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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

OS ANTIQUÁRIOS



Não tenho muita simpatia pelos vampiros. Entre as muitas restrições que faço a esses personagens, sempre destaquei a incapacidade de resolverem os colossais problemas sexuais que os acompanham. A cor macilenta, dormir em caixões fúnebres, a transformação em morcegos, dentes caninos protuberantes, ideais para morder a jugular das vítimas – todas essas características góticas beiram o risível. Igualmente cômico é o arsenal apotropaico (ferramentas capazes de afastar as almas do outro mundo) que é usado para combater os seres das trevas. Eles se tornam vulneráveis diante de água benta, crucifixos, rosários, alho, espelhos, ramos de roseira silvestre, pilriteiro, sementes de mostarda. Por mais estranho que pareça, eles não conseguem pisar em chão sagrado – aumentando o ordenamento judaico-cristão que margeia o mito. Criaturas noturnas, alguns deles não conseguem viver em ambientes onde a luz natural é intensa. Para destruí-los, os inimigos podem escolher entre decapitação, empalhamento, fincar estacas no coração, exorcismo ou salpicar água benta sobre o corpo. Todos esses métodos beiram o caricato. Falta-me instrumental (psicológico, intelectual, estético) para entender o charme do Conde Drácula. Essa percepção não melhorou nas ocasiões em que o vi em filmes, interpretado por atores magníficos como Bela Lugosi e Christopher Lee. Nosferatu me parece patético, pouco plausível, seja na literatura, seja no cinema. Carmilla não convence como representante do feminismo. Com o perdão do trocadilho ruim, falta sangue naqueles dândis afetados que emergem dos livros da Anne Rice. Sobra brutalidade na turma da série televisiva True Blood. Os personagens que povoam parte da saga literária Crepúsculo são chatos e reacionários, porque defendem (dissimuladamente) a eugenia e (abertamente), por hipocrisia religiosa, a abstinência sexual entre os adolescentes. Pouco ou nada posso dizer sobre os personagens criados pelo brasileiro André Vianco – de quem só li um texto ruim, publicado em uma antologia organizada pelo Felipe Pena.

Foi com um pé atrás que iniciei a leitura do romance Os Antiquários, do argentino Pablo de Santis. Essa prevenção se dissipou rapidamente. A fluência da narrativa vai arrastando o leitor para o redemoinho narrativo. A história de Santiago Lebrón, um representante típico dos indivíduos que lutam pela ascensão social e econômica, vai se complicando de tal forma que, depois do primeiro capítulo, não há motivos para parar a leitura. Além disso, a transformação em vampiro somente acontece na página 89, no início da quarta parte.

Santiago, aos vinte anos, abandona a cidade natal, Los Alamos, e vai para Buenos Aires procurar por seu tio Emilio, que trabalha com o conserto de máquinas de escrever. Algum tempo depois, o tio consegue para ele um emprego em um jornal, onde o rapaz começa a escrever as colunas esotéricas. Ao contrário do que poderia sugerir esse acomodamento profissional, as confusões se multiplicam em uma espiral vertiginosa. Personagens impares como Comissário Farias, Crispino, Benjamin Balacco e Luciano Montiel aparecem em cena e introduzem novas complicações à trama. Nenhum deles apresenta a importância afetiva sugerida pelas presenças de Carlos Calisser, dono de um sebo, La Fortaleza, e Luisa Balacco, filha de Benjamin e noiva de Luciano.

Christopher Lee, interpretando Drácula
Apaixonado por Luisa e protegido por Calisser, Santiago começa a se perder nos corredores de um labirinto formado por sociedades secretas e as várias modalidades de colecionismo (estátuas, livros, moedas, bonecas, filmes,...). Esse cenário está repleto de armadilhas e perigos.  Mas, como diz Santiago, (...) eu ainda era jovem. Não estava preparado para a cautela. Depois de escapar de uma sessão de tortura policial (ou o equivalente), Santiago recebe uma transfusão de sangue. Esse procedimento médico salva a sua vida e o condena a uma nova complicação.

Para se afastar do horror, Santiago precisa tomar doses regulares de um elixir especial. Esse líquido substitui a volúpia (carmen) causada pela ingestão de sangue humano. Como a vida social não está conectada com a simplicidade, novas experiências o aguardam. Santiago, transformado em vampiro, mergulha na escuridão do desejo.

