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terça-feira, 31 de março de 2015

OS FILÓSOFOS GREGOS E CINQUENTA FRASES QUE LHES SÃO ATRIBUÍDAS

A democracia é o governo nas mãos de homens de baixa extração, sem posses e com empregos vulgares. (Aristóteles)

– Meu conselho é que se case. Se conseguires uma boa esposa, serás feliz; se ela for uma péssima esposa, serás filósofo. (Sócrates)

O sábio fala porque tem alguma coisa para dizer; o tolo porque tem que dizer alguma coisa. (Platão)

– Esperes de teu filho o que fizestes com teu pai. (Tales de Mileto)

Só é verdadeiramente livre quem está sempre pronto para morrer. (Diógenes de Sinope)

– Tudo aquilo que engana parece libertar um encanto. (Platão) 

Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substancia mortal no mesmo estado; por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação, esta se dispersa e se recolhe, vem e vai. (Heráclito de Éfeso)

– Os grandes navegadores devem sua reputação aos temporais e às tempestades. (Epicuro)

De todos aqueles que se consideram felizes, não há um que o seja. (Anaxágoras)

– O tempo é o mais sábio dos conselheiros. (Plutarco)

Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz. (Platão)

– A guerra é mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres. (Heráclito de Éfeso)

O sábio nunca diz tudo o que pensa, mas pensa sempre tudo o que diz. (Aristóteles)

– Deve-se temer mais o amor de uma mulher do que o ódio de um homem. (Sócrates)

Não sabemos escolher o que nos trará felicidade. E o que queremos nem sempre é o que precisamos. (Epicuro)

– Não há ninguém, mesmo sem cultura, que não se torne poeta quando o amor toma conta dele. (Platão)

A esperança é o único bem comum a todos os homens; aqueles que nada mais têm – ainda a possuem. (Tales de Mileto)

– Encontrar defeito é fácil, mas fazer melhor pode ser difícil. (Plutarco)

Dura é a luta contra o desejo – que compra o que quer à custa da alma. (Heráclito de Éfeso)

– A morte é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais. (Epicuro)

Se o corpo chamasse a alma perante a justiça, ele a convenceria facilmente de má administração. (Diógenes de Sinope)

– É um homem sensato aquele que não lamenta pelo que não têm, mas se alegra pelo que tem. (Epiteto)

O prazer é o grande incentivo para o mal. (Platão)

– Uma vez igualadas aos homens, as mulheres se tornam seus superiores. (Sócrates)

O sábio procura a ausência de dor e não o prazer. (Aristóteles)

– Queres ser rico? Não se preocupe em aumentar os teus bens, diminua tua cobiça (Epicuro)

Muitas palavras não indicam necessariamente muita sabedoria. (Tales de Mileto)

– Nada é tão flexível como a língua de uma mulher, nada é tão pérfido como seus remorsos, nada é mais terrível do que a sua maldade, nada é mais sensível do que as suas lágrimas. (Plutarco)

É estupidez pedir aos deuses aquilo que se pode conseguir sozinho. (Epicuro)

– Procura limpar a vasilha antes de lançar nela seja o que for; quer dizer, antes de pregar a virtude, reforma os teus costumes. (Epiteto)

O que faz o barco navegar não é a vela enfunada e sim o vento que não se vê. (Platão)

– A educação tem raízes amargas, mas seus frutos são doces. (Aristóteles)

Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância. (Sócrates)

– Paremos de indagar o que o futuro nos reserva e recebamos como um presente o que quer que nos traga o dia de hoje. (Heráclito de Éfeso)

Qualquer argumentação filosófica que não tenha como preocupação principal abordar terapeuticamente o sofrimento humano é inútil. (Epicuro)

– Toma para ti o conselho que dá aos outros. (Tales de Mileto)

Uma alegria tumultuosa anuncia uma felicidade medíocre e breve. (Plutarco)

– As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo. (Epicuro)

Devemos ter amigos que nos ensinem o bem; e perversos e cruéis inimigos, que nos impeçam de praticar o mal. (Diógenes de Sinope)

– A tua tarefa é a de representares corretamente a personagem que te foi confiada. Quanto a escolhê-la, depende de outro. (Epiteto)

O homem é um bípede sem plumas. (Platão)

– Na casa de um rico não há lugar para se cuspir, exceto em sua cara. (Diógenes de Sinope)

Nunca existiu uma grande inteligência sem uma veia de loucura. (Aristóteles)

– Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse de o fazer quando é velho, pois ninguém é pouco maduro ou demasiado experiente para conquistar a saúde da alma. (Epicuro)

Procure sempre uma ocupação. Quando a tiver não pense em outra coisa além de exercê-la com competência. (Tales de Mileto)

– Nada é permanente, exceto a mudança. (Heráclito de Éfeso)

A amizade e a lealdade residem numa identidade de almas raramente encontrada. (Epicuro)

– Muitas palavras não indicam necessariamente muita sabedoria. (Tales de Mileto)

O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete. (Aristóteles)

– O ideal do casamento é que a mulher seja cega e o homem surdo. (Sócrates)

sexta-feira, 27 de março de 2015

ANITA GARIBALDI E JULIAN BARNES SE ENCONTRAM EM CARCASSONNE

Conta a lenda que, em 1839, na cidade de Laguna, litoral de Santa Catarina, Giuseppe (batizado Joseph Marie) Garibaldi perdeu o controle das questões objetivas. Diante de Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva, a Anita, 18 anos, de ascendência portuguesa e índia, cabelos escuros, seios fartos, ele decidiu o futuro do casal com uma frase, Tu devi esser mia (Você deve ser minha). A parte divertida desse episódio é que ele falava um pouco de português, não muito, o suficiente para resolver as questões amorosas, além de muitos outros problemas. Por algum motivo que os historiadores nunca conseguiram explicar, preferiu utilizar o idioma que aprendeu na infância. Será que um homem (ou uma mulher), ao escolher a mulher (ou o homem) com quem vai compartilhar dias e noites, humores e gemidos, copos de água e taças de vinho, necessita se expressar como se estivesse em casa?

Anita Garibaldi
O encontro entre Garibaldi e Anita, momento clássico do romantismo histórico, teve que superar um pequeno obstáculo. Ela era casada. Com um sapateiro. De qualquer forma, essa dificuldade perdeu a importância rapidamente. A atração mútua falou mais alto. Tanto que logo estavam vivendo sob o mesmo teto. Casaram três anos depois, no Uruguai, depois que alguém lhes informou que o primeiro marido de Anita havia morrido. Estiveram juntos dez anos, combateram em dois continentes e tiveram quatro filhos. As surpresas da vida são frequentemente os clichês da literatura, lembra o narrador de Carcassonne, um conto do inglês Julian Barnes e que integra o livro Pulso.

O conto, que não preza pela linearidade, aborda diversos aspectos da indeterminação que constitui o conceito de “gosto”. No entanto, o narrador alerta que (...) a palavra – talvez por causa de sua grande abrangência – é enganosa. E complementa o comentário, fazendo um esforço de linguagem, mistura de observações triviais e filosofia, “Gosto” pode implicar uma reflexão calma; enquanto seus derivativos – bom gosto, com gosto, mau gosto, sem gosto – direcionam-nos a um mundo de diferenciações minúsculas, de esnobismos, valores sociais e acessórios de cama, mesa e banho. O verdadeiro gosto, o gosto essencial, é muito mais instintivo e irrefletido. Esse circunlóquio, próximo do torcer e retorcer a linha de pensamento que quer defender, tem como meta provar – racionalmente – que Apaixonar-se é a expressão de gosto mais violenta que conhecemos. É uma tese tão duvidosa quanto qualquer outra.

A cidadela de Carcassonne, departamento de Aude,
na região de Languedoque-Rossilhão, França.
 
Apesar de haver quem argumente contra, e são muitos, o conto sugere – com outras palavras – que o amor, a paixão, o desejo, o tesão, a excitação ou sabe-se lá que outro nome utilizado para caracterizar os diversos níveis de prazer que advém daqueles instantes em que o coração começa a pulsar descompasado, em que o corpo começa a arder, resulta na impossibilidade de controlar as emoções. O princípio básico quer estabelecer que os relacionamentos afetivos são derivados de um valor absoluto, que não pode ser questionado. O narrador do conto chama a esse momento de “Coup de foudre”, a flechada do raio e o estampido do trovão do amor. Enfim, diante de Eros (ou do Cupido), descobrir que é possível ter prazer com certas coisas que podem ser realizadas com certas partes do corpo de outra pessoa modifica comportamentos. Aproxima os indivíduos da (in)felicidade.

