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quarta-feira, 5 de março de 2014

LIONEL ASBO


Capa original inglesa e
reproduzida na edição brasileira
Uma lista dos mais significativos psicopatas da literatura mundial deveria incluir Lionel Asbo (protagonista do romance homônimo, escrito pelo inglês Martin Amis). Suas “qualidades” estão refletidas no sobrenome, sigla de Anti-social Behaviour Order e que significa Condição de Comportamento Antissocial. O nome de família é outro, Pepperdine, mas ele preferiu trocar, porque, assim como as mais amargas pimentas (pepper), sente prazer em infundir o medo, em disseminar o terror.

Em 2003, aos vinte e poucos anos, sempre acompanhado de dois pit bulls (Joe e Jeff), era o típico brutamontes – o corpo semelhante a uma laje, a cara feito um bloco inteiriço, a coroa da cabeça com o cabelo raspado bem curto e restolhos de uns pelinhos castanhos. Passou parte substancial de sua vida na cadeia, delitos “menores”: receptação de mercadoria roubada, extorsão com ameaça, tumulto e agressão, danos materiais. Cinco meses em uma ocasião, três meses por outra, infrações e crimes suficientes para engordar a ficha corrida na polícia de qualquer indivíduo. De qualquer forma, em raro momento de consciência crítica, depois de dezenas de atos violentos, ele diz para seu sobrinho Desmond (Des, Desi) Pepperdine: Sabe, Des, às vezes eu tenho medo de mim mesmo. De mim mesmo.

Ele e o sobrinho moram em Diston Town (fictício distrito suburbano de Londres) –  local onde a catástrofe fazia suas visitas com a regularidade de um carteiro. A região abriga parte da escória social inglesa: desempregados, alcoólatras, traficantes, consumidores de drogas, pervertidos sexuais, ladrões, assassinos. Enfim, a população local pode ser resumida em (...) alunas de ensino fundamental grávidas, (...) jovens desdentados, (...) cadeirantes de vinte anos, (...) artríticos de trinta anos, (...) encarquilhados de quarenta, (...) dementes de cinquenta e (...) inexistentes de sessenta anos. Morando em Diston, ninguém sobrevive aos sessenta.

A matriarca da família Peperdine, Grace, começou cedo. Aos 12 anos teve o primeiro dos sete filhos. Apenas Cilla (primogênita, que também engravidou de Desmond aos 12 anos) e Lionel (o caçula) são filhos do mesmo homem. O nome dos outros, todos de pai diferente, presta uma homenagem divertida ao grupo musical The Beatles (John, Paul, George, Ringo, Stuart – nessa ordem de nascimento).

Martin Amis, autor de Campos de Londres, Grana,
A Informação, A Viúva Grávida, Casa de Encontros, entre outros.
Na medida do possível, Desmond procura manter-se afastado dos “negócios” do tio – cobrança de dívidas, pequenos roubos, contrabando. Inteligente, obtêm várias bolsas de estudo – oportunidades raras para a maioria de seus vizinhos. Em um momento de desatenção com as regras de sobrevivência, o rapaz não encontra forças para impedir um incidente bastante desagradável. Envolve-se sexualmente com Grace, a avó. Ele tem 15 anos; ela, 39. O caso não dura muito tempo. Ela o troca por outro menino, ainda mais moço – Rory Nightingale, 14 anos. O que se segue é pavoroso. O Complexo de Édipo dando as cartas em um jogo perverso. Lionel e Desmond ficam marcados pelo horror – até o último dia de suas existências.

Duas gerações de escritores: Martin
e seu pai, Kingsley Amis
Alguns anos depois, ocorre algo absolutamente surpreendente. Lionel, preso por receptação de mercadoria roubada, é informado que ganhou uma fortuna na loteria. Bilhete roubado. Depois que é libertado, confirmando a falta de sensibilidade com as necessidades dos irmãos e do sobrinho, cria expectativas de vai ajudá-los e, com visível deleite, decepciona os que alimentaram esperanças. Coerente com o modo de vida que tinha antes de ficar milionário, não dá um centavo para a família. Prefere gastar o dinheiro jogando em cassinos, contratando prostitutas e frequentando restaurantes caros. Muitas vezes pagou pelos estragos produzidos nas brigas em pubs e boates. Entre as barbaridades que comete, uma bastante significativa foi a destruição do hotel onde estava sendo realizada a festa de casamento de seu melhor amigo, Marlon Welkway. Sob a ameaça de ficar preso, Lionel pagou o estrago, calculado em novecentas mil libras (incluindo lucros cessantes). Com crueldade e nenhuma compaixão, fez questão de cobrar mais tarde esse gesto de “generosidade”: manteve relações sexuais com a esposa do amigo, Gina Drago, na frente do marido – diversas vezes.

