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segunda-feira, 22 de junho de 2015

OS APOSTADORES DE CAVALOS MORREM TESOS

Quem acredita que os criminosos se caracterizam por serem indivíduos mal-encarados e tristes provavelmente nunca leu os engraçadíssimos contos do estadunidense Damon Runyon (nascido Alfred Damon Runyan, 1880-1946). Salvo engano, somente o conto O Cabeça Vai Para Casa foi traduzido no Brasil e publicado em Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Brasileira (Org. Flávio Moreira da Costa. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001) e (com o título ligeiramente alterado) em Contos Norte-Americanos (Org. Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Ronai. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d).

Runyan ficou mundialmente famoso com a coletânea de contos Guys and Dolls, publicada em 1931, e que foi transformada em um grande sucesso musical da Broadway. Também há uma versão cinematográfica, com um elenco “estrelar”: Marlon Branco, Frank Sinatra e Jean Simmons (Dir. Joseph Mankiewicz, 1955).

Junto com O. Henry (nascido William Sidney Porter, 1862-1910) e Saki (nascido Hector Hugh Munro, 1870-1916), Runyon é um dos vértices do triângulo literário de língua inglesa que, na transição do século XIX para o século XX, elevou o conto até um nível artístico de primeira classe. Além da coincidência de não assinarem os seus textos com o nome de batismo, os três tinham inquestionável talento e bom humor.

A vida de Runyon foi dividida entre redações de jornais e mesas de bares. Nos intervalos, casou (duas vezes), teve filhos, e desfrutou da fama e da riqueza. No início da década de vinte, o seu salário alcançava a inimaginável (para a época) quantia de 20.000,00 dólares. Como trocava o dia pela noite, e raramente estava em casa, não conseguiu superar as crises familiares e o rompimento com as mulheres com quem teve algum tipo de envolvimento afetivo. Também não conseguiu evitar problemas com os filhos. Entre os seus inúmeros amigos no submundo do crime, Al Capone talvez seja o mais famoso.  Morreu vítima de câncer na garganta.

Quem não domina a língua inglesa e quer conhecer a produção literária de Damon Runyon precisará atravessar o Oceano Atlântico. Metaforicamente, claro. Há uma edição portuguesa, facilmente encontrável nos sebos, Os Apostadores de Cavalos Morrem Tesos, tradução de José Manual Batista, e que reúne sete das melhores histórias que ele escreveu. 

Runyon era um escritor coloquial, desses que procuram transcrever da maneira mais fiel possível a linguagem das ruas. Ou seja, seus textos estão repletos de gírias, expressões idiomáticas, trocadilhos e outros “ruídos” de linguagem. O resultado dessa confusão é muito engraçado. Principalmente quando chega ao leitor brasileiro através do português de Portugal. Os textos estão recheados de palavras que não estão registradas no Aurelião ou no Houaiss (chuis, candonga), além de outras que são tão raras que somente se encontram lá, nos dicionários (arquilho).  Sobra o trabalho de adivinhação. Ou melhor, de invenção. E nessa brincadeira, o prazer da leitura se multiplica.

Tendo como enfoque personagens marginais (assaltantes, bookmakers, batedores de carteira, apostadores compulsivos, prostitutas, falsificadores,...) Runyon mostra um lado da sociedade que somente costuma ter visibilidade nas páginas policiais. Mas, em lugar de se concentrar nas amarguras ou o que há de pior no ser humano, ele preferiu narrar o patético, o ridículo e o divertido. Em todas as histórias, alguém consegue superar as vicissitudes do destino e ver o lado bom da vida   mesmo que isso signifique ter que casar ou ir à igreja.   

