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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A BALADA DE ADAM HENRY

Os romances de tese estão fora de moda. Poucos são os exemplos contemporâneos em que alguma discussão ética, dessas que confrontam as diferenças entre o certo e o errado, se sobressai. A maioria das narrativas contemporâneas abordam, de forma superficial, os relacionamentos amorosos ou as ilusões do capitalismo. Em textos repletos de diálogos, projetando futuros roteiros de cinema, estão misturados diversos elementos de entretenimento banal (cenas de ação e doses controladas de sexo). Essa fórmula imbatível, utilizada pelos best-sellers, garante a venda de milhares de exemplares. 

A Balada de Adam Henry, de Ian McEwan, rompe com a apatia e enfrenta, sem medo, uma questão particular do embate entre a ciência e a religião. Adam Henry, 17 anos, sofre de leucemia e precisa de uma transfusão de sangue. Como ele e sua família professam a fé das Testemunhas de Jeová, essa hipótese está descartada – todos preferem oferecer o corpo do rapaz em sacrifício ao dogma religioso. Qualquer semelhança com o mito bíblico protagonizado por Abraão e Isaac não deve ser interpretado como mera coincidência. 

Em regime de emergência, o hospital em que Adam está internado entra com uma ação judicial para evitar a morte do paciente. A juíza que atende as questões de família, Fiona Maye, depois de uma breve análise dos argumentos defendidos pelas partes envolvidas, decide em favor do prolongamento da vida.

A toda ação corresponde uma reação, de igual força e sentido contrário. Esse princípio da física  (3ª Lei de Newton) também pode ser empregado para explicar alguns comportamentos humanos. Salvar uma vida cria laços afetivos – e pouco importa se alguns são indesejados. Adam, que é extremamente inteligente e tem uma compreensão da vida diferenciada, ao ver a estranha alegria de seus pais quando foi salvo da morte, se considera em dívida. Imediatamente se movimenta em direção do agradecimento. A juíza, que está tentando sobreviver a uma crise pessoal, o esfarelamento de sua vida conjugal, acredita que está sendo perseguida e repele o jovem acintosamente – apesar de, insensatamente, ter contribuído para que um mal-entendido se instalasse entre eles.

O restante da história não se mostra diferente de centenas de dramas em que os acontecimentos mais importantes são omitidos pela carpintaria narrativa. Ao descrever a reaproximação do marido e o fascínio da juíza pela música clássica, o narrador, ao mesmo tempo em que mantém o leitor preso à leitura, ergue uma parede para obstruir as imagens que realmente importam – e que surgem nas páginas finais do romance como um exemplo devastador das forças da natureza. Nem mesmo o recebimento de uma carta, contendo um poema bastante sugestivo, consegue atrair a atenção de Fiona Maye.

Algum tempo depois, ao descobrir que as estruturas em que se apoia (sucesso profissional, talento musical, estabilidade na vida conjugal) são irrelevantes, ela finalmente compreende que desperdiçou a vida com inutilidades. Os valores que deveria ter defendido ficaram esquecidos em algum lugar do passado, como se fossem objetos sem o mínimo significado. No entanto, a consciência do dano não repara o malefício. Essa é a tragédia e – talvez tarde demais – a redenção.


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

ALTOS VOOS E QUEDAS LIVRES



Aquele que ama precisa estar preparado para – em algum momento – enfrentar a perda. A indesejada das gentes (metafórica ou concreta) está sempre presente, assinalando a finitude, a solidão e a tristeza. Depois da morte da agente literária Patricia (Pat) Olive Kavanagh (1940-2008), com quem esteve casado por 29 anos, o escritor inglês Julian Barnes escreveu um relato em que o inominável utiliza trajes pouco usuais: balões e fotografia.