Pablo De Santis
A verdadeira beleza nunca nos faz felizes, sempre nos lembra um esplendor perdido antes de nascer, percebe o rapaz, depois de passar uma noite com Luisa. O amor, transfigurado em carne e sangue, serve para condenar à morte todos os outros antiquários – inclusive Calisser. Uma cilada, arquitetada por Benjamin Balacco, extermina a comunidade dos vampiros.

Herdeiro de La Fortaleza, sem a companhia de Luisa, que foi embora, Santiago se torna espectador de noites e dias monótonos. Alguma mudança somente ocorrerá no momento em que o elixir acabar. Então, nada mais lhe restará senão recuperar hábitos ancestrais.  

terça-feira, 26 de agosto de 2014

TRINTA E UMA FRASES E A PSICANÁLISE




Jacques Lacan (1901-1981)
 – Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou. (Jacques Lacan)

– Erros são, no final das contas, fundamentos da verdade. (Carl Gustav Jung)

Somos responsáveis pelo o quê fazemos e recebemos. Mas não somos responsáveis pelo que sentimos. (Wilhelm Reich)

– Todo tratamento psicanalítico é uma tentativa para libertar o amor recalcado. (Sigmund Freud) 

A psicanálise está nos olhos de quem sabe olhar. (Douglas de Freitas)

– A Psicanálise? Uma das mais fascinantes modalidades do gênero policial, em que o detetive procura desvendar um crime que o próprio criminoso ignora. (Mário Quintana) 

Carl Gustav Jung (1875 - 1961)
 – Ser normal é a meta dos fracassados! (Carl Gustav Jung)

– Onde reina o amor, o ego morre. (Sabina Spielrein)
 
Todo amor é recíproco, mesmo quando não é correspondido. (Jacques Lacan)

– Amor sem verdade é paixão. Verdade sem amor é crueldade. (Wilfred Bion)

– O que importa quantos amores você têm, se nenhum deles te dá o universo? (Jacques Lacan)

– Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta. (Carl Gust Jung)

Donald Woods Winnicott (1896 - 1971)
 – É uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado. (Donald Woods Winnicott)

– A mulher brasileira deveria ir menos ao psicanalista e mais ao ginecologista. (Leila Diniz)

– A psicanálise é a maneira mais rápida e objetiva de ensinar as pessoas a odiar o pai, a mãe e os amigos. (Otto Lara Resende)

– A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção. (Jacques Lacan)

Eduque-o como quiser; de qualquer maneira há de educá-lo mal. (Sigmund Freud)

A conduta antissocial é um grito de desespero para o sujeito que reivindica do social aquilo que lhe foi prometido (Donald Woods Winnicott)

– Não esperem, portanto, de meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender a solução. (Jacques Lacan)

– Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco por meio dos sonhos. (Carl Gustav Jung)

Sigmund Freud (1856- 1939)
 – Nunca teria havido ciências humanas nem psicanálise se tivesse sido milagrosamente possível reduzir o homem a comportamentos racionais. (Jean Baudrillard)

– Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana. (Carl Gustav Jung)

– A psicanálise pode ser tudo, menos complacente com nosso profundo desejo de iludirmos a nós mesmos. (Renato Mezan)

– Freud é ótimo, não penso o mesmo dos psicanalistas. (Victor D. Salis)

O sonho é a satisfação de que o desejo se realize. (Sigmund Freud)

– Todos nós nascemos originais e morremos cópias. (Carl Gustav Jung) 

Renato Mezan
 –Tão importante quanto conhecer a doença do homem é conhecer o homem que tem a doença. (William Osler) 

O fato da consciência humana permanecer parcialmente infantil por toda a vida é o âmago da tragédia humana. (Erik Erikson)

O pensamento é o ensaio da ação. (Sigmund Freud)

– O sapato que se ajusta a um homem aperta o outro; não há nada para a vida que funcione em todos os casos. (Carl Gustav Jung)

– Podemos nos defender de um ataque, mas somos indefesos a um elogio. (Sigmund Freud)

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

CARTA ABERTA PARA MARÍLIA KUBOTA


Marília: gostei de vários poemas de teu livro.