O meu conto favorito, Butch Cuida do Bebé, é uma pequena obra-prima. Um trio de marginais, especialistas em pequenos furtos, descobre uma oportunidade de ouro. Um cúmplice, que trabalha como tesoureiro em uma empresa, avisa para eles que o pagamento dos funcionários está guardado no cofre. Basta ir lá e pegar o dinheiro. Quer dizer, antes é necessário resolver os óbvios problemas técnicos. E isso significa que será necessário explodir a porta do cofre. Eles não sabem como fazer isso. Mas conhecem alguém que pode executar a tarefa. O problema é que, depois que saiu da cadeia, John Ignatius, conhecido como o Grande Butch, casou, teve um filho e morre de medo da esposa. Além disso, prometeu que vai se regenerar, pois há uma lei em vigor que diz que quem for preso mais de três vezes por algum crime grave terá a sua pena transformada em prisão perpétua. E ele já esteve preso três vezes. Mesmo assim, eles o procuram. A conversa não anda. O arrombador precisa cuidar do filho, pois a esposa vai passar a noite em um velório. A situação entra em um impasse   e se resolve através do absurdo. Os bandidos, convencem o Grande Butch a levar a criança, alegando não haver perigo. Além disso, prometem 50% do que for angariado. Não há como resistir. Tudo é muito engraçado, a suspeita crescente de algo vai dar errado, todos eles são muito amadores, muito trapalhões. De qualquer forma, foi necessário dinamite para abrir a porta do cofre e isso causou bastante barulho. A polícia apareceu, houve tiroteio, muita confusão. O narrador do conto e o Grande Butch saem juntos, levando a criança – que não para de chorar. Esse é o final perfeito para o conto perfeito. Um dos policiais ao ver a cena, se aproxima, mas não prende ninguém. Quem imaginaria que um neném de colo teria participado de um assalto? Suspeitando que o menino esteja chorando pelo início da dentição, o policial aconselha o pai a ter paciência! O Grande Butch rebate dizendo que são cólicas. E assim, envoltos em preocupações sobre a saúde do bebê, os assaltantes escapam da polícia.  

Outros contos geniais são O Idílio de Sara Brown (uma variação do tema da conversão amorosa), Romance Tempestuoso (um dos casamentos mais divertidos da literatura mundial) e O Rapto de Bookie Bob (exemplo clássico de que nem sempre as coisas acontecem como o planejado).

As editoras brasileiras estão em dívida com Damon Runyon – um escritor muito divertido! E que precisa  urgentemente   ser conhecido por todos aqueles que gostam de um texto fluente, repleto de situações inusitadas.


quinta-feira, 18 de junho de 2015

HENRY JAMES EM CINQUENTA E DOIS FRAGMENTOS RETIRADOS DE ALGUNS CONTOS


Mulheres não são como homens. Conseguem amar mesmo quando sofrem. (O Altar dos Mortos)

– “Eu aprecio muito os médicos. Meu pai era médico” – disse a Sra. Freer. – “Mas eles não se casam com filhas de marqueses”. (Lady Barberina)

O crítico não é um homem comum: se fosse, o que estaria ele fazendo no jardim dos outros? (O Desenho do Tapete)

– Era fácil ir parar num deserto – era o que as cartas previam, era a lei da vida; mas era um acidente raro tropeçar numa fonte cristalina. (A Lição do Mestre)

Sua aparência normal era como uma cortina que ela podia suspender para apresentar um espetáculo memorável. (A Coisa Autêntica)

– “Ela é extraordinariamente, fantasticamente literária!”. Uma vez comentou que ela sentia em itálico e pensava em maiúsculas. (O Desenho do Tapete)

Uma mulher com o meu passado sabe muito bem como as paixões alheias podem ser insuportáveis! (A Vida Privada)

– Era uma força cega, violenta, à qual seria tão impossível vincular a ideia de responsabilidade quanto o seria responsabilizar o vento pelo ranger de uma placa. (A Morte do Leão)

Uma ignorância vale tanto quanto outra qualquer! (O Desenho do Tapete)

–Se ele a enganava era porque em seu desespero ela estava determinada a ser enganada. (A Vida Privada)

Minha intimidade com o escritor é para mim um troféu; empresta-me uma importância que eu não teria de outra forma, e tento privá-lo de distrações sociais para evitar que, ao conhecer pessoas mais desinteressantes, ele venha a descobrir meu verdadeiro motivo. (A Morte do Leão)

– (...) encantadora mulher que era bela sem beleza e perfeita com dúzias de defeitos. (A Vida Privada)

(...) dava a entender que o encanto desta experiência, o desejo de bebê-la, em todo o seu frescor, até a última gota, era o que o mantinha lá, junto à fonte. (O Desenho do Tapete)

– (...) sempre tinha pena das pessoas que eram publicamente solicitadas a ser simpáticas e divertidas. (A Lição do Mestre)

Por essa época ele já havia, claro, atingido a idade da renuncia; mas ainda não ficara vívido para ele que estivesse na hora de desistir de tudo. (O Altar dos Mortos)

– Inventava histórias a metro, porém era incapaz de escrever uma página decente. Morreu sem sequer desconfiar que, embora tivesse contribuído com tantos volumes para o divertimento de seus contemporâneos, não contribuíra com uma única frase para o idioma inglês. (Greville Fane)

Ao ver-me, ela brandiu um papel de tal modo que me fez descer num átimo: é assim que, nos melodramas, se brandem lenços e comutações de penas ao pé do cadafalso. (O Desenho do Tapete)

