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quinta-feira, 3 de novembro de 2016

ATLAS DE NUVENS

Atlas de Nuvens, de David Mitchell, é uma espécie de terremoto na paisagem do romance contemporâneo – a tradução no Brasil ocorre tardiamente, depois de longos doze anos de defasagem com a publicação original na Inglaterra. Ao chegar à última página do romance, muitos leitores ficam de pernas para o ar, de ponta-cabeça ou qualquer outra figura de linguagem que caracteriza a ausência de chão embaixo dos pés. A audácia de combinar alguns elementos, aparentemente desconexos, como o romance de aventuras, o escapismo científico e as complicações políticas, resulta em uma espécie de sinfonia. Dessas que merecem aplausos. De pé. Durante quinze minutos. Ou mais.

Os seis segmentos ficcionais que estabelecem a espinha dorsal do romance fornecem uma releitura do mito de Teseu e do Minotauro – do ponto de vista intelectual. A narrativa foi elaborada como um continuum de histórias interligadas e que se multiplicam em espiral, gerando outras conexões, outras referências, outras leituras. O proposito dessa estrutura complicada, semelhante a um labirinto, induz à impressão de que será difícil desmanchar o emaranhado. Felizmente, é um efeito falso. Na medida em que o leitor começa a encaixar as peças e a elaborar mentalmente o desenho narrativo, todas as dificuldades desaparecem e são substituídas pelos elementos que conduzem para longe o ininteligível.

Ao utilizar uma estrutura narrativa polimorfa (diário, epistolografia, romance policial, ficção científica, entrevista, linguagem de baixo extrato gramatical) e o entrecruzamento de narradores (em alguns momentos em primeira pessoa; em outros,em terceira pessoa) o texto procura mapear o deslocamento histórico e geográfico de um caderno de anotações. Entre 1850 (quando Adam Ewing, passageiro do Prophetess, um navio de carga, escreve sobre os fatos que presencia) e uma data não identificada no futuro (quando, um pouco antes de sua execução, Sonmi~451, uma estrutura semi-humana, clonada para desempenhar tarefas subalternas, depõe sobre uma tentativa de insurreição), muitos eventos ocorrem, muitas complicações se sucedem. Em alguns momentos, a proposta desse fragmento está conectada com o aviso de que a modernização tecnológica se assemelha com o extermínio da civilização. Nos interstícios temporais  e narrativos surgem em cena personagens pitorescos como Henry Goose, Robert Frobisher, RufusSixsmith, Luisa Rey, Timothy Cavendish, Zachry Bailey, Meronyme, Hae-Joo Im. Eles aparecem, desaparecem, reaparecem na narrativa como se fossem folhas sopradas pelo vento. Ou seja, apesar do romance estar povoado por tragédias, a poesia também está presente. O último pedido de Sonmia~451, por exemplo, é um “achado”, pois consagra o que ela define como o momento em que conheceu a felicidade. A máquina (seja lá o que for Sonmia~451) tem sentimentos e eles são humanos (seja lá o que isso for).

O título do livro se refere a uma peça musical, composta por Robert Frobisher. Em estado de completa penúria financeira, Robert (um indivíduo sem grandes escrúpulos morais) procura salvação como assistente de Vyvyan Ayrs, um compositor famoso e quase cego, que mora no interior da Bélgica. Nos intervalos do trabalho, ele escreve dezenas de cartas para Rufus Sixsmith, seu amante, relatando com riqueza de detalhes os principais acontecimentos que protagoniza. Com exceção do afeto que sente pelo companheiro, na sua escrita não há lugar para bons sentimentos. Precisando viver no exílio intelectual, ele, por conveniência, se torna amante da esposa de Ayrs. Também rouba preciosidades bibliográficas de seu patrão (uma delas é o diário de Adam Ewing). É a vida medíocre que o torna capaz de compor uma obra-prima, para logo depois se suicidar, antes dos 25 anos.

