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sexta-feira, 26 de abril de 2024

ÁGUA TURVA

 


O romance Água Turva, de Morgana Kretzmann, se concentra na luta pela conservação do Parque Estadual do Turvo (região noroeste do Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina).

Chaya Sarampião é guarda florestal. Sua prima, Preta, lidera um grupo de caçadores e contrabandistas, os Pies Rubros. Olga Befreien é jornalista. Essas três mulheres se unem – mas por motivos diferentes – para mudar a história da região.

O desaparecimento na mata do patriarca Sarampião, na década de 50, permite que a população de Dourado (local em que se desenvolve parte da trama) passe a venerá-lo como se fosse um santo protetor da região. Alguns episódios justificam essa crença (aparecimentos e desaparecimento em situações estranhas, curas de difícil explicação). Uma estátua na praça principal da cidade não deixa que a sua memória seja esquecida.   

Muitos anos depois, alguns acontecimentos são recuperados e fornecem luz para os acontecimentos do presente narrativo. O narrador (terceira pessoa, onisciente) intercala com habilidade os avanços e recuos temporais através de capítulos curtos, espelhando várias mudanças na composição narrativa e na postura psicológica dos personagens. Aqueles que pareciam ser progressista se mostram reacionários, quem estava à serviço de negócios escusos passa a denunciar a corrupção.                  

A venda de carne de caça e o descaminho (desvio de mercadoria para não pagar imposto) de vinhos argentinos são crimes frequentes na área do Parque. Cabe aos guardas florestais tentar impedir. Nem sempre é possível. As trocas de tiros são frequentes e muitas vezes terminam com feridos e mortos. Esses combates alimentam os ressentimentos – que, mais tarde, cobrarão o seu quinhão de sangue.

Nesse cenário – que mistura violência, alianças políticas e interesses econômicos – se acrescenta um componente ainda mais explosivo: o início das consultas populares para a construção de uma hidrelétrica na área em que está situado o Parque. Chaya se mostra contrária ao empreendimento. Olga, que assessora o deputado Afrânio Heichma, filiado ao Partido Nacional Ambiental (PNA), é enviada ao local para tentar cooptar os moradores. Não é uma boa escolha. O passado não lhe é favorável.

Desde as páginas iniciais a tensão é constante, todos os personagens parecem estar em guerra (ou se preparando para dias de dor e perdas). E isso se deve aos vários temas que aborda (a fraternidade, os amores proibidos, a defesa do meio ambiente, vingança e os jogos de poder).

Quando as três mulheres estabelecem uma trégua nas múltiplas diferenças que existe entre elas, e voltam as suas forças contra um inimigo comum (aqueles que querem destruir o Parque), o livro se encaminha para um final feliz. Não é isso que acontece. Quer dizer, parte dos problemas são reduzidos – mas isso significa apenas que as ameaças foram adiadas. Em algum momento, talvez sob nova roupagem, elas voltarão à pauta. A ganância não descansa.

Nas entrelinhas existem diversas alusões sobre a política nacional – principalmente a ausência de projetos de conservação ecológica e a proliferação de grupos reacionários, que usam o Estado para enriquecimento ilícito e o favorecimento de negócios contrários ao bem-estar público.

A construções das cenas, os diálogos e a fluidez narrativa de Água Turva antecipam uma possível adaptação para o cinema.             


segunda-feira, 22 de abril de 2024

AVISO DE INCÊNDIO

 

Head of a girl (óleo sobre tela, 1976). Lucian
Michael Freud (1922-2011). Coleção particular. 


Dentro do ônibus urbano. Todos ouviram a voz forte da mulher. 

– Tenho 200 anos e dois meses. É muito tempo nessa terra. Estou cansada. Todos esses motoristas e cobradores são meus bisnetos. Vou pegar o facão e atorar o meu coração. Assim acabo com essa feiura. 

Ela não tinha 200 anos, talvez um pouco mais de 60, mas o sofrimento estava estampado no seu rosto. Isso, de certa forma, explicava todo o esforço que estava fazendo para semear a tempestade. A dor compartilhada em alto e bom som.  

Estava sozinha – ou assim parecia. Repetia as frases em tom monocórdio. Parava um minuto ou dois e depois recomeçava. As mesmas palavras – como se estivesse escolhendo a decoração perfeita para aquele ambiente estranho. A audiência (ou seja, os passageiros) fingia não estar participando do espetáculo, preferia virar o rosto para o outro lado e mergulhar no mundo do faz de conta. A realidade imediata estava proibida de atrapalhar a existência de quem queria apenas chegar em casa ou no trabalho.

A imagem, como se fosse uma pintura trágica, dessas que estão abrigadas nas paredes dos museus, ficou pendurada na mente do homem quando ele desembarcou do ônibus. Não era a primeira vez que se deparava com esse tipo cena. Muitas pessoas estão afogadas por dentro. Falar constitui uma forma de voltar à tona, de respirar, de mostrar que querem continuar vivendo (mesmo quando dizem o contrário).  

Caminhou lentamente os quase 100 metros que o separava do apartamento. O ônibus sumiu na distância – e com ele, a mulher e o vocabulário áspero. Mas isso não trouxe alivio. Ao contrário. Sobrou um resíduo, uma angustia de espessura indefinida. O homem percebeu que não seria fácil esquecer o incidente. Inclusive porque não conseguiu aplicar à mulher um daqueles adjetivos que são usados para manter intacta a zona de conforto. A vida não gosta de respostas solúveis – prefere algo mais palpável. Mesmo que isso implique em conflito.

O que fazer? Esta é a pergunta que vale um milhão de dólares. De qualquer forma, o afastamento é terreno minado, areia movediça, armadilhas diversas. Ninguém consegue escapar sem algum tipo de perda.

Foi nisso que o homem pensou ao entrar no prédio. Será que o futuro que estava surgindo ali na esquina do tempo estava sinalizando para alguma coisa? Não era o momento adequado para alimentar a paranoia – disse para si mesmo. Em todo caso, enfrentou os degraus da escada com cuidado. Quem mora no primeiro andar não precisa usar o elevador.

Teve dificuldade para abrir a porta. Demorou um pouco para perceber que estava usando a chave errada. Entrou no apartamento e, depois de fechar a porta, foi para o escritório. Sentou no sofá e ficou olhando para algum lugar indefinido. Demorou uns dez minutos, talvez um pouco mais. Levantou-se e caminhou na direção da cozinha.