A famosa cidade histórica francesa de Carcassonne surge, pela primeira vez no conto, através de uma citação literária. Eu só queria me casar com ela como algumas pessoas desejam ir a Carcassonne, afirma Dowell, o narrador de O Bom Soldado, de Ford Madox Ford. O conto de Julian Barnes não relata se o casal Garibaldi lá esteve. Talvez isso não importe. Talvez Carcassonne seja apenas um desses lugares mágicos, que realizam os sonhos das pessoas apaixonadas e que transcendem aqueles que gravitam ao seu redor. Talvez.

 
Garibaldi e Anita, ferida, fogem de San Marino, 1849 (quadro de anônimo, século XIX).


TRECHO ESCOLHIDO 


Há alguns anos, numa conferencia de livreiros em Glasgow, eu conversava com duas australianas, uma romancista e uma cozinheira. Ou melhor, eu ouvia, já que elas discutiam como diferentes alimentos afetavam o sabor do esperma. “Canela”, disse a romancista com conhecimento de causa. “Não só a canela”, respondeu a cozinheira. “Você precisa de morangos, amoras-pretas e canela, assim funciona melhor”. Ela acrescentou que conseguia sempre identificar um carnívoro. “Pode acreditar, eu sei do que estou falando. Uma vez fiz uma degustação de olhos vendados.” Hesitante de como poderia contribuir à conversa, mencionei aspargos. “É”, respondeu a cozinheira. “Aparece na urina, mas também na ejaculação.” Se eu não tivesse anotado essa conversa logo em seguida, eu poderia achar que se tratava de um trecho de um sonho erótico.  

sexta-feira, 20 de março de 2015

SNIPER AMERICANO

Na frente de batalha os psicopatas encontram o paraíso. Sob a alegação de que estão protegendo a pátria, encontram uma maneira “legítima” de satisfazer os instintos mais perversos – sem precisar prestar contas para ninguém. Cada tiro disparado contra o inimigo constitui um alvará para a impunidade. Uma dessas histórias – com todas as atrocidades inerentes – está narrada em Sniper Americano (American Sniper. Dir. Clint Eastwood, 2014), baseado no livro American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U. S. Militar History, e indicado a seis Oscar em 2015 (ganhou na categoria Montagem de Som).

O filme conta a história de Christopher The Legend Scott Kyle (interpretado por Bradley Cooper), um soldado do SEAL (sigla da principal força de operações especiais de combate da marinha estadunidense e que possui capacidade para atuar no mar [sea], ar [air] e terra [land]). Durante a Guerra do Iraque, Kyle atuou como sniper (atirador de elite) e foi responsável por 160 mortes comprovadas de combatentes iraquianos – inclusive mulheres e crianças. Estimativas extraoficiais creditam-lhe um número bastante superior: 255. Condecorado diversas vezes, alguns setores militares estadunidenses o consideram um exemplo a ser seguido.

Centrado no personagem, ou melhor, na extrema habilidade do atirador, além de glorificar a violência produzida pela guerra, Sniper Americano se mostra incapaz de qualquer tipo de reflexão crítica ou emocional sobre as razões que resultaram no conflito. A alegação de armas químicas (que não existiam, como foi comprovado posteriormente) ou a imposição ridícula de um regime “democrático” no Iraque sequer são abordadas. Ou melhor, qualquer discussão sobre o assunto é abortada. O filme tudo faz para omitir o fato elementar de que a morte de civis iraquianos não pode ser separada do horror perpetuado pelas forças de ocupação. Um dos elementos que contribui para a formação dessa tempestade de areia  nos olhos do espectador (como retratado em um dos mais importantes momentos do filme), separando os lados tênues e limítrofes da questão, está no confronto ad hoc entre Kyle e seu duplo, Mustapha, um atirador muçulmano (originário da Síria), medalhista nas Olimpíadas (humilhação esportiva que Kyle – que nunca foi nada – não possui maturidade para superar). Como se fosse uma desses duelos de faroeste de terceira classe, o “mocinho” consegue sacar primeiro que o “bandido”. Headshot, gritaria, excitado, qualquer adolescente, em uma partida de Counter Strike.

