parece ter sido uma dívida não paga com um fornecedor de heroína.

Chet Baker, ao longo do tempo, exercendo seu talento, aprimorou o estilo quase sem estilo, fusão dos sons que foi colhendo pelo caminho. Mais do que isso, foi aprimorando−os como se fossem seus. Com um fraseado anti−clássico, pontilhado pelo romantismo cool, quase brega, conseguiu construir uma obra consistente. Como contraponto ao som metálico do trompete, a sua voz era aveludada, dessas que adquirem consistência em contato com o ar. Quem duvidar que ouça My Funny Valentine ou The Touch of Your Lips ou Time After Time ou (There is) No Greater Love ou I Fall in Love Too Easily.

É música para quem gosta de cortar o próprio coração em mil partes desiguais, embrulhar cada pedaço em papel colorido, e mandar entregar no endereço da pessoa amada.


sexta-feira, 16 de março de 2012

UMA SEMANA SÓ DE CINEMA

Minha relação com o cinema brasileiro oscila entre o amor e o ódio. As estatísticas revelam que o ódio está ganhando de goleada. E, infelizmente, se levarmos em consideração os filmes que estão sendo produzidos atualmente no Brasil, esses números não devem mudar. Talvez porque – para repetir um velho clichê – não fazem mais filmes como antigamente. Aliás, nem os cineastas são aqueles de outrora. Em lugar das palavras de ordem, uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, todos querem dinheiro. De preferência, muito dinheiro. O resultado dessa inversão de propósitos resultou nos inúmeros episódios em que cineastas acima de qualquer suspeita precisaram responder perguntas indigestas em delegacias de policia.

Em outro momento, a idéia era popularizar o cinema. Para isso bastava projetor de 16 mm e lençol branco estendido em parede. Normalmente, o milagre do cinema se realizava em associações de moradores. Muita gente sentada no chão, garrafas de laranjinha passando de mão em mão, o olhar atento, hipnotizado pela tela improvisada.

Nem tudo foi fácil,... não era possível prever alguns probleminhas. A Kombi que transportava o material costumava quebrar no meio do caminho. Então, os atrasos eram freqüentes, a vida era mais complicada e, claro, mais divertida. A correia do projetor sentia incomensurável prazer em romper exatamente na parte mais emocionante do filme. A troca era rápida, entre vaias e assobios, cinco minutos de intervalo. Depois da exibição do filme, lanche no boteco da esquina: sanduíche de mortadela e cerveja quente. Muitas vezes, alguns espectadores acompanhavam essa aventura gastronômica, a conversa sem fim sobre o filme da semana.

O maior clássico dessa temporada? Essa é fácil: Estrada da Vida (Dir. Nelson Pereira dos Santos 1979). Assisti mais de trinta exibições, o publico cantando as canções, uma emoção que não tinha (não tem) preço.

O Assalto ao Trem Pagador (Dir. Roberto Farias, 1962), O Caso dos Irmãos Naves (Dir. Luís Sérgio Person, 1967) e Bete Balanço (Dir. Lael Rodrigues, 1984) foram outros momentos significativos dessa aventura, reprise um pouco mais dolorosa do que aquela que foi retratada em Cinema, Aspirina e Urubus (Dir. Marcelo Gomes, 2004).

O projeto desapareceu em uma dessas transições políticas que assolam os municípios de quatro em quatro anos. Dizem que a democracia é isso, tenho minhas dúvidas.

Se não deu certo, cabe tentar outra direção. O Cine Clube Glauber Rocha fez história (embora poucos recordem desses momentos heróicos). Em conjunto com o SESC, duas mostras imensas, intensas, foram promovidas. Cada uma com mais de dez noites de cinema. Na sala do Cine Marrocos, o publico assistiu toda a filmografia de Humberto Mauro. Os fotogramas em preto e branco invadindo a tela grande, dando sentido e direção ao entusiasmo. Alguns espectadores dormiram − era inevitável. Ou melhor, inevitável era o deslocamento de algum integrante da diretoria, tentando fazer o mínimo possível de barulho. Diante do dorminhoco, um leve toque no ombro e a recomendação de que deveria ir dormir em casa. Lá, provavelmente, era mais confortável.

A mostra Glauber Rocha teve outro tom, outro público, vários filmes foram aplaudidos por vários minutos. Paulo Ramos Derengoski fez discurso, lembrou histórias protagonizadas em faculdades, redações de jornais e bares do Rio de Janeiro. Transportou−nos para um tempo em que Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e Cabeças Cortadas (1970) foram acontecimentos culturais, sociais e políticos.

Por alguma razão, dessas que são difíceis de explicar, o Cine Clube também se desfez na poeira do tempo. Foram todos cuidar da vida pessoal, as urgências da sobrevivência dando as cartas, mostrando quem nasceu para protagonizar perdedor.

Contemporaneamente, os cadernos culturais anunciam que os tempos de glória do cinema nacional estão de volta. E fatalmente ilustram a matéria com a fotografia de um desses canastrões que se prostituem em alguma novela. É ridículo.

Em todo caso, nem tudo está perdido.

