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segunda-feira, 7 de julho de 2014

MIL ROSAS ROUBADAS



Mil Rosas Roubadas, romance mezzo proustiano, mezzo sei-lá-o-quê, escrito por Silviano Santiago, lembra o ritual de uma cerimônia do adeus particular, embora não consiga afastar a semelhança com um disco riscado, eternamente condenado a repetir trechos de uma música composta em 1952, quando dois adolescentes de 16 anos se encontraram em uma praça de Belo Horizonte. De um lado estava o futuro produtor musical Ezequiel (Zeca) Neves; do outro, o futuro crítico literário Silviano Santiago.

Cada fragmento dessa história deságua na imagem do homem que, alimentando temores e medos, sobreviveu aos desacertos da vida e contemplou com palavras e sons o cadáver do amigo. Na estrada que separa o estímulo mental e o prazer do sexo, a fim de que cada um tomasse o rumo certo para saciar a libido em alvoroço, muitos anos depois, mais de cinquenta, a voz do narrador (persona em que se transveste o professor universitário aposentado), como se mimetizasse o canto das sereias, parece afirmar que o amor, mais do que a satisfação física, é um conjunto de recordações, um momento interrompido no tempo. O ato de confessar (com fluência e fruição) desejos, fracassos, gozos e castrações, se impõe. No entanto, apesar das aparências, ou melhor, ciente de que as aparências não correspondem ao real, há que se estar ciente que o corpo textual se alimenta de pistas falsas. É possível perceber indícios de que o narrador e o personagem estiveram envolvidos em algum tipo de simulacro amoroso. E pouco importa que essas nuvens sejam dispersas por declarações como Jovens e aprendizes de boêmio, gostávamos de sentir a volúpia do adeus como se fôssemos dois amantes – e nunca o fomos. A amizade é uma forma de preencher a ausência, estabelecer cadência afetiva, estreitar os laços que unem (de diversas maneiras) um homem a outro homem.

Silviano Santiago
Mas isso pouco importa. O passado pode ser resumido em um conjunto de eventos pouco fidedignos. Ou naquilo que não aconteceu. Não minto. Posso inventar em causa própria? Posso, diz o narrador. Tanto pode que o faz. E concretiza essa proposta imobilizando os deslocamentos cronológicos, centrando suas reflexões em um único episódio congelado pela memória narrativa. Como ferramenta auxiliar dessa obsessão, o narrador multiplica as citações. Convoca, de dentro da biblioteca romanesca, Samuel Beckett, Andre Gide, Machado de Assis, Vladimir Nabokov, Cesare Pavese. Também há espaço para diversas figuras menores, sombras que identificam a luz. Todos servem de pano de fundo para que a história pessoal dos dois rapazes, separada pelas idiossincrasias, desapareça. Somente o recorte tem importância, somente a recordação se destaca.

Ezequiel Neves
Nada escapa, tudo está escondido. Glórias do barroco. Na visão do narrador, a vida do amigo morto foi constante celebração do exagero, do caricato, do deboche. O curare não está na informação, que nunca é nova, está na maneira como a informação é travestida de perversidade. Quem conheceu o personagem não economizou adjetivos: histriônico, leviano, desajuizado, vampiro de almas, cabeça de vento, porra louca, inconsequente, desmiolado. Em alguns momentos, o narrador se esforça para desmentir esse arcabouço depreciativo. Quer mostrar que a irritabilidade de Zeca, que foi apenas um homem vulnerável e frágil, era uma forma estranha de mostrar resiliência nesse beco sem saída que caracteriza o viver. Quer construir um perfil repleto de qualidades, de senso moral, destacando que ele me dizia que se esperasse dele todas as maldades, menos a traição à vida. Evidentemente, isso não basta. É pouco. Muito pouco. Mosquito que cai na teia é alimento de aranha. A figura pública é mais forte, mais intensa, que a figura de papel. Vida, profissão e finanças. O corpo tripartido, vulnerável e frágil apela para a necessidade do prazer instantâneo, persistente e ininterrupto – o prazer dos paraísos artificiais liberado pelo álcool, pela maconha e pela cocaína – a fim de compensar a experiência de viver temerariamente como sucessivas formas desdobráveis e desdobradas de trabalho. “I never had a problem with drugs, only with cops” – ouço a voz de Keith Richards a apoiá-lo. Além disso, há a maledicência, a incontrolável vontade de esculhambar com o mundo, com todo mundo: Ele escolhe uma palavra ou frase já proferida pelo interlocutor para martiriza-lo. A palavra ou frase selecionada denota a falta de talento ou de sensibilidade de quem fala. O outro não consegue fazer humor e ser engraçado. Zeca deixa a língua solta deslizar pelas silabas alheias e desajeitadas a fim de dar a chibatada definitiva, que desperta o riso do grupo

Diante de um personagem repleto de nuances psicológicas, pois prefere incentivar o folclore em lugar de apostar na simpatia, a retórica se torna uma arma eficiente para fugir de temas desagradáveis. Somos pessoas que sangramos tinta na folha de papel em branco, desconversa o narrador, tentando deslocar o olhar do leitor para a brincadeira que promove: ludicamente mistura os gêneros literários, impedindo de forma deliberada que o leitor descubra onde começa e termina a ficção, quais são as diferenças entre biografia e autobiografia. Em determinado momento, talvez apenas para aumentar a confusão, deixa escapar que Estou a escrever romance, reconheço. Adeus, biografia. Nenhum leitor calejado pelas deslealdades que acompanham narradores em primeira pessoa pode considerar seriamente esse tipo de afirmação. O truque é fornecer uma nova roupagem para o velho clichê: O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.

Simultaneamente, o narrador quer passar despercebido como partícipe da trama. Por isso, prefere anular a si mesmo, pulando para o outro lado do balcão. Sua tarefa se resume em “apenas” contar a história do amigo, em espalhar suas palavras em letra de imprensa. O que “esquece” de contar ao leitor é que, através desse subterfúgio, pode centralizar o relato em si mesmo – sem ter que dar muitas explicações sobre esse proceder. 

Em determinado momento, usando a voz do Outro, daquele que lhe é antagônico e, ao mesmo tempo, complementar, o narrador inscreve no texto uma metáfora inusitada: Tudo é natural porque tudo é artificial. Será que há diferença substantiva entre rosas naturais e rosas feitas em papel crepom? Independentemente da água que alimenta uma e é desnecessária à outra, a flor natural e a artificial não são, nas respectivas jarras, duas e a mesma? E não são ambas belas?

Belas? Sim. Mas, convém não esquecer, são diferentes. Diferentes formas de beleza. Como comprovam as imagens produzidas pelos múltiplos espelhos que refletem exponencialmente a poesia distante (perdida entre as lembranças que insistem em ecoar a todo instante) como a luz de um farol, tremeluzindo no meio da névoa que fornece densidade para a vida.      

A cama do hospital é um retângulo em branco – papel Canson ou lençol – onde o corpo que parece respirar e é humano é só rastro mineral da vida. Depois da morte, o vazio. As lembranças não constituem compensação suficiente para esse fragmento do discurso amoroso. Mesmo assim, o propósito de Mil Rosas Roubadas aparece limpidamente, como se fosse apenas um verso perdido no meio de uma música, Adoro o amor inventado, ou então uma elegia fora de moda: Se ele já não pode ser mais meu biógrafo, proponho ser eu o biógrafo dele.

Um comentário:

  1. que lindo texto...e revela/resvala num lado desconhecido (para mim) de Ezequiel Neves.

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