O uso de um fluxo narrativo intenso, próprio de vídeo game, não permite nenhum tipo de discussão moral sobre o ato de matar. Tiros e corpos ensanguentados se repetem na tela com frequência anestésica. A ideia geral está em provocar tédio no espectador, induzindo o pensamento simplista de que tirar a vida do “inimigo” constitui um propósito que deve ser alcançado por qualquer patriota. Enfim, estar do “lado certo” é compensação suficiente para estruturar um personagem (e seu reflexo, o espectador) emocionalmente vazio. Mesmo nos momentos mais emblemáticos, quando – com as mãos sujas de sangue – qualquer ser humano desmoronaria psicologicamente, Kyle mantém – de forma inflexível – o discurso cego de que é apenas um militar que está defendendo o seu país e os soldados que integram a unidade em que serve. Protegido por essa couraça, ele segue assassinando, com precisão cirúrgica, aqueles que (independente de qualquer posição política) lutam contra os invasores do Iraque.

Depois de duas horas de projeção, cabe ao espectador com um mínimo de senso crítico perceber que o tremular da bandeira nacionalista em Sniper Americano não passa de uma desculpa para construir uma hagiografia. Somente os fracos de caráter ou os ignorantes caem nessa cilada, que almeja transformar uma máquina de matar em herói.

Nos raros momentos em que são mostrados encontros familiares, a dissintonia entre o mundo real (a guerra) e o mundo ideal (o prazer em estar com a esposa e os filhos) multiplica a sensação de alienação. Ou de paranoia. Quase ao final do filme, há um episódio sintomático em um churrasco de confraternização. Ao ver um dos filhos brincando com um cachorro, Kyle perde a noção de tempo e espaço e revive – através da brutalidade – o mundo hostil, mostrando que o instinto do psicopata ultrapassa as regras de comportamento social.

Em uma das últimas cenas, o ciclo da selvageria se perpetua. Assim como seu pai o ensinou a caçar, Kyle transmite o ensinamento ao filho. A diferença, nesse instante, é que, em determinado momento, rifle na mão, ele diz ao menino, it’s a hell of things, killing a beating heart (momento replicante de um filme anterior de Clint Eastwood, Os Imperdoáveis, [Unforgiven, 1992], quando um dos personagens diz it’s a hell of things, killing a man). Talvez seja esse “coração batendo” um dos raros momentos em que o sentimento humano, verdadeiramente humano, se destaca no filme. 

Chris Kyle foi morto a tiros por outro veterano de guerra, em 2013 – confirmando, por vias transversas, que o destino não perde uma oportunidade de propor ironias perversas.


P.S: Para quem tiver interesse nas representações cinematográficas da Guerra do Iraque, cabe ver Guerra ao Terror (Hurt Locker. Dir. Katherine Gigelow, 2009) e Zona Verde (Green Zone. Dir. Paul Greengrass, 2010), filmes qualitativamente superiores a Sniper Americano.  

segunda-feira, 9 de março de 2015

JEITO DE MATAR LAGARTAS

O mundo se [divide] entre os de coração aflito e os de maldade extrema, afirma o narrador de Cara de Boneca, um dos vinte e sete contos que compõem Jeito de Matar Lagartas, de Antonio Carlos Viana.

Manejando um universo literário centralizado na tragédia, Viana coloca em cena um peculiar conjunto de personagens – quase todos com dificuldades econômicas. Seguindo os passos do escritor russo Anton Pavlovitch Tchekhov – mestre na exposição das miudezas sociais –, exibe as inúmeras variações do horror sem o mínimo escrúpulo.

Jeito de Matar Lagartas se divide entre relatos da infância e da velhice. O olhar da criança, próxima da adolescência, misturando ingenuidade e esperteza em doses desproporcionais, registra a decomposição do corpo e do espírito dos adultos. Ao mesmo tempo, reafirma que a crueldade – gratuita – é a moeda corrente nas trocas simbólicas que separam o gozo e a dor. O olhar dos velhos, indivíduos que ultrapassaram inúmeras dificuldades e que, de alguma maneira, se tornaram sobreviventes de suas (nem sempre corretas) escolhas, confirma que a solidão e as carências afetivas não diminuíram com o passar dos anos e a consequente proximidade da morte. No mundo suburbano, repleto de ausências e misérias, a esperança de dias melhores desaparece diante do poder da perversidade.

No primeiro conto do livro, Muralha da China, um acidente automobilístico resulta em situação bastante tensa e que está concentrada na dificuldade de contar para a vizinha que o marido e o filho morreram. O registro da agonia não perde intensidade com a soma dos parágrafos. Ao contrário, acrescenta camadas de suplício ao drama.