O inusitado convida para a aventura. Ao lado da industrialização crescente das cidades, a fotografia e o desejo de voar foram dois dos grandes desafios propostos pelo início da modernidade. Os balões eram inseguros, difíceis de navegar – pois dependiam dos ventos – e causaram dezenas de mortes. A aviação somente se tornou algo menos perigosa com o invento atribuído aos irmãos Wright e a Alberto Santos Dumont (dependendo da versão que for mais palatável). A evolução da fotografia foi menos traumática, embora dividida entre a perda da aura artística e a ascensão técnica. A miragem ideológica de que estava destinada a substituir a pintura e o desenho não ajudou muito. De qualquer forma, a partir do século XVIII, permitiu uma forma até então inédita de documentar as atividades sociais.

"Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes. E o mundo se transforma. As pessoas podem não reparar na hora, mas isso não importa. Mesmo assim, o mundo se transformou."



Altos Voos e Quedas Livres é um livro pequeno, dividido em três partes, 127 páginas, repleto de boas histórias, quase todas verdadeiras, embora algumas pareçam inverossímeis, talvez inventadas. Por exemplo, em 1858, Felix Tournachon, mais conhecido como Nadar, patenteou um sistema de fotografia aerostática. Ele imaginou a possibilidade de vender fotografias aéreas para o exercito francês. No entanto, quando Napoleão III, em 1859, ofereceu 50 mil francos por seus serviços na guerra contra a Áustria, o artista multimídia avant la lettre recusou!

Igualmente surreal é a cena protagonizada por Sarah Bernhardt, em 1878, a bordo do balão Doña Sol. Enquanto estava lá no meio das nuvens, na companhia do namorado, Georges Clairin, e de um baloeiro profissional, a atriz tomou champanhe e comeu porções de tartines de foie gras – que ela mesma havia preparado! Provavelmente isso não aconteceu, não importa. A imagem supera a veracidade.

São visões de um tempo em que a fotografia e a literatura se transformaram em alimento para o imaginário que une (e separa) a ascensão burguesa e o desenvolvimento tecnológico.

“Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes; e às vezes funciona, às vezes não.”


O romance entre um militar inglês e uma atriz pouco convencional (uma figura admiravelmente feita para a celebridade, conforme a descreveu Henry James) não pode ser concluída em bons termos. O envolvimento amoroso entre o capitão (depois coronel) Frederick Burnaby (um autentico balunático) e Sarah Bernhardt termina no momento em que ele perde a noção do perigo e faz uma proposta de casamento para a mais importante atriz europeia. Sem perceber que a prima donna era defensora de uma visão muito particular das relações afetivas, o sujeito foi incapaz de calcular a extensão do desapontamento. A saraivada de crueldades começa no instante em que a ouviu dizer que (...) eu não fui feita para a felicidade. O resto foi um massacre, as frases multiplicando a agressão: Sou feita para sensações, para o prazer, para o momento. Estou constantemente em busca de novas sensações, de novas emoções. Serei assim até minha vida terminar. Meu coração deseja mais excitação do que qualquer pessoa possa dar. Em seguida, como se fosse algo natural (e para ela era!), o convidou para modificar o status amoroso: o amante deveria se transformar em amigo. Burnaby não achou graça nessa proposta. Preferiu ir embora. Melhor curar as dores de amor brincando com balões.

Nas relações amorosas, todos parecem destinados a viver a tragédia como se fosse uma segunda pele. Burnaby nunca mais procurou por Sarah. Morreu em 1885, na batalha de Abu Klea, no norte de África.

“Você junta duas pessoas que nunca foram juntadas antes. Às vezes é como aquela primeira tentativa de atar um balão de hidrogênio a um balão de fogo: você prefere cair e pegar fogo ou pegar fogo e cair? Mas às vezes funciona, e algo é criado, e o mundo se transforma. Então, em algum momento, mais cedo ou mais tarde, por um motivo ou outro, uma delas é levada embora. E o que é levado embora é maior do que a soma do que havia. Isto pode não ser matematicamente possível; mas é emocionalmente possível.”