Não sei se essa é a forma adequada para iniciar duas ou três observações sobre a tua poesia. Também não sei se sou a pessoa adequada para fazer isso. De qualquer maneira, inquestionavelmente, mereces mais do que isso. Muito mais. Talvez o meu percurso de leitor de teu livro tivesse melhor sorte se estivesse edificado em algum tipo de metáfora complicada, voo sobre o infinito que transcende o pós-humano – independente do que seja isso ou possa vir-a-ser. Como alternativa havia a possibilidade de tecer volumoso e sofisticado comentário técnico – desses que agregam inúmeras referências teóricas com quinhentas dúzias de frases prontas. Nenhum dessas opções conseguiu me entusiasmar.  Perdoe-me, decidi enveredar pelo caminho menos trilhado. Inclusive porque o meu relacionamento com a poesia ocorre em um nível mais selvagem e, portanto, mais carinhoso. Sou da turma dos delírios passionais, outrora denominados tapas e beijos.

Leitor voraz de Roland Barthes e Manuel Bandeira e Walter Benjamin e Susan Sontag (não necessariamente nessa ordem), acredito que os arrepios profundos que surgem do contato da pele com a pele são elementos constitutivos da poesia. Nesse sentido, declaro absoluto repúdio contra a distância (física, amorosa, temporal, literária). Prefiro os engates e os engastes entre os vários metais que os ourives (também chamados de poetas) usam para formar a aliança entre a vida e o afeto.

De qualquer forma, antes que surja algum mal-entendido, urge deixar claro que isso não significa que há possibilidades de confundir sanidade com santidade. Na atualidade, o perigo se concentra nas diferenças que contornam os conceitos de civilização e barbárie. Por isso, e outras coisas, muitas outras, gostei da releitura que você fez do poema de Konstantinos Kaváfis (que li, pela primeira vez, vários anos atrás, na tradução de José Paulo Paes).

Marília, em um mundo que têm dificuldades para decidir se prefere estar ao lado de Bárbara Sukowa ou de Bárbara Cartland, somente a reunião de humor, senso crítico e perspectiva histórica da situação das mulheres poderia ter resultado em um achado polissêmico para as palavras bárbara e barbie. E o mais incrível é que – salvo engano – ninguém havia percebido antes as possibilidades de expansão semântica desses dois vocábulos. Os trocadilhos se sucedem em uma espécie de efeito cascata. Não consigo ler o poema sem exclamar o quanto bárbara (nos dois sentidos!) se mostra a proposta política de colocar as barbies na linha de tiro, seja como objeto de discussão pelo comportamento (superestrela virgem), seja como elemento delator da sociedade de consumo (apertada em corpetes e botas militares).  Em todos os momentos, cabe formular a pergunta retórica: o que será de nós sem as barbies? Difícil superar tamanho desafio. Mesmo quando o poema conduz às questões principais de um discurso, que muitos preferem negar visibilidade, há constante contraste pulsando entre o passado e o presente, entre o futuro e o imaginário. No mundo em que vivemos, a maioria prefere passar pelos obstáculos sem ferir o suculento / músculo transbordante (como você menciona em outro poema). O que quero dizer é que foi uma surpresa agradável, em um mundo que confunde a poesia com o romantismo, onde muita gente vive lendo o bodelér fast-food, ver o “real” (seja lá o que isso for) sendo revelado por versos tão vigorosos.

Marília, teu livro está repleto de poemas em que a busca por uma linguagem criativa reconfigura a paisagem poética. Mesmo que, nessa aventura (alavanca que move o sonho), seja necessário correr atrás da folha que voou. Ou se recusar a ficar perdido / no beco / imóvel. São imagens delicadas, repletas de sutilezas, oscilando entre o Oriente e o Ocidente, entre a palavra e o silêncio, que expressam alguns dos elementos mais significativos de tua poesia. Contraditoriamente, nenhum dos teus leitores consegue ignorar a algaravia que está escondida dentro de alguns dos poemas. Em diferentes momentos, Konstantinos Kaváfis, Elizabeth Bishop, Fernando Pessoa, Bertolt Brecht, Homero, Bashô, e tantos outros, sussurram, gritam, sugerem, discursam, seduzem. Em teus poemas, Marília, as influências não produzem angústia; ao contrário, rompem as pausas, ignoram o medo, celebram a força do verso.

Para terminar, mesmo tendo tantas outras considerações a fazer, quero dizer que concordo com a tua tese de que escrever poesia é demitir a vida todos os dias, inclusive pela possibilidade / de rachar todo o edifício. É uma proposta irrecusável, pois trabalho de poeta / é buscar sentido no escuro / (ele não sabe tudo / a vida, osso duro).