– Quando um homem atingiu seu quinquagésimo segundo ano sem estar, materialmente, gasto – quando tem boa saúde, uma fortuna razoável, uma consciência limpa e uma completa ausência de parentes embaraçosos –, suponho que está inclinado, por delicadeza, a se julgar feliz. (O Diário de um Homem de Cinquenta)

Este episódio viveria por anos em sua memória, juntamente com a sensação de deslumbramento que o acompanhou; havia nele aquela substancia de que a sorte só destila uma gota de cada vez – e que serve para lubrificar muitas fricções subsequentes. (A Lição do Mestre)

– Para uma pequena mentira contada sob pressão, um lugar conveniente geralmente pode ser encontrado, como, por exemplo, uma pessoa que, em uma estreia de uma peça, se apresenta com um recado do autor. Mas, a mentira exagerada é como o cavalheiro sem um ingresso que se acomoda com um banquinho no meio da passagem. (O Mentiroso)

A sagacidade e o ciúme eram meus; eram dele as impressões e as anedotas. (A Morte do Leão)

– Haviam desfrutado uma rara extensão do ser e me haviam arrastado em seu voo; só que eu não conseguia respirar em tal atmosfera e logo pedi para ser devolvida ao chão. (Os Amigos dos Amigos)

Ele tinha um traje para cada função e um motivo para cada traje; e suas funções, trajes e motivos sempre constituíram uma parte das alegrias da vida – uma parte, pelo menos, da beleza e do romance da vida – para um imenso círculo de espectadores. Para seus amigos mais íntimos, na verdade, essas coisas eram mais que um prazer: eram um tópico, uma contribuição social e, naturalmente, além disso, um tema para um suspense especulativo. (A Vida Privada)

– (...) começara a posar para um jovem artista que se propusera a pintar seu retrato, (...), cuja jogada, como dizíamos (...), era ser o primeiro a empoleirar-se no ombro da fama. (A Morte do Leão)

(...) com a expressão petulante de sempre, que nem a dor, ainda que provavelmente sincera, conseguia disfarçar. (Greville Fane)

– Disse que seria perfeitamente capaz de casar com uma moça pobre, mas que a primeira qualidade necessária, em qualquer jovem que pensasse, seria, no mínimo, a posse de um rosto que sentisse realmente prazer em contemplar. (A Roda do Tempo)

Aqueles que um dia amamos... São os que mais podem nos magoar. (O Altar dos Mortos)

– (...) elas distorciam minha despretensiosa intenção com uma perfeição admirável, que eram absolutamente idênticas tanto quanto me davam tapinhas nas costas como quando me chutavam as canelas. (O Desenho do Tapete)

Faz um ano que ela o presenteou com uma menina, em cujas feições Jackson já procura vislumbrar os traços da alta linhagem – se com esperança ou com medo, na verdade, minha musa não revelou. (Lady Barberina)

– Se o crédito é um grande bolso vazio onde de vez em quando se ouve um tilintar, é preciso que o tilintar seja ao menos audível. (A Coisa Autêntica)

De modo geral, ele sentia pouca inclinação pelo passado como parte de sua própria história; em outros momentos e em outros lugares esse passado quase sempre lhe parecia uma consideração lamentável, algo impossível de reparar; mas naquelas ocasiões ele o aceitava com um sentimento que lembrava aquela alegria positiva com a qual a pessoa se adapta a uma dor que está começando a ceder ao tratamento. (O Altar dos Mortos)

– Que eu me comportasse, pois, e não tentasse espiar atrás da cortina antes da hora de o espetáculo ter início: se ficasse quietinho agora, eu me divertiria muito mais depois. (O Desenho do Tapete)

(...) adorava a aristocracia, que era para ela o que de mais romântico havia no mundo e – mais importante – a matéria-prima da ficção. (Greville Fane)

– Sua felicidade o torna muito esperto. Espero que dure! Quero dizer, sua esperteza, não sua felicidade. (O Diário de um Homem de Cinquenta)

Eu não sabia se era uma lembrança imperfeita ou uma perfeita mentira, e a senhora Wimbush compreendeu muito bem o meu comentário silencioso a respeito de seu entendimento acerca de tais coisas. (A Morte do Leão)

– (...) desde o tempo mais remoto de que podia se lembrar, aconteceram coisas ao seu redor que o tinham feito sofrer, quando outras pessoas nada sofreram; e ele tinha guardado a maior parte deste sofrimento para si mesmo – o que o havia ensinado, de certo modo, como sofrer, e como quase gostar disto. (O Banco da Desolação)

Ele viu no meu gabinete apinhado, no meu dia destroçado, no meu rosto entediado e no meu gênio azedado – é embaraçoso, mas é preciso dizê-lo – a ameixa que coroava meu pudim, o próprio esplendor de minha glória. E viu na minha saciedade e no meu “renome” – pobre inocente iludido! – aquilo que em vão almejava. (O Grande e Bom Lugar)