Kingsley Amis, Pat Kavanagh, Martin Amis e Julian Barnes
A perda se manifesta nos momentos mais corriqueiros da vida pessoal. A voz que já não mais pode ser ouvida, o calor do corpo que não pode mais ser sentido, as conversas que pareciam destinadas a nunca terminar, as chaves que abrem a porta do apartamento – que ficou vazio sem a presença desejada. São tantos os indícios a requerer resiliência. Ninguém consegue se preparar para essa circunstância, ninguém consegue enfrentá-la como se fosse algo corriqueiro. A ausência assusta, revela vulnerabilidades, destrói qualquer forma de resistência. E o mais desprezível é que a vida continua – agora sem a presença de quem nos deixou. (...) a alegria se tornou mais frágil e (...) o prazer do presente não se compara ao prazer do passado.

O esforço de Julian Barnes, ao tentar relatar o quanto lhe foi doloroso presenciar os últimos dias de sua esposa, resultou em um texto pungente. Manejando um ponto de vista aparentemente distanciado, mas não muito, Barnes tentou fugir das demonstrações emocionais. Quis parecer imparcial, quis mostrar força ou estoicismo. Por exemplo, em nenhum momento (exceto na dedicatória, no início do livro) menciona o nome de Pat. Obviamente, essa estratégia não funciona. O leitor sabe sobre o que ele está escrevendo, a respeito de quem ele está escrevendo e para quem ele escreve. E essa discrepância oferece a verdadeira conexão entre o texto autobiográfico e o prazer de ler o que foi escrito com paixão e carinho.

Ao final, Barnes explica que nem sempre os balões conseguem voar, nem sempre conseguem pousar em segurança. A queda é uma possibilidade que não pode ser desprezada. Assim como algumas fotografias escondem as imagens que estão fora do alcance da lente, a dor de quem perdeu a pessoa mais importante de sua vida também não é nítida. O aparente, envolvido por uma névoa, encobre os sentimentos que não devem ser mostrados em público (mas que são!).

“(...) toda história de amor é potencialmente uma história de sofrimento. Cedo na vida, o mundo se divide cruamente entre aqueles que fizeram sexo e aqueles que não fizeram. Mais tarde ainda – pelo menos se tivermos sorte (ou, por outro lado, azar) –, ele se divide entre aqueles que enfrentaram a dor da perda e aqueles que não enfrentaram. Essas divisões são absolutas; elas são trópicos que cruzamos.”  

P.S.: Para evitar constrangimentos desnecessários, Julian Barnes omite que esteve separado de Pat Kavanagh nos anos 80, quando ela manteve um romance com a escritora Jeanette Winterson. 

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O CHEIRINHO DO AMOR

Tarado! Degenerado! Canalha! Despudorado! Obsceno! Safado! Sem-vergonha! Boca suja! Os adjetivos, todos seguidos por indefectível ponto de exclamação em riste, são utilizados a granel para criar um efeito multiplicador da indignação. Alguns, como é o caso dos pouco frequentes fescenino, ignominioso, licencioso e safardana, mostram que um bom repertório de insultos e ofensas pode ser visualizado como um fator de instrução cultural – para descobrir os significados basta consultar os dicionários ou acessar o titio Google, está tudo lá, ao lado de coisas piores.

O homenageado por tantas láureas, Reinaldo Moraes, parece não se importar com essas incontroláveis e efusivas demonstrações de carinho. Muito pelo contrário. Gargalha na mesma proporção com que os detratores tentam intimidá-lo. Fato comprovado pelos textos que integram O Cheirinho do Amor, livro que reúne três dúzias de crônicas publicadas na revista Status, entre março de 2011 e maio de 2014, e que tratam dos mais variados e malucos desvios (e acertos) sexuais. Na cama, sofá, banco de trás do fusca, além de outros lugares possíveis para a, digamos, acoplagem sexo-recreativa, cabem centenas de casos, anedotas e considerações de ordem político-filosófica. Por exemplo, as contribuições ao mundo do sexo do artista plástico Jeff Koons, ex-marido da ex-deputada italiana Ilona Staller, conhecida mundialmente como Cicciolina. No mesmo diapasão, merece atenção algumas sugestões sobre as comemorações que podem ser realizadas em 6 de setembro (6/9), dia do sexo. Empalamentos, promovidos entre moradores do Vaticano e rapazes liberais, e os esforços imaginários para dar um gás no clássico cinco-contra-um também foram incluídos no repertório. O empreendedorismo de Tracy Elise, que fundou o Templo da Deusa, uma instituição pornô-religiosa destinada a ensinar as delícias do sexo tântrico aos interessados na modalidade, revela que na prática diária das mais interessantes sacanagens não está incluído o bom comportamento – que, sem querer abusar das metáforas, na hora do bem-bom deve ser a primeira peça de roupa a ser despida.

