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segunda-feira, 26 de maio de 2014

AMÁLGAMA, DE RUBEM FONSECA



Ficar vários anos sem ler Rubem Fonseca ajuda a afastar a sombra dos contos e romances que ele escreveu no século passado. A distância, entre tantas vantagens, possibilita espaço para construir uma nova perspectiva crítica. Diante de um dos escritores fundamentais da história da literatura brasileira contemporânea, quais são as chances do leitor se decepcionar com o autor dos contos que constituem Lucia McCartney (1967), Feliz Ano Velho (1975) ou O Cobrador (1979), entre tantos outros livros?

A resposta surge sem nenhuma dificuldade: basta ler o último livro, Amálgama, publicado em 2013. O Mestre, assim mesmo, em maiúsculas, aos 88 anos, perdeu a noção de que deve se aposentar – imediatamente. Ninguém o avisou que livros desastrosos colocam em perigo reputações que pareciam estar acima do bem e do mal. Com aspectos de comida requentada, sem gosto, sem tempero, os 34 textos que integram Amálgama encontram no adjetivo ruim uma definição natural. Alguns dos “contos”, se considerarmos que conto é tudo aquilo que chamamos conto, como defendia Mário de Andrade, não passam de esboços mal feitos, desses que parecem ter sido feitos por algum principiante literário. O leitor, comprovando o quanto é triste a decadência, precisa superar o desconforto de ler narrativas mal construídas, patéticas, risíveis.

Em outras palavras, é inadmissível aceitar que textos como Noite, Conto de Amor, Poema da Vida, Na Hora de Morrer, O Espreitador, O Matador de Corretores, Crianças e Velhos, entre outros, levem a assinatura de Rubem Fonseca. Ao abrir o livro e encontrar tanta porcaria, cabe a pergunta: será que ele nunca mais conseguirá alcançar a força de histórias como Feliz Ano Velho, O Cobrador, Passeio Noturno (I e II)?

Ao mesmo tempo, alguns desses arremedos, que levam a griffe Rubem Fonseca, apresentam características distintivas do autor. A obsessão pelas explicações desnecessárias (típicas da arrogância intelectual) e a violência sem sentido se repetem com insuportável constância. O mesmo se pode dizer do gosto duvidoso por lamentos misóginos, mutilações e anomalias físicas. Em todos os personagens falta densidade psicológica. Parecem gravuras recortadas de alguma revista e que foram coladas uma ao lado da outra, compondo um painel sem unidade ou coerência.
   
Alguns dos textos foram agrupados como se fossem poemas. A poesia é outra coisa, muito diferente do empilhar uma frase em cima de outra. Considerar que textos como Sopa de Pedra, Restos, Sentir e Entender, Lembranças e Sem Tesão possuem (mínima) qualidade poética equivale a jogar a literatura brasileira na lata de lixo.

Os poucos “contos” que se salvam (Segredos e Mentiras, Decisão, Best-seller) não valem muito. Ou melhor, parecem exprimir o conceito básico do último texto: foda-se.


TRECHO ESCOLHIDO



Rua do pecado não vendeu nada.”

“Como não vendeu nada.”

“Eu li no jornal que  era um dos mais vendidos.”

“Demos uma grana para sair aquela nota. Mesmo assim não adiantou.”

“Puta merda.”

“O nosso depósito está abarrotado de Ruas do pecado. Você tem que escrever um romance que seja autobiográfico, que conte a história de alguém da sua família com uma doença grave, uma doença que faça a pessoa sofrer muito, algo maligno que não seja mortal. Entendeu? É isso que os leitores querem hoje em dia, uma história que tenha veracidade. Ninguém mais quer ler ficção, a ficção acabou. É isso que vende. Você tem alguém assim na sua família?”

“Sim, tenho.”

“Alguém próximo, uma pessoa muito querida?”

“Sim.”

“Você pode me dizer quem é?”

“Não, não, por enquanto é um segredo.”

“Não tem problema. Então, mãos à obra.”   


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