– De sua personalidade eu tivera apenas relances e vislumbres, como uma canção cantada aos pedaços, mas agora a via à minha frente num largo e róseo fulgor, como se estivesse a pleno volume de som. Ouvi a canção inteira, e a sua música era doce e inédita que dali por diante eu a iria cantarolar com frequência. (Sir Edmund Orme)

Ela andou em sua direção, chegou até ele, ficou parada de pé ali, sentou-se perto dele, ele meramente passivo e assombrado, “impressionado” sem ressentimento, surpreso e absorvendo aquilo – e tudo como se com uma concessão aberta da parte de cada um, para que se encontrassem positiva e bastante intimamente, na impertinência de seu caso, este caso que os colora de novo, depois de anos horríveis, face a face, da vaidade da profanação, da impossibilidade de qualquer coisa entre eles exceto o silencio. (O Banco da Desolação)

– Teve, naquela noite, uma rica, quase feliz sensação de que só ele, em um mundo sem delicadeza, tinha o direito de erguer a cabeça. (O Altar dos Mortos)

– Ele talvez não tivesse tido mais perdas do que a maioria dos homens, mas havia contado mais as suas perdas; não vira a morte mais de perto, mas de certa forma senti-a com maior profundidade. (O Altar dos Mortos)

– A vida do artista é a sua obra, e é nela que devemos observá-lo. O que ele tem a nos dizer, ele o faz com a perfeição que se encontra “aqui”. Meu caro, o melhor entrevistador é o melhor leitor. (A Morte do Leão)

A gente hesita em destruir uma ilusão, por mais perniciosa, quando ela é tão deliciosa enquanto dura. (O Diário de um Homem de Cinquenta)

– Eu perdera não apenas os livros, mas também o homem: obra e autor haviam se estragado para mim. Além disso, sabia também qual das perdas mais me doía. Eu gostava do homem mais ainda do que dos livros. (O Desenho do Tapete)

(...) e deixamos a questão de lado como assente; abstivemo-nos de continuar a discuti-la. O que eu sabia, entretanto, é que ele se abstinha mais para agradar-me do que ceder às minhas razões. Não cedia – mostrava-se apenas indulgente; apegava-se à sua interpretação porque a preferia. Preferi-a, a meu ver, porque falava mais de perto à sua vaidade. (Os Amigos dos Amigos)

– (...) como se sua longa onde de infortúnio o tivesse arrastado muito além de tudo e então visivelmente se retraísse, foi assim encalhado pela ação da maré, depositado no vazio solitário do seu destino, sentiu que até mesmo manter o orgulho não representava nada e não sentiu nenhum desafio quando velhas mistificações, insinuando-se na penumbra de um dia de trabalho, arranhavam a porta da especulação e pairavam, ao alongo das horas ociosas, numa irritada presença. (O Banco da Desolação)

Por trás das cortinas cerradas do seu gabinete de trabalho, a chuva era audível e de certo modo misericordiosa; lavando a janela num fluxo contínuo, inculcava-se a coisa certa, a coisa que retardava e interrompia, a coisa que, se durasse, poderia limpar o terreno levando consigo até o oceano infinito os inúmeros objetos entre os quais seus pés tropeçavam e se transviavam. Ele tinha efetivamente deposto a pena como se cônscio de uma amistosa pressão da parte dela. O branco silvo soava na vidraça quando ele apagou a lâmpada; deixara inacabada a frase e os papéis espalhados, como se para que a enchente os levasse consigo no seu ímpeto. Mas ali sobre a mesa ainda estavam os ossos desnudos da sentença – e não todos; a única coisa que fora levada embora e que ele nunca poderia recuperar era a metade faltante, a qual poderia tê-la completado, gerando uma figura. (O Grande e Bom Lugar)

– Os principais alvos de minha raiva eram talvez os redatores-chefes das revistas que haviam lançado novos “destaques”, e que sabiam que o maior “destaque” de todos seria fazer o escritor trabalhar para eles, expondo suas opiniões a respeito das questões do momento e participando da garrulice jornalística a respeito do futuro da ficção. (A Morte do Leão)

Ela produzira em torno de si paixões com a mesma regularidade com que a lua provoca as marés. (O Altar dos Mortos)

– As pessoas não eram pobres, afinal, quando tinham tantas perdas a superar; eram positivamente ricas por terem tanto a que renunciar. (O Altar dos Mortos)

(...) o ardor do admirador era às vezes ainda mais voraz que o apetite do escrevinhador. (O Desenho do Tapete)