Em dois momentos (no mínimo) o leitor precisa tomar folego, respirar fundo e se divertir – e muito, pois a vida, mesmo naquelas ocasiões em que tangencia o trágico, não consegue fugir do patético. Ao comentar as travessuras pornô-sexuais de James Hunt (1947-1993), piloto de Fórmula Um, na crônica Histórias do Pancadão, Reinaldo, produz uma fantástica resenha do filme Rush – No Limite da Emoção (Dir. Ron Howard, 2013), que retrata as últimas corridas do campeonato mundial de automobilismo de 1976. Aliás, quem ainda não viu o filme, precisa correr para a locadora mais próxima e alugar uma cópia. O outro instante de brilho está na crônica homônima ao título do livro e  trata de algo incorpóreo, porém de suma importância para quem valoriza a doce arte do fuque-fuque. Transitando entre as épicas memórias de um tempo que nem mesmo uma dose reforçada do comprimido azul consegue recuperar e os reflexos produzidos por um filme clássico, Perfume de Mulher (em duas versões, lembrarão os cinéfilos: Dir. Dino Risi, 1974 e Dir. Martin Brest, 1992), Reinaldo discorre com ares de catedrático sobre essa madelaine proustiana a-pós-a-moderna-idade que são os odores femininos. Ciente de que não há afrodisíaco mais poderoso que o bouquet intimo, faz uma serie de considerações de suma importância sobre fragrâncias e sabores extraídos nos momentos de atividade sexual. Enquanto tem olfato, o ser humano tem tesão, esclarece o mestre.

Reinaldo Moraes declara que só os tolos confundem sexo com amor e amor com sexo. E, como as suas crônicas estão focadas exclusivamente no sexo, as questiúnculas que caracterizam o amor não estão incluídas no pacote. Por isso mesmo, o autor mostra não ter pudor com os interditos impostos pelo discurso edulcorado pelo politicamente correto, aquele mesmo que foge de palavras-chaves como buceta, caralho, cu, porra, trepar, cabaço e punheta, entre outras menos votadas pelos ilustres pervertidos de plantão. Ele sustenta (nas entrelinhas) a ideia de que essas palavras – e seus sinônimos – são totalmente adequadas para a conversação diária, seja na mesa de bar, seja no convívio do lar. Errado é reprimir pensamentos ou omitir sentimentos.

O ser humano (desde o momento em que a primeira célula se reproduziu por mitose ou meiose, sei lá qual, faz tempo que fugi da escola) pode ser definido como uma espécie de abaporu (do tupi, aquele que come gente). No bom sentido, óbvio. Homens e mulheres adoram trocar fluídos, odores e gemidos nas mais variadas situações, posições e profundidades, confirmando que na vida sexual não há lugar para a apatia (do grego, apathea, ausência de paixão). Quer dizer,... broxar também faz parte – contanto que esse acidente de trabalho não se transforme em rotina!

Na imensidão do Brasil varonil não faltarão feministas e reprimidos para rotularem O Cheirinho do Amor como um livro machista, quiçá misógino. Bobagem. Gente séria demais é gente chata – e desses leitores o Reinaldo Moraes não precisa. 