O aprendizado (emocional, sexual) está presente no conto homônimo ao título do livro. Enquanto as crianças (Laércio, Lídia, o narrador), misturando brincadeiras e malícia, esmagam as lagartas que estão infestando os cajueiros do sítio de Marluce, a tia do narrador, outra história se desenvolve longe do olhar do leitor. Nas frases finais, o interdito sai das sombras e invade a imaginação, Quando abrimos a porta, tomamos o maior susto: tia Marluce estabanada debaixo do corpo de seu Laurentino, se contorcendo que nem uma lagarta.

Como Não há histórias de amor sem cuecas e calcinhas, as mulheres que deixaram para trás histórias de fracassos afetivos estão presentes em diversos momentos. Roteiro da Solidão, Nena de Cabelos Soltos, Paixão no Delta, Três Lembranças, pronunciam que a amargura e a solidão muitas vezes se transformam em substituto para o carinho. Viver com outra pessoa prenuncia o instante em que o abandono assume o controle da vida de quem acreditou no amor.

As ações sexuais – sempre desejadas; muitas vezes, inalcançáveis – revelam o reencontro com as delícias do prazer, como em Florais, onde a narradora, que ficara triste porque fizera com Alain Delon o que jamais havia feito com o marido, perde a discrição que sempre a caracterizara e confessa o inconfessável, só mesmo a Fúcsia da Califórnia para lhe dar aquela coragem de dizer que ainda havia um território em seu corpo que nunca fora explorado. A vida amorosa também espelha fracassos, como em Enquanto Espero, Madame Viola Faz Escova Progressiva, Dona Katucha, Gedeão, Maria Montez.
  
O olhar masculino sobre o abandono afetivo aparece – de forma contundente – em Amarelo Klint (relato sobre os elementos transversos que corrompem a amizade), Cara de Boneca (exemplo eloquente da banalidade do mal), Cozinha Benguela (momento de incomunicabilidade amorosa) e As Margens Férteis do Nilo (a paixão pela professora colegial reinventada trinta anos depois).

Algumas cenas conseguem sintetizar a vida repleta de dificuldades, de perdas. É o caso do mundo visto pelos olhos do amigo da menina paraplégica (Balé), do narrador inominado que relata um drama familiar (Professor Locarno) e do menino, em Salviano, que, diante da perda de seu animal de estimação, desabafa, Felizmente consegui segurar o choro. “Assim é a vida”, pensei pela primeira vez, enquanto meu pai molhava o dedo na língua para contar melhor o dinheiro.

Em Reencontro, a reflexão política, quase que uma desforra pelo sofrimento sofrido quarenta anos antes, se mostra inócua. Os problemas neurológicos do Monsenhor o estão transformando em um vegetal, incapaz de perceber o quão danosas foram as ações colaboracionistas da igreja com a tortura política.

As melhores histórias, Lucy in The Sky, A Caixa e Missa de Sétimo Dia, mostram que a tristeza não é impedimento para momentos de grandiosidade. Na primeira, o amor surge quando parecia estar perdido para sempre. Na segunda, uma caixa, enviada por Sedex para Annemarie, pode destruir o seu casamento com Duda. Na última, celebrar o amor perdido implica em encontrar resposta para uma pergunta desconcertante, Mas quem já viu coroa de flores em porta de sex shop?

Atento às ações de suas personagens, Antonio Carlos Viana utiliza da elegância das frases simples, dessas que adquirem substância através de elementos mínimos, para se afastar do sentimentalismo. Sem aliviar as tensões, sem amenizar a brutalidade, o corte afiado da lâmina literária revela a beleza do inumano.


Antonio Carlos Viana é o autor de Brincar de Manja (1974), Em Pleno Castigo (1981), O Meio do Mundo (1993), livros que foram reunidos pelo Paulo Henriques Brito em O Meio do Mundo e Outros Contos (1999). Depois publicou Aberto Está o Céu (2004), Cine Privê (2009) e Jeito de Matar Lagartas (2015).


quarta-feira, 4 de março de 2015

O IRMÃO ALEMÃO

Eu que nunca morri de amores por aquele irmão, eu que o teria trocado por um irmão alemão sem pestanejar, passei a me inquietar com a ameaça de ficar sem irmão nenhum.