Voltou para o sofá com uma caneca de chá. Enquanto molhava os lábios com a bebida quente, o mundo começou a desmoronar.      


quinta-feira, 18 de abril de 2024

CINCO ESQUINAS

 


Jorge Mario Pedro Vargas Llosa (Prêmio Nobel de Literatura, 2010) possui rara habilidade para escrever ficção. Alguns de seus livros estão entre as melhores narrativas latino-americanas (A cidade e os cachorros, Conversas no Catedral, Tia Júlia e o escrevinhador, Pantaleão e as visitadoras, entre outros). Mas, como acontece com frequência entre escritores, é uma pessoa detestável politicamente. O admirador do socialismo e da revolução cubana se transformou em um conservador liberal. Alguns de seus artigos publicados em jornais e revistas de Espanha (onde reside) se aproximam das ideias defendidas por Tomás de Torquemada (1420-1498), o grande inquisidor.

Mas, como é de conhecimento geral, não se deve confundir a obra artística com os posicionamentos ideológicos do autor. Nesse sentido, o romance Cinco esquinas (publicado no Brasil em 2016), embora não tenha o mesmo brilho de A Festa do Bode (publicado no Brasil em 2011), aborda um tema significativo: os regimes absolutistas que resultam do esfarelamento das democracias. No caso de Vargas Llosa, uma pequena vingança contra um de seus inimigos, Alberto Kenya Fujimori – que governou o Peru entre 1990 e 2000 e o derrotou nas eleições presidenciais de 1990.

O livro inicia erótico, evolui para um caso policial e termina com o cinismo de sempre. Por alguma razão, talvez asco, Vargas Llosa em nenhum momento menciona Vlademiro Ilich Lenin Montesinos Torres, chefe do Serviço de Inteligência Nacional do Peru e eminência parda do governo Fujimori. Atualmente, assim como o seu chefe, o Doutor está preso e, talvez, pelo resto de sua vida.

Um cidadão de bem, empresário de sucesso, Enrique Cárdenas, cometeu uma “pequena” transgressão. Participou de uma orgia regada com álcool e cocaína. Era uma armadilha e o sujeito foi fotografado no exercício de algumas manobras sexuais capazes de ruborizar frade de pedra (como se dizia outrora). Dois anos depois do deslize, a conta bateu na sua porta. Rolando Garros, dono de uma revista de quinta categoria, Revelações, de posse das fotografias, pede um “patrocínio” (100 mil dólares) para a sua publicação. Indignado, o milionário o expulsa. Indignado, o jornalista publica as fotos. Escândalo na sociedade peruana. E que é ampliado quando o cadáver de Rolando Garro aparece em uma rua escura do subúrbio. Seguindo a regra geral, prendam os suspeitos de sempre, o empresário amarga alguns dias em uma cela fétida. Com exceção do trauma, tudo se resolve com rapidez. Um bode expiatório assume o crime, o caso é abafado e a paz volta a reinar entre os homens (e as mulheres) de boa vontade.

Enquanto isso, a revista, sob nova direção, segue na direção de novos escândalos (e, o mais importante, financiada pelo Doutor). Alguns políticos se tornam alvo dos boatos e acusações. Ou seja, para eliminar a oposição nenhuma arma é excessiva. Como a História é dinâmica, o reinado de Fujimori termina abruptamente, a revista publica um relato mais ou menos fiel aos acontecimentos e rompe com o governo. Os tempos que surgem no horizonte são outros.  

O caso lésbico, que envolve a esposa do empresário e a esposa do advogado, evolui para um ménage à trois. Ou, como sugerem as páginas finais do romance, um ménage à quatre. Os escrúpulos desaparecem. Parece que, depois do horror, todos adquiriram uma couraça e que, assim protegidos, nada mais os impede que exerçam os privilégios oferecidos pelo dinheiro e pela classe social.

Cinco esquinas mistura a crítica de costumes e os esquemas mais sórdidos da política. Enfim, uma boa combinação literária.  


Jorge Mario Pedro Vargas Llosa (Arequipa, Peru, 1936)

 


quarta-feira, 10 de abril de 2024

COELHO MALDITO

 


Tornou-se prática comum elogiar livro ruim. Influenciadores literários virtuais (ou não), principalmente aqueles que são “parceiros” das editoras, se desdobram em encontrar (e anunciar) qualidades nos livros que recebem. Alguns, os mais preguiçosos, nem isso. Preferem copiar algum trecho da orelha ou da quarta capa e publicar como se fosse uma crítica literária altamente qualificada.

Os contos da sul-coreana Bora Chung foram recebidos no Brasil com fogos de artifício e elogios tão retumbantes que parece que a escritora está prestes a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Como diriam os antigos, devagar com o andor, que o santo é de barro. A tendência editorial, que aposta na literatura que reúne no mesmo balaio o terror gótico e a fantasia (muitas vezes disfarçada de realismo mágico), não consegue perceber que Coelho Maldito (editora Alfaguara, 2024) é um livro pavoroso – e, para que não reste dúvida, isto não é um elogio.

A retomada de alguns temas conhecidos (duplo, rebelião dos robôs, escatologia, morbidez, fantasmas, magia negra, vingança, incesto, ganância, antropomorfismo) nem sequer caminha na direção da originalidade. O que se percebe é que algumas das narrativas foram modernizadas, adotaram o verniz da sociedade tecnológica, mas sem abdicar do antigo propósito: causar medo. Outras adotam o discurso das lendas asiáticas, onde o paradoxo ganha substância e dilui o real. Nesse tipo de literatura que flerta com o trash, a ciência, em lugar de produzir segurança, atemoriza; a religião não leva à serenidade, mas ao pavor; as relações comerciais não produzem bem-estar social – corrupção é a sua característica mais expressiva. Tudo é frágil, apenas o horror se mostra palpável.

A ausência de racionalidade não se cansa de proclamar as ações violentas através de descrições exaustivas sobre sangue, fezes, escuridão, tortura, mutilação, crianças imaginárias. Os espaços onde acontecem as narrativas são estranhos: banheiro, dentro de um carro que está afundando na lama, hospital, florestas, caverna, apartamentos inóspitos. Tudo contribui para causar sentimentos desagradáveis e aflição.  