Eu devia ter imaginado que seria mais satisfatório saber-se partícipe de um desses acontecimentos inexplicáveis que são narrados em livros emocionantes e discutidos em doutos congressos; não podia conceber, por parte de um ser recém-engolfado no infinito e ainda vibrante de emoção humana, nada mais sutil e puro, nada mais elevado e augusto do que tal impulso de reparação, de admonição ou até mesmo de curiosidade. Aquilo era belo, se se quiser assim chamar, e eu, se estivesse no lugar dele, me envaideceria de haver sido de tal modo distinguido e escolhido. (Os Amigos dos Amigos)

terça-feira, 9 de junho de 2015

SÉTIMO – UMA REFLEXÃO SOBRE O CINEMA

Quando se diz que o cinema argentino está anos-luz de vantagem da indústria cinematográfica do Brasil, sempre surge no horizonte empoeirado do nacionalismo algum ingênuo (ou mal-intencionado) a dizer que não é bem assim, que isso é um exagero e que, mesmo que não haja reconhecimento do público, estão sendo produzidas boas comédias nos estúdios brasileiros. Ao ler esse tipo de declaração ufanista, nada mais resta senão reconhecer que o Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País) continua em uso, apesar de seu criador, Stanislaw Ponte Preta (também conhecido como Sergio Porto) ter falecido em 1968.

Basta uma visita a qualquer locadora de filmes (ou à Internet) para se perceber que o Brasil foi superado pela Argentina – e faz tempo! Não bastassem os dois Oscar de Melhor Filme Estrangeiro,  La Historia Oficial (Dir. Luiz Puenzo, 1985), El Secreto de Sus Ojos (Dir. Juan Jose Campanella, 2009), ainda há belezas de diversos matizes como Nueve Reinas (Dir. Fabián Bielinsky, 2000), Plata Quemada (Dir. Marcelo Piñeyro, 2000), El Hijo de la Novia (Dir. Juan Jose Campanella, 2001), El Abrazo Partido (Dir. Daniel Burman, 2004), El Hombre de al Lado (Dir. Gaston Duprat, Mariano Cohn, 2009), Un Cuento Chino (Dir. Sebástián Borensztein, 2011), Medianeras (Dir. Gustavo Taretto, 2011), Relatos Savajes (Dir. Damian Szifrón, 2014), entre outros.

Para exemplificar essa tese, cabe uma análise superficial de Sétimo (Septimo. Dir. Patxi Amezcua, 2015), que, embora não seja um filme espetacular, consegue captar o ritmo hollywoodiano dos melhores filmes de suspense. 

Em um dia que poderia ser considerado como comum, o advogado Sebastián (Ricardo Darin) precisa comparecer a uma audiência importante no fórum de Buenos Aires. Antes, passa no edifício em que mora Délia (Belén Rueda), a ex-esposa. É o seu dia de levar os filhos, Luca e Luna, à escola.

Quando estão juntos, o pai e os filhos compartilham uma forma de diversão aparentemente inofensiva. Sebastián desce pelo elevador, as crianças fazem o trajeto pela escada. Ganha quem chegar primeiro lá embaixo. Nesse dia, eles repetem a brincadeira. Mas, o resultado é inesperado. Em algum momento, entre o sétimo andar e o térreo, as crianças desaparecem. No início, Sebastián imagina ser uma brincadeira sem graça. Depois, o desespero toma conta e, sob o efeito da paranoia, começa a suspeitar de todos – inclusive do porteiro, Miguel (Luis Ziembrowski), e de um vizinho, o policial Rosales (Osvaldo Santoro).

A atmosfera dramática, misturando angústia e mistério, se torna aguçada. A sensação é ampliada pelo uso de um ambiente fechado. Quase todas as cenas estão centralizadas dentro do edifício – entre o sétimo andar, o térreo e a garagem.

Acossado pelo telefone – que não para de tocar –, Sebastián precisa estabelecer qual é a sua prioridade. Entre o futuro profissional, ajudar a irmã que pede socorro (vítima da violência do ex-marido) e o desaparecimento dos filhos, o grau de tensão psicológica se multiplica.

Diante do pedido de resgate (cem mil dólares), urge tomar medidas extremas. A violência urbana, que havia se manifestado intramuros, se expande na direção da vida coletiva. A vida de Sebastián entra em colapso. Nada mais será como antes.

O desfecho do filme une as diversas pontas soltas e surpreende pela forma com que a racionalidade combate a crueldade humana. No último instante, tudo se torna transparente. E assustador.