Embora decida residir em um hotel (depois de ser expulso, tempestuosamente, de muitos outros), Lionel fez questão de manter o seu quarto no apartamento de Avalon Tower – mesmo não ajudando no pagamento do aluguel. Há vários motivos para esse disparate – que somente deixa de existir em 2013. O principal é relativamente simples: oprimir o sobrinho – que lá está morando com a esposa, Dawn Sheringham. Como deixa escapar, nas várias vezes em que conversa com Desmond, o passado custa caro. Além disso, há outro fator: Lionel se alimenta do medo de suas vítimas.

Lionel, apesar de se comportar de forma tosca, domina com relativa competência alguns elementos da psicologia social. Sabe manter a tensão no limite, induzindo a possibilidade de salvação, mas evitando a possibilidade de libertar a vítima. No momento adequado, um instante antes do colapso geral, introduz em cena um novo elemento. Imediatamente, como compete a quem tem “bom coração”, faz um novo acordo – suavizando momentaneamente a crise.  Quem está envolvido nessa situação, imaginando ter sido salvo, não percebe que, mais uma vez, foi induzido à escravidão.

Quando compra uma mansão, decide chamá-la de Wormwood Scrubs, o mesmo nome da prisão onde esteve preso diversas vezes. Isso não é nenhuma surpresa, pois A prisão não é um lugar tão ruim assim, disse muitas vezes. Na prisão, a gente sabe onde está pisando.

Fábula sobre a maldade e sobre pessoas por quem a gente não podia deixar de ter sentimentos, como sintetiza Dawn, o romance de Martin Amis provoca interessante discussão sobre a possibilidade de algum dinheiro modificar o comportamento dos indivíduos. O horror descrito nas últimas páginas não responde a questão, mas possibilita formular hipóteses plausíveis. De uma forma ou de outra, a infelicidade não é consequência de uma maldição divina – é o estado constante de perversidade que caracteriza o humano.

P.S.: Como se fosse um tributo fraterno, Lionel Asbo é dedicado a Christopher Hitchens (1949-2011).

Os amigos se encontram: Christopher Hitchens e Martin Amis,
em Cape Cod, Massachusetts, EUA, 1985.

TRECHO ESCOLHIDO

 

Des levantou o Mac e ficou de pé com agilidade. “Pois é. Estou mesmo de saída.”

“Ah, é? Aonde você vai? Ver aquela Alektra?

“Não. Encontrar uns amigos.”

“Bom, então faça alguma coisa útil. Roube um carro. Eh, sabe de uma coisa? Seu tio Ringo ganhou na loteria.”

“Puxa, não sabia. Quanto ele ganhou?”

“Doze libras e cinquenta. É um jogo de otários, a loteria, se quer saber a minha opinião. Ah. Eu queria pedir uma coisa para você. quando você sai por aí rodando de noite...”

Des estava parado segurando o Mac com as duas mãos, feito um garçom com uma bandeja. Lionel estava parado com as cervejas Cobra nas duas mãos, feito um caminhoneiro com sua carga.

“Quando você sai por aí, rodando de noite, você leva uma faca?”

“Tio Li! Você me conhece.”

“Pois é, mas devia. Para sua própria segurança. Vai acabar depenado. Ou coisa pior. Não existem mais brigas de socos, não em Diston. Só tem briga de faca. Para matar. Ou com revólveres. Bem”, diminuiu o ritmo, “acho que não vão nem enxergar você no meio da escuridão.”

E Des apenas sorriu com seus dentes brancos e limpos.

“Pegue uma faca na gaveta quando sair. Uma daquelas de cabo preto.”

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