Beijos,

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O LOUCO DE PALESTRA



Segundo alguns depoimentos disponíveis nas redes sociais, Vanessa Bárbara é a escritora com o maior grau de fofura da literatura brasileira. Como não li O Verão do Chibo (narrativa que escreveu em conjunto com Emílio Fraia) ou A Máquina de Goldberg (“graphic novel” compartilhada com Fido Nesti) ou Endrigo, o Escavador de Umbigo (livro infantil, construído a quatro mãos com Andrés Sandoval), faltam-me elementos (emocionais, literários e aleatórios) para fazer esse tipo de afirmativa. Devo acrescentar que não conheço o texto jornalístico O Livro Amarelo do Terminal (Prêmio Jabuti, 2008). Também não tive o prazer de ser leitor do elogiado romance Noites de Alface, embora tenha “passado os olhos” (sem muito entusiasmo) no trecho publicado na Granta nº 9.

Sou quase um ignorante no que diz respeito à literatura produzida por Vanessa Bárbara. Triste constatação. A culpa diminuiu alguns milímetros quando lembrei que costumo encontrar – ocasionalmente – a produção (assinada) da moça na revista Piauí. Também li alguma coisa na Folha de São Paulo. Não é muito. Uma meia dúzia de textos. Talvez um pouco mais. De qualquer maneira, reencontrei alguns desses artigos em O Louco de Palestra e Outras Crônicas Urbanas, um livro alegre, composto por trabalhos escritos para diversos veículos jornalísticos, em diferentes momentos e tempos. Claro, não me foi possível evitar uma ligeira sensação de déjà vu. Isso não atrapalha em nada, pois a proposta literária de Vanessa se renova a cada leitura, permitindo que o leitor esteja em contato com um bocado de nonsense e algumas pitadas de ironia.

Imagino que seja esse o diferencial. Simplicidade e bom humor. E um olhar próprio, capaz de dizer algo que, mesmo parecendo familiar, nenhum outro escritor foi capaz de descrever. Em outras palavras, Vanessa Barbara, ao contar, em poucas linhas, algumas das mais incríveis (belas, inexplicáveis e divertidas) histórias paulistanas, convida o leitor para um passeio lúdico pelo reino da criatividade. É o que parece. Nas crônicas em que ela descreve o espaço urbano, também possibilita visibilidade para o distrito de Mandaqui (Zona Norte de São Paulo). A imagem suburbana que se multiplica nos telejornais foi recortada com tesoura e colada no álbum literário brasileiro. Alguns lápis de cor serviram para dar um tom singelo, distante da violência e do desequilíbrio econômico e social. O desenho final mostra que todos (ou quase todos) os moradores da região são felizes. Evidentemente, cada um é feliz a sua maneira. Que no es lo mismo / pero es igual, como cantou algum menestrel do século passado.

O ponto forte do livro está na tipificação dos indivíduos que encontram o ponto fulcral da Terra fazendo perguntas malucas em palestras. Para quem frequenta esse tipo de ambiente, impossível não soltar intermináveis gargalhadas quando ela descreve o sujeito que pede a palavras, fala durante dez minutos (ou mais), não diz nada de coerente e esquece o que deveria perguntar. Mais do que um clássico das relações confusas que constituem a vida acadêmica, o louco de palestra (des)caracteriza o mundo intelectual e garante um pouco de entretenimento para a plateia.

Avenida Paulista
Em outros momentos, Vanessa Bárbara centraliza suas forças em temas difusos como as dificuldades e facilidades de deslocamento nos ônibus urbanos e interestaduais, nomes de ruas, mochilas, celulares, o cidadão exaltado, reuniões de condomínio, assistir televisão, morar junto, a “queda do sistema”, as manifestações contra a Copa do Mundo e a proposição de transformar o conclave cardinalício em um esplendoroso reality show. São boas abordagens, são momentos de criatividade.

Vanessa Barbara (ao lado de cronistas clássicos como Aldir Blanc, Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo) consegue decodificar parte da maluquice que cerca o universo urbano. Com delicadeza e talento, ao reunir os textos que compõem O Louco de Palestra, entregou ao leitor um livro engraçado, “fofo”, com gosto de quero mais.