Quase todas as dez histórias transitam em torno de personagens femininas. Mas, não se trata de traduzir as estruturas narrativas em defesa do feminismo ou do matriarcado. É o contrário. As principais questões das mulheres são substituídas por efeitos dispersivos e que visam chocar, ampliar o desconforto. Em alguns casos, o sobrenatural se impõe (A armadilha, Lar, doce lar); em outros, as violências cometidas por outras mulheres estabelecem a competividade como estratégia pontual (A cabeça, Dedos gélidos, Menorreia).

O conto mais angustiante, e o mais longo, Cicatriz, mostra a trajetória de um menino que é sequestrado e mantido isolado em uma caverna escura. É constantemente bicado por alguma entidade não nominada. A liberdade acontece em algum momento, vários anos depois. Como o rapaz não encontra correspondência no mundo (uma variação grosseira de Kaspar Hauser), torna-se um lutador de rua. Um homem, também inominado, agencia esses combates – e o controla apertando o seu pescoço, onde há uma cicatriz (uma espécie de calcanhar de Aquiles). A salvação nas lutas em que está em desvantagem surge com elementos do fantástico: braços que empedram, asas que aparecem inesperadamente. No momento em que deixa de ser útil é abandonado na floresta. O que se segue, seguindo o formato das narrativas circulares, procura explicar os diversos pontos em aberto na narrativa – uma espécie de começo e fim complementares, mas pontuado pelo absurdo. E com um agravante, o final evoca alguma lenda sul-coreana obscura e isso torna a narrativa mais bizarra, como se tudo não passasse de um pesadelo.

A morbidez, quando repetitiva, em lugar de produzir uma reflexão sobre a fragilidade humana, causa cansaço e tédio. E produz uma literatura que se afasta do afeto e exalta a brutalidade, além de estimular dramas imaginários, ignorar a realidade e convidar ao exercício da apatia sobre algumas questões políticas. Todas essas características, espelhadas nas formas literárias, contribuem, a médio prazo, para favorecer os abusos do autoritarismo e a consequente desumanização dos indivíduos.     


sábado, 30 de março de 2024

A CORNETA

   

 

Sem se ater aos esquemas rígidos do realismo, que exigem verossimilhança de todos os acontecimentos narrados, o romance A corneta, de Leonora Carrington (1917-2011), se concentra nas peripécias de Marian Leatherby, 92 anos – que foi internada pela família em uma instituição para senhoras idosas.

É um texto anárquico, repleto de esquisitices, de onirismo. Mais do que um recorte de um mundo em transformação, onde tudo se mostra absurdo e a presença do duplo é uma constante, o ponto alto está em algumas passagens, quando o texto está dentro de outro texto, transformando o enredo principal em secundário – para várias páginas depois retomar o andamento inicial.

Marian Leatherby está surda (uma forma de alienação do mundo real). Sua amiga milionária, Carmella, a presenteia com uma corneta auditiva. Desta forma, o silêncio, que era uma espécie de refúgio, passa a ser rompido nos momentos em que ela quer saber o que está ocorrendo ao seu redor. Evidentemente, isso não evita o exílio. Lamentando a falta dos charutos escuros, das pastilhas com essência de violeta, de não poder levar os gatos e a galinha, ela não entra em depressão. Ao contrário, entende que as perdas fazem parte do jogo e que não deve se lamentar pelo que não está mais sob controle.

Eu nunca estou sozinha, Galahad. Ou melhor, eu nunca sofro de solidão. Sofro muito com a ideia de que minha solidão possa ser tirada de mim por um monte de pessoas impiedosamente bem-intencionadas.

As nove hospedes da instituição comandada pelo dr. Gambit apresentam características peculiares, um leque que vai da timidez até a loucura paranoica. Ninguém é normal. O mesmo vale para as residências (castelo, chalés suíços, vagões ferroviários, bangalôs, prédios em forma de cogumelo, bota, múmia egípcia), que exploram o kitsch como uma manifestação artística. O fato que interessa é que o nonsense está presente em cada instante, em cada cena do romance. As imagens refletidas no espelho, o aparecimento de improváveis travestis, o assassinato sem explicação de uma das moradoras. A soma desses episódios significa muita diversão para o leitor – que encontra no estranhamento um humor delicado, mas que, a todo instante, pisa nos calos da política estatal. O autoritarismo, o cuidado com os idosos, as questões feministas, a precariedade dos trabalhadores, o descuido com as questões climáticas – todos esses temas, uns de forma explícita, outros de maneira sutil, estão contemplados na narrativa. 

Carmella, a personagem que surge em todos os momentos em que Marian precisa de ajuda, parodiando as narrativas triunfalistas, pode ter sido inspirada em Remedios Varo, a melhor amiga de Leonora Carrington. Suas intervenções providenciam comida, conforto, solidariedade. Além disso, garante que o pacto do afeto não seja rompido.   

Um dos pontos altos da narrativa se concentra em uma pintura que está na parede do refeitório. Marion imagina que a abadessa retratada está piscando. O sorriso de canto de lábio zomba de todos e de tudo. É como se de estivesse dizendo coisas que são incompreensíveis aos homens. Diante do quadro, Marion (instrumentada por Leonora Carrington) coloca em perspectiva a posição subversiva e excêntrica do feminino” (para usar as palavras de Olga Tokarczuk, no posfácio). Não é por acaso que muitas mulheres foram rotuladas como bruxas. Ao masculino escapa essa piscadela, esse olhar que abraça o que está fora do entendimento cartesiano, que institui outra ordem na confusão cotidiana.  

 

Mary Leonora Carrington Moorhead nasceu em Clayton-le-Woods, Lancashire, Inglaterra, em 1917. Depois de uma temporada em Paris, mudou-se para o México em 1941. Foi namorada de Max Ernest, mas rompeu com os modernistas europeus por questões feministas – isso não a impediu de criar um conjunto artístico surrealista. Teve uma vida repleta de aventuras e desventuras. É a mais importante artista plástica mexicana depois de Frida Kahlo. Amiga de Remedios Varo e Elena Poniatowska. Faleceu em 2011 (pneumonia).       

 

The meal of Lord Candlestick. Óleo sobre tela, 1938. Coleção Particular. 


TRECHO ESCOLHIDO

“Você quer dizer que estamos entrando em outra era do gelo?” perguntei, sem qualquer alegria.