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

PASSEIOS PELA LITERATURA RUSSA (I)


A era de ouro da literatura russa terminou a mais de 70 anos. No entanto, quase todos os escritores que brilharam naquele período ainda continuam vivos (através das constantes reedições de seus livros). Quem gosta de boas histórias não pode ignorar o talento de Aleksandr Sergueievitch Púchkin (1799-1837), Mikhail Iurevitch Liermontov (1814-1841), Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852), Ivan Sergueievitch Turguêniev (1818-1883), Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), Liev Nikoláievitch Tolstói (1828-1910), Nikolai Semiónovitch Leskov (1831-1895), Vladímir Galaktiónovitch Korolienko (1853-1921), Vsiévolod Mikhailovitch Gárchin (1855-1888), Anton Pávlovitch Tchekhov (1860-1904), Fiódor Sologub (pseudônimo de Fiódor Kuzmitch Tetiérnikov) (1863-1927), Maksim Gorki (pseudônimo de Alexei Maksimovitch Pechkov) (1868-1936), Leonid Nikoláievitch Andreiev (1871-1919), Aleksandr Ivánovitch Kuprin (1870-1938), Isaac Emmanuílovitch Babel (1894-1940), entre outros.

Elif Batuman, estadunidense de origem turca, esteve no Brasil, em 2014, na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Passou quase despercebida. Compreensível. Ela não integra um daqueles grupelhos que tocaram o talento pelo marketing. Um de seus livros, Os Possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores, foi publicado no Brasil em 2012. Mas também não recebeu a atenção merecida. Em ritmo de narrativa memorialista, onde descreve suas próprias aventuras, desventuras amorosas e literárias – com riqueza de detalhes e bom humor –, esboça algumas das dificuldades que acompanham aqueles que escolheram a literatura como percurso profissional. Para adquirir as credenciais para preencher o cargo de professora ou comprovar a correção de algumas ideias sobre textos e autores, ela teve que superar muitas horas de pesquisa em bibliotecas e arquivos, inúmeras viagens, participação em congressos, e, sobretudo, conviver com pessoas excêntricas – personagens que parecem ter saído das páginas dos romances russos. É uma festa para aqueles que gostam de naufragar na literatura eslava e bater recordes de apinéia.

Estudante de Literatura Comparada, Batuman encontrou na literatura russa uma área de pesquisa repleta de surpresas e prazer. Nos momentos em que escreve sobre seus escritores favoritos (Babel, Tolstói e Tchekhov), o faz com a leveza de quem está conversando com o leitor. São histórias engraçadas, repletas de analogias inesperadas. Em uma ocasião sonhou com o piano de Jane Fairfax (personagem do romance Emma, de Jane Austen). John Watson, o fiel escudeiro de Sherlock Homes, é mencionado várias vezes! Além disso, em circunstâncias inusitadas, cita textos aparentemente desconectados com a literatura russa, mas que, por vias transversas e travessas, fazem parte de um mosaico de afinidades intelectuais, como Gramatologia, de Jacques Derrida, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.

Além disso, não economiza detalhes sobre questões menores, como a ailurofobia (detestar gatos) de Sofia (Sônia) Andreievna, a viúva de Tolstói. Passeando por uma propriedade rural que pertenceu a Tchekhov, anota, com sarcasmo, E a vida ainda continua no jardim de Tchekhov, onde é sempre um bom dia para você se enforcar, e tem alguém em algum lugar tocando violão. Seus comentários sobre Lepióchka, um pão típico da cidade de Samarcanda, na República do Uzbequistão (um dos países que surgiram depois da implosão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), são inacreditavelmente saborosos. Ao mencionar a campanha em favor do aumento da natalidade no Uzbequistão contrapõe a ação governamental com um dos textos satíricos mais famosos da história da literatura: Uma Modesta Proposta, de Jonathan Swift. 

Fluente nas línguas inglesa, turca e russa, durante algum tempo Batuman imaginou como opção profissional aprender outros idiomas. Por proximidade linguística, escolheu o tajique e o uzbeque. Suas descrições da vida em Samarcanda e Tashkent, onde passou um verão tentando aprender um pouco da língua e da poesia daqueles lugares, são, no mínimo, surpreendentes. Também é inesperada (para o leitor) a descoberta de escritores menores como Mir Ali-Shir Navai (1441-1501), Zaxiddirin Muhammad Bobur (1483-1530), Pahlavon Mahmud (1247-1322), G’afur G’ulom (1903-1966) e Abdulla Qahhor (1907-1968).