Talvez seja possível, algum dia, reavivar o projeto de cinema nos bairros. Certamente iríamos assistir filmes como O ano em que meus pais saíram de férias (Dir. Cao Hamburguer, 2006), Antes que o mundo acabe (Dir. Ana Luiza Azevedo, 2009), 5 x Favela - agora por nós mesmos (Dir. Manaíra Carneiro e Wawá Novais, Rodrigo Felha e Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu Barcelos, Luciana Bezerra, 2010), Desenrola (Dir. Rosane Svartman, 2011), As melhores coisas do mundo (Dir. Lais Bodanzky, 2010), Eu e o meu guarda−chuva (Dir. Toni Vanzolini, 2010), entre outros.

Talvez seja possível, um dia, sonhar com uma semana só de cinema.


quinta-feira, 15 de março de 2012

ESTÔMAGO: TRÊS EXERCÍCIOS PEDAGÓGICOS

O tema é aparentemente "inofensivo": gastronomia. O ator, João Miguel, que interpreta o protagonista está do outro lado da margem do charme que caracteriza dez entre dez atores de cinema. Não é homem bonito. Não é homem igual a esses que decoram capa de revista. Seu personagem é brasileiro, feio, pobre, com visível e audível déficit educacional. Raimundo Nonato (um nome banal no nordeste brasileiro) é apenas mais um. Perdido no meio da multidão, entre os excluídos.

Mesmo assim, com todos esses "defeitos", poucos filmes nacionais conseguem alcançar a fluência narrativa de Estômago (Dir. Marcos Jorge, 2007).

Violento, lírico, exagerado – não importa o adjetivo escolhido pelo espectador. Há outros, muitos outros, muito mais significativos: visceral, necessário, político. Ah, antes que restem dúvidas e dívidas: Estômago é um filme político.

Primeiro Exercício Pedagógico: a construção do saber.
Guiado pela necessidade de uma vida melhor, Raimundo Nonato vai para São Paulo com "uma mão na frente e outra atrás". Nada sabe fazer, exceto cozinhar. Quer dizer, cozinhar ele realmente não sabe. No máximo, domina conhecimento para salvar o arroz−com−feijão de cada dia.

Sem um centavo no bolso e a barriga vazia, atravessa a madrugada. E é salvo da fome. Consegue um emprego, em regime de semi−escravidão. Fritar pastéis e coxinhas. Rapidamente, domina a arte de transformar a matéria bruta (farinha, ovos, fermento) em sabor. O patrão, ao longe, não entende tamanho progresso. Como é que pode? Certamente algum anjo o protege. Na dúvida, Raimundo Nonato vai espalhando alecrim pelos pratos que o  boteco serve para a freguesia mais exigente, que quer fugir das frituras.

Giovanni é proprietário de restaurante ("Boccaccio") e adota Raimundo Nonato. Ensina para o rapaz o básico. Como se fosse um ourives vai lapidando o cascalho até que a joia aflore. Não se decepciona. Apesar da ignorância abissal do ajudante – que, lentamente, vai sendo corrigida com paciência, com informação.

Segundo Exercício Pedagógico: a construção do amor.
Íria é prostituta. Dessas que ficam rodando a bolsinha pelas ruas. Dessas que fazem de tudo, exceto beijar na boca. Adora comer. Raimundo sabe cozinhar. A união da fome com a vontade de comer. Cada um servindo ao outro o alimento necessário para seguir em frente. O quartinho, lá nos fundos do boteco, se transforma em suíte de motel cinco estrelas. Não podia resultar em final feliz a união do fudido com a fudida. Raimundo se apaixona. Quer casar. Véu e grinalda. Ou melhor, com tudo o que considera ser seu direito. Não é assim que a vida funciona. Descobre essa verdade atemporal quando percebe que Íria também frequenta a cama de Giovanni. Tomado por ciúme, depois de beber o vinho mais caro do restaurante, mata os dois. Como se não bastasse, frita um pedaço da bunda da traidora. Antropofagicamente vinga a honra ofendida. Resultado: prisão.

Terceiro Exercício Pedagógico: a construção do poder.
Cadeia tem regras muito específicas. A vida de um homem perde valor. Necessário reinventar sabedorias. Comida ruim, servida em panelão, não há quem coma. A esperteza está em saber reconhecer o momento favorável. Na primeira oportunidade, Raimundo propõe serviço. O bandido que domina a cela gosta da nova comida. O mundo adquire outro sentido, embora aconteçam algumas bobagens pelo meio do caminho.

A metáfora do poder está contida na distribuição das camas do beliche da cela. Quem chega por último não tem nada. Com o passar do tempo, de acordo com a utilidade, é possível subir alguns degraus. É a trajetória que Raimundo vai traçando. Começou no chão, foi para o beliche de baixo, para o do meio. Dentro da cela, alimentando os companheiros, adquire poder (e ambição). A comida é uma arma, descobre Raimundo no momento em que, deitado no beliche de cima, toma o lugar do chefe da cela.


O homem ingênuo não existe mais. Raimundo Nonato é um homem igual a todos os outros.