“Por que não? Aconteceu antes”, argumentou Carmella. “Devo dizer que sinto que é justiça poética se todos esses governos terríveis morrem congelados nos seus respectivos palácios governamentais ou parlamentos. Na verdade, eles estão sempre sentados na frente de microfones, então há uma boa chance de que todos congelem até a morte. Isso seria uma boa mudança, depois de empurrar as nações pobres para a matança total desde mil novecentos e catorze.

“É impossível entender como milhões e milhões de pessoas obedecem a uma coleção doentia de cavalheiros que se autodenominam ‘Governo’! A palavra, imagino, assusta as pessoas. É uma forma de hipnose planetária e muito insalubre.”

“Isso vem acontecendo há anos”, falei. “E apenas poucos ousaram desobedecer e fazer o que chamam de revoluções. E quando vencem suas revoluções, o que às vezes aconteceu, fizeram outros governos, às vezes mais cruéis e estúpidos do que os anteriores.”

“Os homens são muito difíceis de entender”, disse Carmella. “Vamos torcer para que todos congelem até a morte. Tenho certeza de que seria mais agradável e saudável para os seres humanos não se submeterem a qualquer autoridade. Eles teriam que pensar por si mesmos em vez de serem sempre informados quanto ao que devem fazer e pensar por anúncios, cinemas, policiais e parlamentos.” 


quinta-feira, 21 de março de 2024

QUEM MATOU MEU PAI

 


Algumas leituras são dolorosas. Momentos em que o leitor precisa fechar o livro durante alguns instantes, tomar fôlego, reler o trecho perturbador, repensar algumas coisas e perceber que existe um entrecruzamento entre o que está sendo narrado e o que viveu (ou que poderia ter vivido). É o caso de Quem matou meu pai, de Édouard Louis (Editora Todavia, 2023). 

Retomando um tema muito presente na modernidade, as relações entre filho e pai, Édouard Louis se afasta da possibilidade simbólica de reconstruir o parricídio (que tinha ocorrido em outra oportunidade) e se concentra em criticar os programas políticos que promovem a extinção dos mecanismos governamentais de assistência social. E cita, nominalmente, os responsáveis por essas ações:  Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy, François Holland, Emmanuel Macron, Manuel Valls, Xavier Bertrand, Martin Hirsch, Myriam El Khomri, entre outros. 

São essas figuras públicas que promoveram, ano após ano, governo após governo, a precarização da vida dos aposentados. Cada euro confiscado resulta em dificuldades para comprar remédios, alimentos, pagar aluguel, sobreviver. São essas figuras públicas que contribuíram para que a sociedade francesa seja dividida basicamente entre pobres e ricos – ampliando a desigualdade econômica e social. Nessas condições, somente os ingênuos acreditam que o corte de benefícios pode resultar em tranquilidade. Por isso, não existe surpresa quando surgem inúmeras greves, constantes depredações do patrimônio público, embates com a polícia. No contra-ataque, as forças de repressão usam as pautas legítimas dos trabalhadores para estabelecer que estão a serviço dos patrões.

O pai de Édouard sofreu um acidente de trabalho e ficou incapacitado para retornar ao emprego. Além das dores físicas e da estigmatização social por ser um inativo, precisou conviver com o salário cada vez mais escasso e sem a assistência médica necessária. É uma vida miserável. E que – muito antes – tinha se agravado com o alcoolismo, a separação da esposa e os consequentes problemas domésticos. A estrutura familiar não sobreviveu aos momentos de ruptura afetiva e econômica.

Por vias transversas, em uma espécie de ato de contrição (que reúne o arrependimento filial e a restauração da paternidade), o relato de Édouard Louis tenta reparar o esgarçamento familiar.  Ele sabe que não existe conserto para o que o passado estragou – no entanto, por pior que sejam as condições, sempre existe a possibilidade de estender a mão e ajudar aquele que está debilitado.

Um outro fator que interfere na organização textual se mostra claro na diferença que existe entre o filho intelectual (com posições políticas especificas) e o pai semianalfabeto (apático por qualquer causa social). Quando o pai deixa de se envolver com as questões fundamentais, ele autoriza que o opressor atravesse as fronteiras do bom senso. Mais do que isso, compactua com a adoção das medidas previdenciárias que, a curto prazo, vão debitar a sua própria existência. É um processo de autofagia.

Sintético e contundente, Quem matou meu pai tem a potência de um cruzado no queixo do neoliberalismo. Se não produz o nocaute, ao menos deixa o adversário atordoado. E avisa, caso alguém queira alegar desconhecimento, que a luta não está resolvida em favor daqueles que detém os meios de produção.             


terça-feira, 12 de março de 2024

O CANIVETE E EU

 



Os homens, incidentemente, se dividem também em duas categorias: os que são e os que não são de canivete. 

(Fernando Sabino)

 

No final dos anos 80 do século XX, comprei um Victorinox. Perdi o canivete algum tempo depois. O meu nome estava gravado no dorso vermelho. Em diversas oportunidades quase comprei outro. Em algumas lojas de importados (Florianópolis e Joinville) pedi para ver aqueles que estavam expostos nas vitrines. Durante alguns minutos manipulei réplicas do desaparecido. Perguntei pelo preço. Não era caro, nem barato – cabia no meu orçamento. No entanto, lutando contra todas as forças do universo, resisti. Preferi continuar sem canivete. 

Aconteceu assim. Fui a São Paulo no início do século. O canivete estava unido ao molho de chaves. No aeroporto, em Florianópolis, nenhum problema. Na volta, a Polícia Federal imaginou a prática de alguma ação terrorista. Os protocolos de segurança depois de 11 de setembro de 2001 ficaram mais paranoicos. O voo estava quase saindo, não tive tempo para encontrar alguma alternativa. Vão-se os anéis, ficam os dedos.

Para ser bem sincero, o canivete não era muito utilizado. Nunca o usei para descascar laranjas. Como não sou da turma do cigarro de palha, também não piquei fumo-de-corda. Aliás, nem fumante sou. Apontar lápis é outra atividade que não executei. Escrevo a caneta ou no computador. Então, para que precisava do canivete?

Para lembrar. Era a recordação física de um período que considero importante na minha vida. Sim, algumas marcas ficam gravadas na pele da gente. Ver o aço da lâmina brilhando tinha como significado principal impedir que o passado fosse tratado como algo descartável ou substituível. Com o poder simbólico que atribuímos às relíquias, sentir o peso do objeto nas mãos ou no bolso equivalia a um ritual de celebração da memória.   