Outro personagem impressionante é Timothy Cavendish, um editor londrino. De trambique em trambique, ele consegue manter os credores à distância. Um dia, contra todas as possibilidades, Timothy ganha na loteria. Metaforicamente, é claro. Um de seus autores se torna um best-seller. No instante em que começa a sobrar algum dinheiro em caixa, ele precisa administrar problemas que não estavam previstos. Talvez o mais significativo seja o encarceramento em uma instituição para pessoas com problemas mentais. A fuga e o desfecho dessa aventura são hilários.

Sem se apegar ao romance policial clássico ou com a distopia que acompanha a ficção cientifica, Atlas de Nuvens consegue se utilizar desses suportes narrativos com maestria, de forma que o enredo principal não sofra algum tipo de declínio. É o contrário. A união de tantas formas narrativas – que muitos consideram como antagônicas – acrescenta qualidade ao texto e permite dizer que Atlas de Nuvens renova a carpintaria narrativa do romance, dando ao gênero literário um novo fôlego. E transforma a estrutura tradicional (começo, meio e fim, nessa ordem) em uma sombra difusa do potencial que pode ser explorado por escritores com imaginação e talento.   

P.S: Há uma versão cinematográfica de Atlas de Nuvens, dirigida pelos irmãos Lilly e Lana Wachowski e por Tom Tykwer (2012) e que no Brasil recebeu o incompreensível título de A Viagem.


TRECHO ESCOLHIDO


 A explosão alcança Luisa Rey e a lança para a frente de modo irresistível, como uma onda do Pacífico. O corredor gira noventa graus – várias vezes – e atinge Luisa nas costelas e na cabeça. Pétalas de dor se abrem diante de seu campo de visão. A alvenaria geme. Pedaços de gesso, cerâmica e vidro chovem, chuviscam, cessam.


Uma paz tensa. O que é isso que eu estou vivendo? Pedidos de socorro brotam do meio da poeira e da fumaça, gritos da rua, alarmes que disparam no ar queimado. A mente de Luiza volta a funcionar. Uma bomba. O guardinha urra e geme. O sangue escorre de seu ouvido, formando um delta no colarinho da camisa. Luisa tenta se afastar, mas sua perna foi arrancada.


Ela abre a boca para gritar, mas o horror passa, sua perna está apenas presa debaixo do chinês desacordado. Luisa livra-se do homem e sai rastejando, dura e doída, mas sem nada de grave, atravessa o saguão do banco, agora transformado num cenário de filme. Chega à porta reforçada, arrancada das dobradiças. Escapei por um triz. Vidro quebrado, cadeiras de pernas para o ar, pedaços de parede, pessoas feridas em estado de choque. Uma fumaça negra e oleosa emana dos dutos, e um sistema de sprinkles entra em ação – Luisa fica encharcada e sufocada, escorrega no chão molhado e tropeça, zonza, encurvada, em outras pessoas.


Uma mão benévola a segura pelo punho. “Se apoia em mim, se apoia em mim, eu ajudo você a sair daqui, pode ter outra explosão.”


Luisa se deixa levar, e lá fora, à luz congestionada do sol, há uma muralha de rostos atentos, sequiosos de horrores. O bombeiro conduz Luisa até o outro lado de uma rua cheia de carros engarrafados, e ela se lembra das imagens que viu no noticiário, em abril, mostrando Saigon em guerra. A fumaça ainda jorra. “Saí daí! Pra trás! Pra lá!” Luisa, a jornalista, está tentando dizer alguma coisa a Luisa, a vítima. Sua boca está cheia de saibro. Alguma coisa urgente. Ela pergunta ao homem que a salvou: “Como foi que você chegou tão depressa na cena da explosão?”


“Tudo bem”, ele insiste, “você sofreu uma concussão.”


Um bombeiro? “Eu já posso me virar sozinha...”


“Não, é mais seguro por aqui...”


A porta de um Chevrolet preto empoeirado se abre.


“Me solta!”


O punho do homem é de ferro. “Entra nesse carro”, ele murmura, “senão te dou um tiro no meio dos cornos.”


Aquela bomba era para mim, e agora...


O sequestrador de Luisa geme e cai para a frente. 

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