Para completar o raciocínio inicial, cabe perceber que um filme parecido com Sétimo provavelmente não seria realizado no Brasil. Entre os inúmeros problemas fáceis de localizar (atores competentes, financiamento para a produção, distribuição, imaginação para criar um roteiro decente, etc.), na primeira oportunidade, o(s) roteirista(s) incluiria(m) alguma piada idiota sobre a “esperteza” carioca ou sobre a ausência de humor dos paulistas, atitude instintiva de quem não consegue conviver com a aura que identifica a tragédia. Logo depois, confirmando que o brasileiro vive em constate contradição, tudo seria resolvido com gritos, tiros e algumas vítimas de “balas perdidas”. A “idolatrada salve salve” detesta a sutileza e a elegância.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

RAZÃO E SENSIBILIDADE

Um homem que não tem nada para fazer com o seu tempo não tem consciência de se intrometer no dos outros, diz Marianne, uma das duas protagonistas de Razão e Sensibilidade, um dos romances “menores” de Jane Austen. Essa afirmação mostra um dos momentos humorísticos mais expressivos da escritora inglesa, pois quem o emite passa cerca de 50% da narrativa doente ou chorando – que, grosso modo, é a mesma coisa. E isso significa que ela se intromete no tempo dos outros, que precisam deixar de lado as próprias atividades para cuidar de suas (dela) necessidades. A maior vítima (ou beneficiária) dessa situação é Elinor, que – na medida do possível – acompanha o sofrimento da irmã.

Tudo começou quando, um pouco antes de morrer, Henry Dashwood pediu ao seu primogênito, John, que protegesse a madrasta e as três irmãs (Elinor, Marianne e Margareth), frutos de seu segundo casamento. Na primeira oportunidade, Fanny, esposa de John, tomou posse de Norland Park, a mansão familiar, em Sussex, e promoveu a lenta e gradual expulsão das quatro mulheres – que, poucos meses depois, foram viver em Devonshire, em um chalé situado em Barton Park, na propriedade de Sir John Middleton, primo da viúva Dashwood.

Com essa base narrativa, Jane Austen repete o tema das donzelas desprotegidas e falidas que procuram – urgentemente – por um casamento (ver Orgulho e Preconceito ou Mansfield Park). O objetivo das irmãs mais velhas da família Dashwood, Elinor e Marianne, fracassa em razão de alguns enganos e várias escolhas desastrosas. Elinor se sente atraída por Edward Ferrars. O mesmo ocorre com Marianne, que imagina estar noiva de Willoughby. Os dois romances precisam passar por provações significativas.

Em primeiro lugar, o romantismo de Marianne (É muito impaciente, muito intensa em tudo o que faz. Às vezes fala muito e com muita animação, mas raramente é alegre) esbarra no pragmatismo de Elinor – que detesta situações que não controla. Basta lembrar a cena em que conversa com a mãe sobre o namoro da irmã:

– Não quero prova do amor deles – disse Elinor –, e sim do noivado entre os dois.

– Estou perfeitamente satisfeita com ambos.
– No entanto, nenhuma sílaba foi dita à senhora sobre este assunto, por nenhum deles.

– Não quis sílabas onde ações falaram com tanta clareza. 


O segundo obstáculo surge exatamente desse tipo de desentendimento. Depois de muitas situações nebulosas, e uma temporada interminável em Londres, quando acompanham a Sra. Jennings, as duas irmãs descobrem que os prováveis parceiros estão comprometidos com outras mulheres. Enquanto Elinor se protege com o manto estoico (ou seja, prefere lamber silenciosamente as próprias feridas), Marianne entra em estado de desidratação – tamanha é a quantidade de lágrimas que verte diariamente.

Contrário aos romances de ação, Razão e Sensibilidade se caracteriza pelo relato de poucos fatos significativos. A grande maioria dos acontecimentos se restringe ao terreno da imobilidade. Parece que as irmãs protagonistas estão a esperar por uma solução divina – que não acontece. A única ação efetiva, nas primeiras 150 páginas, se concentra nas cartas que Marianne envia para Willoughby. O resto é conversa, especulação, boato e fofoca.

Quando esse impasse avança na direção de algum esclarecimento, o leitor percebe que não foi possível alcançar algo mais substantivo. Infelizmente, a impressão não desaparece com o desenvolvimento narrativo. Willoughby se revela um cafajeste, mas disso ninguém tinha dúvidas. Edward Ferrars, protótipo do bom moço, perde a progenitura para poder honrar um compromisso assumido em uma ocasião de ingenuidade – fato que confirma o julgamento que ele faz de si mesmo: (...) meu próprio refinamento, e o de meus amigos, fez de mim o que sou, um ser desocupado e inútil.