A ausência, mais do que assumir a forma de luto, amplia a frustração. É a potência da descontinuidade, o império da interrupção. De repente, sem que fosse permitido escolher em manter ou apagar o registro de algo que se destacou, o canivete servia de ponte entre o presente e o passado que deixou de existir.

Provavelmente, em algum momento impreciso, será como se o canivete nunca tivesse existido. A névoa do esquecimento encobrirá o percurso. E todas as coisas que a ele estão relacionadas também desaparecerão na bruma. 

Antes cair das nuvens, que do terceiro andar, observou o cínico Machado de Assis, fingindo não compreender a intensidade de alguns sentimentos. Renato Russo foi mais cruel: (...) a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre / Sem saber / Que o pra sempre / Sempre acaba!


segunda-feira, 4 de março de 2024

FIM DE TARDE EM UM DOMINGO QUALQUER

 


Exercendo o hábito de postergar tudo o que está ao seu alcance, ele deixou a visita ao supermercado para o final da tarde. No momento em que – finalmente – decidir ir, estava garoando. Mas, como se fosse um farol a iluminar o desatino, havia uma réstia de sol no horizonte. 

Embora a sua famosa expertise meteorológica não mereça confiança, calculou que dava para ir e voltar antes da chuva se tornar mais forte. Por isso, armado de coragem e determinação, deixou o guarda-chuva em casa. Isso não faria diferença ao final das contas – mas, naquele momento, não era possível prever o futuro. E ele precisava de pão, iogurte e aquelas bobagens que, se não modificam a vida, acrescentam um pouco de açúcar nas agruras do existir.

Foi. E não se incomodou com os esparsos pingos d’água que o céu derramava sobre o corpo. Fez as compras, acrescentando algumas coisas que não estavam na lista (e que lembrou estar em falta), pagou e, carregando as sacolas, voltou à avenida. Depois de ter caminhado umas duas quadras, foi atingido pelo aguaceiro. Em tempos de calor vulcânico, uma chuvinha de verão é sempre bem-vinda – disse para si mesmo.

Em uma avenida de poucas marquises, esse tipo de atitude não pode ser considerada uma prova de inteligência. A tempestade se intensificou – quase um dilúvio. Como era impossível ver um palmo diante do nariz, guardou os óculos em um dos bolsos da bermuda. Os chinelos e a camiseta estavam ensopados.  

Poderia ter se abrigado no ponto de ônibus ou no posto de gasolina. Poderia. Molhado da cabeça aos pés, preferiu continuar a jornada. Faltava pouco. Muito pouco. Por isso, abstraiu a umidade e se concentrou nos compromissos do dia seguinte. Repassou o pagamento do aluguel, a compra do bilhete de loteria, a visita ao barbeiro. Coisas miúdas da segunda-feira. 

Esse momento de afastamento da realidade não serviu como escudo contra a tempestade, que tinha aumentado. O vento também se fez presente – e certamente teria destruído o guarda-chuva que ele deixou em casa.     

Fazer o quê? Mais uns 200 metros e as compras seriam salvas. Raios riscavam o horizonte, trovões assustavam quem estava na rua. A nostalgia o pegou pelo braço e o fez voltar no tempo. Lembrou dos seus barquinhos de papel protagonizando aventuras por oceanos distantes. Naqueles momentos, pouco se importava com a briga – quando chegava em casa molhado como um pinto.

Junto com essas recordações de um passado que estava perdido, vieram outras, os irmãos correndo pela casa, as manhãs e as tardes na escola, as vozes da mãe e da avó repetindo ditados populares (não adianta chorar pelo leite derramado, cada um sabe onde lhe aperta o sapato). All those moments will be lost in time, like tears in rain...

Na porta do prédio, respirou demoradamente, o ar entrando nos pulmões como se fosse a brisa da primavera. Enfrentou as escadas, abriu a porta do apartamento, guardou as compras, tomou banho, e, como compete aos que cultivam desastres como se fossem flores, sentiu o quanto é bom estar vivo.    


sexta-feira, 1 de março de 2024

UM CRIME BÁRBARO

 



A morte violenta de Soeli Volcato, 13 anos, em uma localidade no interior do oeste catarinense, no dia vinte e um de agosto de mil novecentos e oitenta e um, é o ponto de partida do romance Um crime bárbaro (Autêntica Contemporânea, 2022).

Ao contar (de uma maneira muito particular) essa história, a narradora (em primeira pessoa) percebe que muitas lembranças não podem ser soterradas (alguns gatilhos remetem ao passado). Também descobre que o tempo não gosta de fornecer respostas às perguntas incômodas.

Ciente do quanto é difícil preencher o hiato que separa a tragédia e o momento da escrita, a narradora se desloca várias vezes do Rio de Janeiro até o local do homicídio. Quer encontrar algum tipo de explicação. Quer descobrir o que motivou a tragédia. Mesmo assim, depois de quarenta anos, é improvável que surja algo próximo da verdade (se é que isso algum dia foi possível).

No entanto, nesse tipo de investigação, urge ser persistente. Então, ela conversa com algumas pessoas (correndo o risco de que a memória distante distorça os fatos), estabelece a cronologia dos acontecimentos, imagina o que algumas pessoas fizeram naquele dia e, por fim, relaciona os prováveis responsáveis pelo crime e os motivos.

Infelizmente, nada se mostra sólido. Na estrutura do texto, a ficção possui maior relevância do que a realidade – talvez seja por isso que o texto está carregado de suposições. Nem mesmo a última parte da narrativa é capaz de fornecer uma explicação razoável. O homem entrevistado está doente (um câncer terminal) e morre antes de confirmar ou desmentir a acusação de que foi um dos responsáveis pelo assassinato.

Uma das qualidades de Um crime bárbaro está em mostrar um pouco de sociologia da literatura. Isto é, há descrições da mentalidade predominante nas pessoas que moram (moraram) nas áreas interioranas de Santa Catarina. Principalmente, a xenofobia (repulsa aos que não pertencem ao grupo estratificado) e a glorificação do trabalho como recompensa por uma vida sem perspectiva. Então, nos momentos de lazer (churrascos, festa de igreja ou da escola), surgem as desavenças entre vizinhos e as bebedeiras – compensação pelas horas de serviço braçal nas plantações, na lida com os animais (vacas, porcos, cavalos). Nessas ocasiões, as palavras expressam o que, no dia a dia, está interditado. Se as ameaças vão se concretizar, ninguém garante – mas, o sossego deixa de existir e o medo se torna constante.