A fraternidade reinventa a barbárie. Em famílias com dois ou mais filhos, cada um deles está sempre preparado para rachar o crânio do outro – e sem o mínimo arrependimento. Diariamente, transformam a cena doméstica em campo de batalha, onde raramente são superadas as disputas por ninharias, as cenas de ciúmes, os ressentimentos pela ausência de amor da mãe ou pela atenção do pai. Esse tipo de situação ocorre em consequência da leniência dos pais, que consideram a “marca de Caim” como um mito ficcional. Sem perceber que cada um dos filhos possui demandas e necessidades diferentes – e que precisam ser atendidas de forma específica –, propõem uma política familiar unificada. Sob a alegação de que todos devem ser tratados de igual maneira instituem uma “democracia” artificial.  Esse procedimento é desmentido pela prática diária e, de uma forma ou de outra, resulta em incentivo aos conflitos e confrontos psicológicos e físicos. A sobrevivência familiar está alicerçada em um jogo intermitente entre chantagens e concessões de favores. E isso causa uma série de problemas que o discurso ameno e hipócrita dos pais não consegue amortizar. Os conflitos familiares somente obtém trégua em casos de interesses circunstanciais, estratégias de sobrevivência ou ameaças externas (situação em que a união familiar é superior ao ódio fraterno).

No entrecruzamento entre o real e a ficção, Francisco (Chico) Buarque de Hollanda escreveu um romance estranho, O Irmão Alemão. Ao manusear um dos livros da biblioteca do pai, o narrador (alter ego de Chico) encontra uma correspondência datada de antes da II Guerra Mundial. Diante da revelação obtida pela leitura da carta, começa a somar indícios até ter uma imagem nebulosa sobre a projeção fraterna que está escondida nas lacunas familiares.

Fruto de uma relação amorosa do historiador Sergio Buarque de Hollanda, quando morou na Alemanha, um pouco antes da ascensão nazista, Horst Günther (batizado como Sergio Ernest) veio ao mundo em tempos sombrios. Quando Sergio pai precisou voltar ao Brasil, o filho ainda não havia nascido. Alguns anos depois, ao saber que havia deixado um herdeiro na Europa, mostrou disposição – financeira – de auxiliar a mãe do menino. A boa vontade esbarra em diversos impedimentos, resultantes da situação política europeia. Depois do fim da II Guerra Mundial não houve contato entre as partes. A história se perdeu nas folhas amareladas da correspondência esquecida dentre as páginas de alguns livros.

Encontrar o irmão perdido se torna uma obsessão para o narrador de O Irmão Alemão. Mas, de forma estranha, incompreensível, o romance não está exatamente centrado na vida do primogênito de Sergio Buarque de Hollanda. Dependendo do leitor é possível entender as 226 páginas (mais anexos) do romance como uma descrição errática, sem muito sentido, exceto ligar pontas soltas de fios desencontrados. Também podem ser vistas como uma disputa dissimulada pela progenitura ou como mero pretexto para cutucar uma ferida familiar que, depois de tantos anos, ainda não cicatrizou.         

O resto da história não passa de um imenso blábláblá, desses que misturam picuinhas familiares com discussões inócuas sobre política e história. Tudo é descrito de forma muito rápida, superficial, sem se ater ao que é importante – inclusive nos momentos em que denuncia o arbítrio dos governos militares. Aos olhos de algum leitor mais atento, o livro não passa de um instrumento de compensação pelo “erro paterno”. Encontrar o irmão perdido é uma forma simbólica de restabelecer o vínculo familiar, de resgatar para o rebanho a “ovelha perdida”, de propor a domesticação dos instintos mais primitivos. Obviamente, o narrador não assume esse propósito. Para mascarar os sentimentos, adota uma linguagem seca, isenta de emoções. Quer parecer que seu objetivo é “apenas” descrever os fatos, sem tomar partido a favor ou contra os acontecimentos. Não convence.

O irmão europeu foi um famoso apresentador de televisão na Alemanha Oriental. Talvez tenha combatido na guerra, como soldado do exército alemão. Quando o narrador encontra elementos suficientes para confirmar o que até então era apenas suspeita, constata que o primogênito morreu aos 51 anos, câncer no pulmão. Embora não o diga – e nem poderia dizer – percebe-se que ficou aliviado pelo destino o haver poupado do desconforto de olhar para o rosto do irmão. Não precisou conversar com ele e tentar justificar porque teve um pai e o Outro, não.

Depois que o leitor ultrapassa a última página de O Irmão Alemão, sobra o sentimento de que o romance foi escrito apenas para confirmar que o primogênito da família Buarque de Hollanda está morto. E enterrado.


P.S.: Quem tiver interesse na gênese de O Irmão Alemão deve ler O Irmão Brasileiro, reportagem escrita por Fernando de Barros e Silva e publicada na revista Piauí (nº 100, janeiro de 2015).