No plano dos livros mais conhecidos, o texto de Batuman está recheado de citações de Cavalaria Vermelha (Babel), Oblomov (Ivan Gontcharov), Viagem a Arzrum e Evguiéni Oniéguin (Púchkin), Anna Kariénina, A Sonata Kreutzer e Guerra e Paz (Tolstói), Os Demônios (Dostoiévski), Almas Mortas (Gogol). Ao descrever eventos acadêmicos sobre as obras de Babel e Tolstói, recheia o texto com a descrição de situações que exigem, na melhor das hipóteses, vários quilos de estoicismo. 

Nessa caminhada, simultaneamente, há a recuperação de textos completamente desconhecidos com a peça teatral O Cadáver Vivo (Tolstói), o romance A Casa de Vidro (Ivan Lajétchnikov) e o Diário de 1920 (Babel).

Mais do que um depoimento do mundo subterrâneo em que habitam os professores de literatura, Os Possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores, de certa forma, é um ato de fé. Batuman, diante da constatação que Apesar de ser verdade, como Tolstói observou, que cada família infeliz é infeliz à sua maneira e que cada um no planeta Terra, um vale de lágrimas, é certamente merecedor da especificidade de seu próprio sofrimento, mesmo assim gostamos de pensar que a literatura tem o poder de tornar compreensíveis as diferentes espécies de infelicidades. Se ela não é capaz disso, então serve para quê?, encontra a resposta – simples e cristalina – afirmando, Se pudesse recomeçar hoje, escolheria literatura de novo. Se existem respostas no mundo ou no universo, eu ainda acho que é na literatura que vamos encontrá-las.



P.S.: Os Possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores merecia melhor sorte em relação à editoração. Alguns dos problemas perceptíveis poderiam ser resolvidos com um pouco mais de cuidado na tradução e na revisão. Por exemplo, na página 149, a frase (...) com a garrafa de um scotch de malte único não parece ter a mínima coerência. Manter no original o scotch e traduzir literalmente a expressão single malte indica, para dizer o básico, ignorância (ou algum problema alcoólico). A expressão por cento está grafada porcento nas páginas 178 e 191 (duas vezes!). O mesmo acontece com de fazer que se transforma em defazer (p. 281) e com em um, que foi impresso como emum (p. 287). Aceitar como correta a grafia de dispussesse (p. 213) não parece sensato.


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

NEUROMANCER (ou minhas anotações tardias)

Outro dia, enquanto olhava as novidades em uma livraria, descobri uma edição recente de Neuromancer, o célebre romance de ficção científica. Comprei o exemplar. Para ler depois, bem depois, uns dois ou três anos depois. A velha história de sempre. Como cabe aos cínicos, ter cópias dos clássicos (aqueles livros que todo mundo, ou melhor, todas as pessoas que merecem algum crédito, consideram como importantes, e, que, por alguma razão, você nunca leu) equivale a uma parede repleta de troféus. Essa ideia (independente das sutilezas que a envolvem) serve para construir, sem o mínimo vigor/rigor, muitas vigarices. O mundo intelectual (e isso se torna a cada dia mais difícil de negar) não costuma primar pela honestidade. Em outras palavras, poucos são os que conseguem resistir ao golpe de mestre (logo depois de consultar o resumo no Google): Veja, esse eu li, clássico total, gostei muito, grande história.