Nesse mundo, as dificuldades da vida social se multiplicam. Algumas moradias são precárias, a evasão escolar não incomoda (sequer é percebida), faltam hospitais, os bens de consumo não estão acessíveis, a repressão policial conta com o apoio popular. O recorte da vida rural (e que não está restrito aos anos 80) revela uma estrutura que poucos desejam modificar – inclusive porque pode alterar os mecanismos de poder (principalmente na base eleitoral conservadora).

O romance de Ieda Magri, mais do que uma tentativa de esclarecer um episódio que provavelmente estava fadado a permanecer nas sombras da história, propõe um contraste entre a civilização e a barbárie. O final aberto, onde a incerteza se apresenta, revela que o horror está em vantagem.   


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

SOBRE A POESIA

 


A poesia não vale o papel em que é impressa. Incontáveis vezes esse tipo de argumento se repete. E parece estar absolutamente correto – mas por motivo oposto ao do declarante. A poesia não tem preço. Não é mercadoria.

Sequer há utilidade para a poesia. Usualmente trata-se de algo que atrapalha os dias de praia e sol, que incomoda aos que gostam de astronomia e astrologia, que tem a aparência dos peixes abissais ou dos animais extintos.

Um verso expande a potência do verbo, despreza a verba, reverbera o vazio e institui o caos. O pensamento se desdobra em novas presenças, ausências, referências e reticências. A árvore que recusa o asfaltamento do bom gosto.

Uma estrofe não compactua com o silencio e institui as frases com a violência dos vulcões que entram em erupção na primavera – exatamente quando todos julgam estar a salvo. A poesia incendeia a planície – ao som da onça com fome.

A linguagem como resistência. Empilhar sentimentos e inaugurar catedrais de vento. A iluminação obliqua, a sombra inesperada, a sobra. A vida dividida entre projetos falidos e noites turbulentas. A prece dos que não acreditam em deus.

A poesia respira a imensidão da Antártida no equinócio. Detesta compactuar com as certezas. Acrescenta novas dúvidas. Sabe que o nascer da manhã confirma a desventura, nega a usura, abomina a clausura.

A poesia não escolhe caminho, nem ordem, nem ideias, nem se detém diante do iníquo. A expansão é o seu destino, desatino de quem escolhe acolher em abraços os que estão satisfeitos com a imensa coleção de equívocos.  

A poesia não faz prosa, não carrega ramalhetes para o amor, não suporta paredes ou comporta escafandros. O poema gosta da palavra sim, mas prefere dizer não. E isso afasta a discussão, propõe a digressão. A poesia é a poesia e em si se basta.  


sábado, 24 de fevereiro de 2024

JORNALISMO: SOMATÓRIO DE DERROTAS

 


Durante muitos anos estive jornalista. Não estou mais. E isso é um alívio. Acreditem. Minha graduação foi no curso de letras, e, mais tarde, especialização em literatura. Ou seja, minha bagagem intelectual se situa em outros referenciais, muitas vezes distantes do profissional “raiz”. Isso é bom e é ruim. Bom porque me colocou em vantagem quando o material a ser trabalhado se referia ao jornalismo cultural. Ruim porque me obrigou a escrever sobre assuntos outros que não são os do meu agrado ou domínio. Tudo bem, uma das regras de ouro da profissão afirma que o jornalista é uma pessoa que sabe de tudo, mas não entende de nada.

Comecei escrevendo crônicas, resenhas de livros e artigos de opinião. Foi divertido – enquanto durou. Isso significa um período de uns 20 anos. Exerci a atividade, basicamente, em três veículos de comunicação: A Notícia (Joinville, SC), O Momento (Lages, SC) e O Escrivão da Serra (Lages, SC). Nesses três empregos o trabalho era remunerado. Esporadicamente, publiquei no Correio Lageano e no Diário Catarinense (o que me causa arrependimento até hoje). A proposição desses dois (falecidos) jornais era simples: a honra de ser publicado constitui pagamento suficiente.

Em determinado momento passei para o lado de dentro do balcão e comecei a viver o "sofrimento" na redação. Não sei se fiz boa troca. A necessidade de pagar as contas me deixou sem alternativas. É um serviço insano e que envolve mil complicações. Reescrever texto de analfabeto funcional é atividade trivial perto do olhar para o outro lado e ignorar que existem – a cada instante – interesses diversos em jogo. O jornalismo é um empreendimento tão desonesto quanto outro qualquer.

Um dos momentos mais interessantes desse percurso foram os 30 dias em que “estagiei” na redação do Anexo (suplemento cultural de A Notícia), no final do século XX. Estava morando em Meia Praia (Itapema, SC) e esperava pelo fim de uma greve na UFSC. Para garantir alguns trocados, escrevia artigos e resenhas e os enviava por fax.  Muitas vezes ocorriam problemas de transmissão – originando erros ou interpretações distantes do propósito inicial. No meio do caos, perguntaram-me se queria substituir alguém que estava saindo em férias. Aceitei. Valeu por uns três cursos universitários, mestrado e doutorado – tudo junto e misturado. Embora tenha sido um aluno indisciplinado (e isso faz parte da minha natureza), o aprendizado rende até hoje.

Tenho cópia física de algumas “matérias” que escrevi nesse período, muitas vezes página inteira, reflexo de um tempo em que o texto era valorizado e as imagens eram apenas complemento. A pasteurização da notícia, promovida por um conglomerado que comprou os mais importantes jornais de SC, não só implodiu a atividade profissional como contribuiu para o empobrecimento do leitor (de várias maneiras).

Com a popularização da Internet, os jornais físicos começaram a desaparecer. Além da competição quase que massacrante dos jornais televisivos, que abocanharam parte substancial dos anúncios, faltou perceber que o mundo estava em transformação. Embora alguns jornais estejam tentando sobreviver com versões on line, a verdade é que muitos profissionais capacitados migraram para outros formatos – onde podem negociar com os patrocinadores sem a intermediação de terceiros. Como afirmou, em outro contexto, Ryszard Kapuscinski, quando se descobriu que a informação era um negócio, a verdade deixou de ser importante.

