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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

NORTE E SUL

O romance Norte e Sul, da britânica Elizabeth Gaskel (pseudônimo literário de Elizabeth Cleghorn Stevenson, 1837-1901), publicado em livro originalmente em 1855, e que, salvo engano, somente agora, um século e meio depois, recebeu uma edição brasileira, tem sido classificado por alguns desavisados como semelhante ao enredo de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, com a vantagem de enfocar politicamente o período de implantação da industrialização britânica. Essa tese não possui fundamento. E se revela absurda em diversos momentos. De qualquer maneira, insinuar qualquer semelhança entre Gaskel e Austen ou entre Margaret Hale, protagonista de Norte e Sul, e Elizabeth (Lizzy) Bennet, protagonista de Orgulho e Preconceito, mais do que um ridículo golpe publicitário, significa negar as várias qualidades dos romances de Elizabeth Gaskel.

Ler Norte e Sul exige um considerável esforço. São 744 páginas. A estrutura narrativa está sedimentada na vida e nos sentimentos de Margaret Hale. E a isso deve se acrescer que a mistura de romantismo com o realismo incipiente não obtém resultado muito satisfatório (para os padrões atuais), mas, provavelmente, deve ter entusiasmado os leitores da época em que o romance foi publicado. Com uma formação educacional “superior”, obtida no convívio com a sociedade londrina, Margaret precisa se adaptar ao ambiente hostil e quase selvagem de Milton-North (cidade fictícia, provavelmente inspirada por Manchester).

Elizabeth Cleghorn Stevenson
(1837-1901)
Parte do romance se concentra no choque entre o intelectualismo bucólico (sul) e o capitalismo industrial (norte). Nessa discussão são misturados diversos ingredientes, nem todos compatíveis: ética, moral anglicana, idealismo, condições deploráveis de trabalho, forças sindicais, disparidade socioeconômicas, fome, morte. E, claro, o amor – que, depois de ser negado mil vezes, somente se torna palpável no desfecho da narrativa. 

De acordo com o narrador onisciente e onipresente de Norte e Sul, um romance linear (daqueles que possuem início, meio e fim, nesta ordem), (...) a nuvem nunca surge justo naquela parte do horizonte para a qual estamos olhando. Seja no sentido metafórico, ou não, a “nuvem” – dessas que anunciam tempestades, enxurradas e lamaçais – não é tão assustadora quanto parece. Evidentemente, inúmeros obstáculos precisam ser ultrapassados. Somente há algum alívio quando as complicações se esgotam – e isso demora centenas de páginas, muito mais do que o necessário.

Nesse sentido, cabe lembrar que, no romance inglês clássico, muitas questões ficam nas entrelinhas. Em diversos momentos, o subentendido adquire significado superior às palavras que escorrem pelo papel contando uma história (que parece não ter nenhuma importância – exceto alertar que muitos elementos permanecem escondidos).

 Uma dificuldade significativa do livro está na falta de personagens para interagir com os dramas de Margaret – embora todas as situações-chave sejam resolvidas por encaixe. O excesso de discurso interior torna o texto quase indigesto. Sobram reflexões sobre os acontecimentos, uma espécie de falar para si mesmo, como se estivesse colocando em ordem os pensamentos, como se houvesse interlocutores para tantas dúvidas e lamentações. Se ela pudesse conversar com alguma amiga ou com o pai, provavelmente haveria mais ação dramática e menos blábláblá. Margaret Hale, moradora de Milton-North, se transforma em uma mulher solitária, movida pelo altruísmo, interessada nas dificuldades alheias (ali ela havia encontrado um interesse humano),e absolutamente incapaz de resolver adequadamente as próprias dificuldades. 

Quando a mãe de John Thornton diz que Hale vem de uma região aristocrática onde, se as lendas são verdadeiras, os maridos ricos são considerados troféus, mostra um interessante vaticínio sobre o futuro do filho. Embora esteja errada quanto aos interesses econômicos de Margaret, acerta em relação a um possível envolvimento amoroso entre os dois – algo que a desagrada, pois, como compete à classe média em ascensão, almeja algo “melhor” para seu primogênito. Ou seja, quer o filho se case com uma mulher de linhagem nobre e que, submissa, tenha como preocupações fundamentais cuidar dos (possíveis) filhos e jamais causar embaraços sociais para a família. Margaret não coincide com esse perfil.

John também entende que existem obstáculos – além de tudo, ele foi rejeitado quando fez a primeira proposta! Em determinado momento, fica constrangido: Suas faces arderam ao se lembrar da maneira arrogantecom que ela manifestou sua objeção ao comércio, quando se conheceram, porque, se por um lado, com frequência, ele levava ao engano de fazer que bens que eram inferiores pudessem passar por superiores, por outro lado levava a assumir crédito por uma riqueza e por recursos que não tinha posse. Falta-lhe inteligência emocional para entender os sentimentos de uma mulher que, politicamente,está avant la lettre. Margaret se preocupa com o ser humano e despreza todos aqueles que somente estão interessados com a obtenção do lucro.

Norte e Sul, no contexto realista, alerta o leitor para um fato básico: o dinheiro nunca pode ser considerado suficiente para proporcionar a felicidade. Simultaneamente, movido pelo romantismo, inspira a esperança de que o amor supera todos os bloqueios. Construído como uma discussão política ficcional sobre os primórdios da industrialização na Inglaterra, o romance apresenta um bom painel histórico e um personagem – Margaret – que se recusa a aceitar que homens e mulheres sejam explorados pelo capitalismo predatório. 


TRECHO ESCOLHIDO


"Ele, também, deve ter tomado Frederick por meu amante (ela corou quando essa palavra passou por sua mente). Vejo bem agora. Não se trata apenas de saber que menti, mas ele acredita que outra pessoa me quer, e isso... oh, meu Deus, meu Deus, o que vou fazer? O que é isso que estou dizendo? Por que me importo com o que ele pensa de mim, além da perda do bom conceito, por ter contado a verdade ou não? não sei. Mas me sinto infeliz! Como foi triste este último ano em que passei da infância para a velhice. Não tive sequer juventude ou maturidade; não tive nem as esperanças de uma mulher adulta, pois nunca irei casar-me. E antevejo cuidados e tristezas como se eu já fosse velha, com o mesmo espírito amedrontado. Sinto-me cansada desse contínuo apelo para ser forte. Poderia aguentar-me por causa de papai, pois este é um dever natural e piedoso. Penso que poderia aguentar-me contra... Seja como for, teria a energia para resistir às suspeitas injustas e impertinentes da sra. Thornton. Mas é duro sentir o quanto ele está totalmente equivocado a meu respeito. O que aconteceu para que eu me sinta assim tão mórbida hoje? Só sei que não estou conseguindo evitar. Às vezes me entrego. Mas desta vez não irei entregar-me”, disse ela levantando-se de um salto. “Não irei... Não continuarei a pensar em mim nem em minha própria posição. Não ficarei analisando meus sentimentos. Isso não serviria para nada agora. Algum dia, se eu viver o bastante até ficar velha, irei sentar-me ao lado da lareira e, olhando para as brasas, ver a vida que podia ter vivido."

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