Nesse ínterim, o Coronel Brandon entra em cena, mas a sua aproximação das irmãs tem a utilidade de uma sombra, ou de algo incorpóreo, e que não altera em quase nada o fluxo narrativo – como personagem ele se parece com algum elemento secundário do cenário, talvez um vaso em cima de uma mesa, próximo da janela.

Quando o leitor, preocupado com o restante da narrativa, imagina que o fundo do poço está próximo de ser alcançado, e não há mais como prosseguir, surge uma solução milagrosa. Por um desses mecanismos que somente a criatividade literária ou a rivalidade fraterna explica, Robert Ferrars, que se tornou o herdeiro da família depois que seu irmão, Edward, foi deserdado, resolve cortejar Lucy Steele – noiva do irmão. Esse curto-circuito social, confirmando a tese de Elinor de que a delícia de uma ação nem sempre demonstra a sua conveniência, termina em casamento. E, estranhamente, em liberdade para Edward – que, ato contínuo, pede a mão de Elinor. Como não poderia ser diferente, Marianne, que nascera para um destino extraordinário, encontra nos braços do Coronel Brandon a felicidade.

Há diversos motivos para ler Razão e Sensibilidade. Muitos deles estão encobertos pelo ritmo lento da narrativa. A crítica social, por exemplo, se projeta com bastante intensidade. A honra e o comportamento adequado em determinadas ocasiões são constantemente reiterados pelo narrador como valores sociais civilizatórios. Enquanto personagens como Willoughby e Robert Ferrars são vistos como indivíduos reprováveis eticamente, o contraponto está exatamente naqueles que se mostram retraídos em todos os momentos cruciais da narrativa, Edward Ferrars e Coronel Brandon. Nas entrelinhas talvez esteja escrito que a discrição e o bom-senso são fundamentais para elevar o caráter. Entre as mulheres, o destaque está na Sra. Jennings, que não possui travas na língua, se mete na vida de todo mundo e, de certa forma, adota as irmãs Dashwood como se fossem suas filhas. Ela é a personagem mais divertida do romance (embora diminua em intensidade na parte final do romance). Seu contraponto é Fanny, esposa de John Dashwood, e irmã de Robert e Edward Ferrars. Esnobe, invejosa e defensora de casamentos entre os membros da “classe alta”, produz uma das melhores cenas do livro quanto tem um ataque histérico – no momento em descobre que Lucy Steele está noiva (em segredo) de Edward. Por fim, o casal Sir John Middleton e Charlotte não passa em branco, inclusive porque recebem uma definição perspicaz: Apesar de terem temperamentos e comportamentos diferentes, pareciam-se muito um com o outro na total falta de talento e de gosto.


Razão e Sensibilidade não é o melhor romance de Jane Austen. Mas, seja como documento de época, seja como entretenimento, proporciona uma leitura agradável e divertida.