Escrever em jornal significa “comprar briga” (com a fonte da informação, com o texto, com os editores, com o departamento comercial e – por que não? – com os leitores). Somatório de derrotas é a minha visão sobre essa travessia do mar da intranquilidade. Esclareço que isso não é blague de alguém que prefere, neste instante, ficar longe do olho do furacão.

Por fim, quando se fala em jornalismo, é necessário ter em mente duas versões da mesma tragicomédia: As pessoas não param de confundir com notícias o que leem nos jornais (A. J. Liebling) e, a mais importante, Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados (Millôr Fernandes).


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

HISTÓRIAS DE TESOUROS EM LAGES

 


Algumas lendas relativamente comuns na região sul do Brasil referem-se a possíveis tesouros enterrados – ou seja, grandes quantidades de ouro e prata que, por alguma razão, estão perdidas. Nos séculos XVII e XVIII, quando a corrida latino-americana do ouro e da prata estava no auge, quando se acreditava na existência de El Dorado, eram frequentes os conflitos armados entre os portugueses e os castelhanos. O transporte de valores era complicado (envolvia mulas de carga e grupos de escolta). Em caso de ataque inimigo, era necessário esconder os bens por algum tempo. A esperança de voltar para recuperá-los alguns dias depois nem sempre se realizava. Então, supõe-se que muitas riquezas ficaram ocultas em algum lugar não identificado por centenas de anos.

Com a expansão urbana das cidades (loteamentos) em áreas que até então somente eram acessíveis para gado e animais selvagens, algumas pessoas, movidas pelas histórias que foram transmitidas de uma geração para outra, começaram a procurar por esses esconderijos. Salvo engano, ninguém encontrou a fortuna.

Mas, a imaginação nunca descansa e existem na região do município de Lages, no mínimo, três ocasiões em que a crença popular projetou a possibilidade de alguém ficar rico com alguns desses objetos. Em duas dessas circunstâncias, as narrativas populares afirmam que foram encontradas na periferia da cidade algumas panelas ou baús cheios de ouro. Infelizmente não é possível comprovar a veracidade desses episódios.

O tesouro mais famoso da região dizem que está escondido no Morro do Juca Prudente. A história oral sustenta que, em algum momento, na segunda metade do século XVIII, um grupo de jesuítas estava sendo perseguido por criminosos. Expulsos da região de Sete Povos das Missões, os religiosos provavelmente se dirigiam para o litoral do Oceano Atlântico. Nas proximidades do Morro, sentindo que os inimigos estavam próximos, e impossibilitados de oferecer um mínimo de resistência, resolveram colocar em segurança parte da carga que levavam. Moedas de ouro, castiçais cravejados com pedras preciosas, aspersórios de prata, além de outras peças, foram depositados em um lugar secreto.  Por algum motivo (talvez tenham sido mortos), nunca voltaram para resgatar os objetos.

Alguns moradores das proximidades do Morro acreditam que as bolas de fogo que surgem no meio do campo, no período da noite, são manifestações dos espíritos errantes (fantasmas) que estão protegendo o tesouro e impedindo-o de cair em mãos erradas. Para os céticos, trata-se, provavelmente, de fogo-fátuo (combustão de gases provenientes da decomposição de matéria orgânica). Seja uma coisa ou outra, o fato concreto é que o mistério continua sem solução.

Como essas histórias, por enquanto, só se sustentarem como lendas, os caçadores de tesouros continuam vasculhando o território do município. E pouco importa se essas riquezas nunca existiram. Munidos de detectores de metal e mapas antigos, ambicionam encontrar o Santo Graal – ou o seu equivalente.


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

OESTE – a guerra do jogo do bicho

 


Um rio de sangue. Ou um açougue. Dezenas de personagens mortos em emboscadas, em confrontos com rivais, em explosões, em tiroteios com a polícia (civil, militar, federal). Esse poderia ser o resumo de Oeste – a guerra do jogo do bicho, de Alexandre Fraga.

Mas, reduzir o texto a umas poucas linhas não dá conta de todos os temas que estão presentes no livro. Um dos mais importantes se refere à traição: monstro que emerge do pântano da contravenção como uma das formas de ascensão ao poder. Todos quererem uma fatia maior do bolo econômico. O “inofensivo” jogo do bicho, em determinado momento, aposta no empreendedorismo e se expande em outras direções: máquinas caça-níqueis, cassinos clandestinos, prostituição. Muito dinheiro circulante. Isso desperta o desejo de possuir a chave do cofre. Como o sucesso das ações delituosas se baseia na confiança, no momento em que a realidade bate na porta e escancara o quanto as aparências são enganosas, todos se assustam. Nada mais resta senão derramar mais alguns litros de sangue. Apesar dessas ações estarem conectadas com um propósito pedagógico, eliminar o traidor não resolve a questão – sempre haverá alguém ambicioso o suficiente para tentar um novo golpe. 

A corrupção é outro tema espinhoso que aparece no romance. Quase todos os personagens que atuam nas áreas policiais e jurídicas mostram interesse em receber um por fora – a exceção é um policial federal (que age por vingança). Nessa confusão em que ninguém consegue distinguir quem é o bandido e quem é o mocinho, há uma espécie de normalidade nas idas e vindas de malas carregadas de cédulas por tribunais, delegacias e prisões. E quando o agrado não funciona, entram em campo outras armas: destruição de reputação, transferências funcionais, “suicídio”, etc. Enfim, o dinheiro fala mais alto. Em alguns momentos, grita. E produz muitos surdos – que fazem de conta que tudo está na mais completa ordem.

As guerras intestinas entre bicheiros também são abordadas no texto. Seja por ganância, seja por algum tipo de ofensa, o conflito desconhece a trégua. O resultado natural aparece na forma de ciladas, troca de tiros, mortes de alguns inocentes e muita corrupção. Em alguns momentos, o leitor tem a impressão de que o objetivo principal do mundo clandestino em que está situado o jogo do bicho é a autofagia. Reinventando o combate entre gangsteres (ou algum faroeste extemporâneo), eliminar o concorrente parece mais importante do que compartilhar os lucros. Mas, essa estratégia é uma via de mão dupla e o esforço sanguinário empregado na tarefa resulta em criar debilidades e, em alguns momentos, na própria destruição.

A narrativa também não economiza nas descrições sexuais. Embora o narrador mantenha discrição sobre os acontecimentos que ocorrem entre quatro paredes, tentando descrever o mínimo de detalhes, a narrativa sugere que a possibilidade de ser morto no dia seguinte implica em aumentar a libido, em criar relações (efêmeras ou duradouras) que sirvam para afirmar a importância de estar vivo – momento em que a atividade sexual surge como compensação pelo perigo.      

