Os leitores dos doze romances escritos
por Luiz Alfredo Garcia-Roza nunca se decepcionaram com o delegado Espinosa. Em
tempos grotescos e imorais, onde há confusão de identidade entre policiais e
bandidos, entre inocentes e pecadores, a forma com que Espinosa observa o mundo
parece fora de foco. Mais do que um funcionário público empenhado em desvendar crimes
e mortes, o delegado valoriza a ética, as relações afetivas e o bom senso.
A
Última Mulher, difícil dizer de outra forma, é o episódio final da serie.
Garcia-Roza, internado em um hospital, está em coma faz alguns meses. Sua
esposa, Lívia, costuma atualizar a situação nas redes sociais.
(...) algum dia tudo isso iria acabar e
ele seria apenas uma sombra, um vestígio do que verdadeiramente havia sido: um
bom policial. As palavras que concluem o romance curto (117 páginas) possuem
sabor de despedida. Em uma narrativa em que o Delegado Espinosa atua como
coadjuvante, essa observação soa como uma metáfora melancólica, como que a
dizer que nada é permanente e que é hora de ceder o lugar para outros personagens,
outras histórias, outros escritores.
Rita, a última mulher do título,
protagoniza os episódios mais importantes da trama.
Acostumada com as asperezas da rua, onde
costuma ganhar a vida vendendo o corpo, Rita encontra no cafetão Ratto o alicerce.
Como as histórias de amor não costumam ter finais felizes, logo surge um
obstáculo.
As coisas caminhavam bem, sem maiores conflitos, até o dia que a polícia notou que ele e o Japa prosperavam. Certa noite, sozinho em um beco escuro, sem possibilidade de pedir auxílio, Ratto foi abordado por um policial.
– Proxenetismo, aliciamento e corrupção de menores, formação de quadrilha. Você sabe o que isso significa, seu ratinho de merda? Você vai passar o resto da vida atrás das grades.
Ratto engoliu em seco e perguntou à voz
miúda:
– O que nós podemos fazer para nada
disso acontecer?
– Nós, não. Você. Te espero amanhã,
nessa mesma hora, com cinquenta por cento da grana que tiraram no mês passado. Se
eu perceber que estão tentando me enganar, vai ter sido a última vez.
Toda a estrutura da narrativa está
sintetizada nessa cena. O sócio de Ratto, conhecido como Japa, um advogado de
porta de cadeia, vive bêbado 24 horas por dia. Eles costumam
dividir a féria mensal, depositando uma parte em conta bancária (que é
esvaziada de uma hora para outra, deixando Ratto sem um tostão).
Como Ratto não quer se tornar presa dos
policiais, resolve desaparecer de cena. Aluga um quarto em um hotel vagabundo na
Ladeira dos Tabajaras, tomando o maior cuidado para não chamar a atenção.
Sentindo a falta do parceiro, e temendo
que alguma desgraça tenha acontecido, Rita resolve procurá-lo. Suas incursões
na Lapa e em Copacabana, na Cinelândia e na Avenida Atlântica descrevem um Rio
de Janeiro mítico, onde o submundo e a malandragem reinam. Infelizmente, essa é
uma falsa impressão. No embate entre a transgressão e a corrupção, alguns elos
da corrente costumam apresentar corrosão a todo instante. Isso significa que o
leitor precisa acompanhar, ao longo do texto, várias mortes violentas. O mistério se adensa e fica
difícil determinar o que acontecerá. A curiosidade faz com a leitura não seja interrompida.
Nas
escaramuças entre gato e rato, o desejo de destruição se apresenta como abismo.
Enquanto Ratto se esconde – mas não de Rita ou de Espinosa, Wallace (esse é o
nome do policial) está à espreita, preparando o bote final. E que não demora a
acontecer. Nas histórias em que os marginalizados combatem as instituições, apesar
do resultado favorável em algumas batalhas, o desfecho da guerra se torna
previsível.
Uma onda maior que as demais fez Rita
dar meia-volta e retornar com passos mais rápidos, voltando a cabeça
repetidamente para trás. Em algum momento, trombou com um homem. No lado
esquerdo as ondas passavam molhando a mureta; à direita, apenas a imensa pedra
escura que subia dezenas de metros acima de seu corpo miúdo. Não tinha como
fugir.
– Wallace manda lembranças – o homem
disse.
Rita se desesperou e olhou para todos os lados à procura de Ratto, mas ele não estava lá.
Luiz Alfredo Garcia-Roza |
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