segunda-feira, 1 de junho de 2015

SUBMISSÃO

Foram duas sessões de leitura. A primeira, dentro de um ônibus, trajeto Florianópolis-Lages. Unindo a noite chuvosa e a dificuldades para dormir quando em viagem, foi fácil desaparecer dentro da narrativa por cerca de três horas e meia. A segunda sessão foi muito mais prosaica. Na tarde seguinte, as últimas setenta páginas foram consumidas com sede e fome.
Chamado tantas vezes de enfant terrible (embora não possa ser considerado um enfant e tampouco seja terrible), o escritor francês Michel Houllebecq, com o passar do tempo, se tornou – apenas – assustador. Não é pouco. Mas não é o suficiente. A vida contemporânea exige um pouco mais. Ou melhor, muito mais. E a literatura produzida por Houllebecq se tornou uma das maneiras de contemplar o abismo. Por isso, além de meia dúzia de outras razões (algumas, importantes; outras, banais), é difícil encontrar o elogio adequado para sintetizar o grau de prazer que advém da leitura de seu romance Submissão.
O protagonista e narrador, François, um especialista na literatura escrita por Joris-Karl Huysmans (1848-1907), é professor adjunto na universidade Paris III-Sorbonne, onde ensina literatura do século XIX. No âmbito particular, macera, com obstinada altivez, a própria solidão. Com poucos amigos, sem acumular ilusões ou perspectivas amorosas, políticas e econômicas, ele contempla o mundo. Ou melhor, aguarda o fim do mundo. Que ocorre – em sentido figurado – quando um político de origem muçulmana, Mohammed Ben Abbes, se torna presidente de França. A bolha de sabão onde François havia se encapsulado arrebenta. Não é mais possível continuar passeando despreocupadamente pela zona de conforto, apesar da visível alienação, (...) eu agora aspirava apenas a ler um pouco, a me deitar às quatro da tarde com um maço de cigarros e uma garrafa de bebida forte, mas também devia reconhecer que nessa toada eu ia morrer, morrer depressa, infeliz e só, e será que eu tinha vontade de morrer depressa, infeliz e só? Em última análise, mais ou menos.
As mudanças ocorrem com singela rapidez. O novo governo estabelece uma série de medidas que afetam a estrutura social de França. Uma das áreas mais afetadas, a educação, sofre várias transformações – inclusive a islamização dos currículos e do sistema de ensino. Em consequência, a vida profissional de François desmorona – ele aceita se aposentar prematuramente. Com tempo livre, viaja pelo país. Não encontra prazer nesse deslocamento sem critérios ou alegrias. O que imaginava ser afeto, se dissolve. Sendo, em essência, um misógino (como foi Huysmans), tem dificuldades para superar a perda da última de suas amantes, Myriam, de origem judaica, que, temendo pelo futuro, foge para Israel. Ele sente saudades daquela com quem teve alguma intimidade (em um nível emocional menos mecânico do que o gerado pelas incontáveis prostitutas que contrata). Em algum momento, entre o desespero e o ócio, tenta obter alguma forma de inspiração religiosa – seguindo os passos de Huysmans, que migrou do satanismo para o catolicismo. Em um mosteiro, percebe o óbvio: Na manhã do terceiro dia entendi que precisava ir embora, aquela temporada estava fadada ao fracasso.
 A conversão mística ocorre por outros meios. Mefistófeles sabe que as almas mais austeras se transformam em doçura quando recebem presentes – a beleza das embalagens superando o conteúdo. Em outras palavras, obstáculos que pareciam intransponíveis desmancham com a mais suave brisa – principalmente porque as “luzes” da modernidade não possuem autonomia energética. Cinicamente, a narrativa tem como mensagem principal informar que todo ser humano está à venda e que as diferenças entre o certo e o errado se resumem em acertar o pagamento (não necessariamente em dinheiro).
A mensagem subliminar do texto informa ao leitor que acabou o tempo da política. Diante da autofagia, nada mais resta a fazer. Não há mais lugar para o embate ideológico ou para o predomínio da razão humanitária. Enquanto a direita e a esquerda se digladiavam por um pedaço imaginário de carne (os votos da população), outra forma de pensamento político (o fundamentalismo religioso) se infiltrou no tecido social e assumiu lentamente o controle do espaço abandonado. Por isso, contemplar os destroços ou aderir ao novo ordenamento, não importa qual seja a escolha,é apenas um ato sem substância. O que se perdeu não pode mais ser recuperado. (...) a nostalgia nada tem de sentimento estético, tampouco está ligada à lembrança de uma felicidade, somos nostálgico de um lugar simplesmente porque ali vivemos, bem ou mal, pouco importa, o passado é sempre bonito, e o futuro também, aliás, só o presente é que faz mal, (...).
Alegoricamente, alguns trechos de Submissão parecem ter sido escritos especialmente para a realidade brasileira contemporânea. Ao retratar, de forma impiedosa, o completo desrespeito aos ideais republicanos (pelos profissionais políticos) e a apatia diante de questões de suma importância social (pelos eleitores), o romance sugere que a democracia e o processo eleitoral se tornaram ferramentas inúteis, que estão destinadas a serem manipuladas por interesses obscuros. Em consequência, em algum momento, provavelmente não muito distante, alguma força irracional vai irromper e corroer a estrutura que acreditamos ser estável. E isso ocorre, na atual conjuntura, porque todos os indivíduos, eleitores ou não, estão preocupados demais em salvar as próprias demandas. Não lhes resta força de vontade para o envolvimento em questões de interesse coletivo. A ganância da classe média alta, com seus sonhos de consumo desenfreado, adquire solidez a cada dia. A distribuição das riquezas causa medo. Para tentar se proteger dessa ameaça, aqueles que acreditam ser superiores aos seus semelhantes endossam valores como a meritocracia e a divisão de classes econômicas, culturais e raciais. Além disso, escolhem líderes manipuladores, que utilizam um discurso inócuo, sem conteúdo, para persuadir novos seguidores – aqueles que desconhecem o funcionamento da estrutura política.
A grande qualidade de Submissão está na facilidade com que flui o texto. A leveza narrativa e a técnica descritiva praticamente impedem que o livro seja abandonado pelo leitor. As primeiras cem páginas são divertidas. Sob a forma de comédia de costumes, uma ironia fina escorre pela realidade supérflua que caracteriza a modernidade. Nas outras páginas, o livro está focado em questões mais sérias. Talvez sérias demais para um relato ficcional. De qualquer forma, ninguém resiste a uma narrativa profética.