Um fluxo descontínuo de imagens – o enredo de Neuromancer pode ser sintetizado no número exponencial de frames expostos na interface de algum equipamento contaminado por vários tipos de vírus letais. Mas, felizmente, é um pouco mais. Nas 311 páginas do romance (na edição da Editora Aleph), a história de Henry Dorsett Case – um hacker nômade em um mundo anômalo – está conectada com forças divergentes e fora de controle. Para conseguir o antídoto contra a toxina mortal que foi implantada em seu corpo, ele precisa realizar uma série de trabalhos pouco ortodoxos, os dedos voando sobre o teclado. Utilizando como cenário as contradições que unem o desenvolvimento tecnofetichista e a barbárie pré-moderna (e que anestesiam Ciba City, Night City, Villa Straylight, Istambul, Berna, Berlim, Tóquio, Rio de Janeiro, Zion e Sprawl), o horizonte de eventos se transforma em versão hardcore de um faroeste virtual. Isto é, nos melhores momentos de um vídeo game que enlouqueceu, torna-se difícil distinguir o real e o virtual. A imprecisão entre as duas áreas adensa o conteúdo narrativo – momento em que a alta tecnologia e a decadência moral se amalgamam e institucionalizam o horror.

Em Matrix (o ciberespaço), o pacote de inovações tecnológicas (clones, robôs, dromes, microchips, inteligência artificial) parece interminável, assim como suas aplicações/implicações na existência de cada uma das personagens.Velocidade da luz. Industrialização do frenesi e da alienação. Algoritmos alfanuméricos anunciando o predomínio da estética feérica. Subculturas niilistas se multiplicando em um Estado totalitário, dependente dos conglomerados econômicos. As fronteiras entre o Ocidente e o Oriente se dissolvendo em explosões de urânio, plutônio e policarbono. (...) rostos olhando por entre uma floresta de neon, marinheiros, marginais e putas, sob um céu de prata envenenada...

Neuromancer inaugura a ficção cyberpunk (um subgênero  literário de difícil conceituação) e está aquém de mero exercício aritmético com sinapses fragmentadas: origamis e alimentação orgânica, narcotráfico e violência extrema. A ficção enevoada pelo fulgor de velas coloridas. Adrenalina e dopamina em doses maciças ao alcance do touchscreen. Como uma holografia tridimensional – playgrounds soltos no espaço – projeta o advento dos quatro cavaleiros do Apocalipse, representações literárias da fragilidade humana. Em um mundo onde hackers e crackers se confundem – e confundem o mundo em que se movimentam –, impera a estratégia de sobrevivência contra incontáveis predadores. Nada está a salvo. Nem mesmo a sanidade e o conhecimento – ferramentas indispensáveis para tentar impedir que os erros sejam repetidos.

Em alguns momentos não há maneira de contornar a placa sinalizadora para o advento do anjo da destruição: todos os sistemas imunológicos estão desconectados. A contaminação de corpos, cérebros, lugares e arquivos digitais se torna uma ameaça inexorável. Simultaneamente, a te(n)são sexual, embalada pelo cheiro de suor e ganja, engendrada pelas próteses sensoriais instaladas em homens e mulheres, resulta em desejo, em gozo. Independente do fato de Linda Lee e Molly serem apenas faces do delírio de Henry Dorsett Case, quem pode lhe negar o desfrute do prazer? E então ele estava dentro dela, efetuando a transmissão da velha mensagem. Todos os espaços livres no corpo (literário, político, anatômico) são bancos de dados, são projeções incandescentes – produzidas pelo consumo constante de betafenetilamina (ou o equivalente).

O exibicionismo (o obsceno em seu grau máximo) da vida ordinária, sem sentido, sem propósito, caracteriza a sociedade do espetáculo, a overdose de imagens – onde nada pode ser considerado velado, vedado, vendado ou vetado. Paradoxalmente, tudo se transforma em motivo para o cerceamento das informações. Nada é mais assustador do que perceber que a liberdade –  limitada pelas figuras de retórica, pelo discurso vazio – não passa de alucinação.

A vida de Henry Dorsett Case, segundo Ratz, pode ser resumida em duas frases: Linda para uma tristeza mais doce e a rua para dar o golpe de misericórdia. E o complemento desse drama não envolve compaixão, lastimas, sonhos despedaçados ou quaisquer outros tipos de anestésicos: Você precisava deste mundo construído para você, esta praia, este lugar. Para morrer.

Neuromancer inventa o futuro: caótico, irreal, artificial, fascista, desumano.