Oeste – a guerra do jogo do bicho (editora Record, 2014) usa imagens visuais fortes, próprias do realismo visceral. Essa escolha, além de denunciar a barbárie que estrutura o submundo do crime, desperta interesse no leitor.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

LENDAS E CAUSOS DE LAGES

 


A ficção sempre fez parte da vida dos moradores de Lages. É um mundo onde não há limites para a imaginação. Reunir uma serie de histórias e compor um fabulário não parece tarefa difícil, principalmente se o contador das histórias souber misturar o fantástico e o onírico com algum ingrediente humano (uma morte violenta, um amor interrompido, uma briga entre vizinhos, por exemplo). 

Nos Morrinhos, coração da Coxilha Rica, havia, na década de 1960, um olho d’água, uma nascente subterrânea, e que aflorava em um poço construído com pedras. Como ficava distante da casa grande, as crianças eram proibidas de brincar nas proximidades. Diziam que uma alma penada (que não tinha conseguido entrar no céu) vivia naquele local e costumava assustar quem se aproximasse do poço atirando pedras manchadas de sangue. Ninguém duvidava disso.

João Maria de Agostinho, conhecido como São João Maria, curandeiro e líder messiânico da Guerra do Contestado (1912-1916), quando visitou os arredores de Lages, ergueu uma cruz de madeira no topo de uma pequena colina, perto de uma cacimba. O imaginário coletivo logo concluiu que a cruz tinha poderes milagrosos. Fez-se ali lugar de peregrinação, promessas e rezas intermináveis. Algum tempo depois, construíram uma igreja. Pedaços da cruz estão preservados dentro da igreja.

Idêntica circunstância envolve a gruta de São Bom Jesus (Sambão Jesus, como dizia Edézio Nery Caon), que foi, em outros tempos, local de devoção dos católicos. No dia do santo (06/08) eram realizadas missa, churrascada, quermesse. Uma legião de devotos do santo se formou.   

No Parque Jonas Ramos (Tanque), local onde as esposas dos primeiros habitantes da cidade lavavam as roupas, dizem que Antônio Correa Pinto de Macedo (o fundador da cidade, em 1776) afogou a filha (que estava grávida de um bugre – índio Xokleng). Não importa que os livros de história desmintam esse fato e reafirmem que o sujeito nunca teve filhos, o que vale é a lenda e a lenda diz que a moça (ou a criança que estava para nascer) se transformou em uma serpente gigantesca – que, furiosa, queria destruir tudo o que estivesse ao seu alcance. Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira da vila, resolveu impedir a hecatombe que se anunciava e prendeu a cabeça da cobra embaixo de um de seus pés. Conta o povo que, no dia que a estátua da santa (que está na catedral, próxima do altar) for removida, a cobra estará livre e a cidade será arrasada. Como prova e ameaça, o rio Cahará serpenteia o centro da cidade.

Esse vaticínio apocalíptico leva à famosa declaração de São João Maria: quando as ruas de Lages se cobrirem de negro e a Catedral apresentar rachaduras no meio, estará próximo o fim da cidade, pois anoitecerá e não amanhecerá. Tudo será tragado e submergido nas entranhas da terra. Os mais velhos jamais questionaram essa profecia. Basta perceber que a cidade está quase toda asfaltada e que está localizada acima do aquífero Guarani, talvez a maior reserva de água potável do mundo. Será que, em algum momento, a reprisar alguma metáfora bíblica, a terra vai se abrir e engolir a cidade?

A ideologia bélica dos habitantes do Planalto Catarinense costuma glorificar um grupo de cavalaria que combateu na Guerra dos Farrapos (1835-1845), ao lado das tropas de Bento Gonçalves e Davi Canabarro. Nessa epopeia não faltam passagens heroicas, batalhas épicas e o famoso encontro amoroso e sexual entre Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva (também conhecida como Aninha do Bentão) e Giuseppe Garibaldi. O mistério que intriga os historiadores (e os escritores) está em descobrir se Anita Garibaldi nasceu no interior do município de Lages ou em Laguna, onde residia com o marido (que era sapateiro).

Márcio Camargo Costa, provavelmente o escritor que melhor compreendeu as tradições ficcionais da região, recuperou a história da Caudilha de Lages (Aninha Athanasio), senhora e dona do Raposo e do Cajuru. Com o chicote em uma das mãos e o nagant garrão-de porco na outra, ela fez os homens se curvarem ao seu poder. Era uma feminista avant la lettre

Uma das histórias mais horríveis da região também foi contada por Márcio Camargo Costa. Foi no tempo da escravidão. A esposa de um fazendeiro recebeu alguns amigos. Uma das escravas (que era muito bonita) sorriu para um dos visitantes e foi correspondida. A fazendeira, cheia de rancor, considerou a cena um desrespeito. Então, mandou quebrar todos os dentes da escrava. Em seguida, ordenou que fosse pendurada pelas orelhas no pelourinho – a moça lá ficou, os pregos se misturando com o sangue, a dor sendo traduzida em gritos e desejo de morrer.

No folclore regional, há outras narrativas, mais leves, menos amargas, e que envolvem maridos traídos, aventuras na “zona”, corridas de cavalos, golpistas, episódios de tolice política, bêbados, muitos bêbados. Há diversão para todos os gostos. Para quem gosta de histórias baseadas na vida real, os inúmeros episódios protagonizados por figuras pitorescas como Beto Louco, Nereu Goss, Rogério Castro, Clênio Souza, Luiz Alfredo Ribeiro, Morô, Al Neto e outros tantos não devem ser esquecidos. São peripécias que ainda estão para ser contadas em detalhes. Cada um desses personagens vale um livro!

Olhando para o passado, pensando no poder do imaginário e em quem gosta de ouvir uma boa história, cabe perceber que as narrativas que são recordadas com maior nitidez foram contadas em volta do fogão de lenha, em noites de inverno. As sombras projetadas nas paredes pelas labaredas e pelo lampião de querosene sempre foram mais eficazes do que os cenários teatrais. E esses relatos, que cobrem um vasto leque de emoções, transitam entre assombrações, golpes do destino, desilusões amorosas e aventuras épicas. 

Há quem diga que aquilo que não aconteceu precisa ser inventado.