Os óculos, na falta de melhor
expressão, são uma das janelas para ver o mundo. Sou míope desde um tempo que
não lembro mais. E não me reconheço sem essa ferramenta para olhar o longe. Por
isso, e alguns outros motivos, o embaçar das lentes é um dos incômodos que mais
me afeta no dia a dia.
Nas muitas vezes em que os óculos
ficam pendurados na camisa, o horizonte se retrai. Uma enorme massa desfigurada
se apresenta ao longe. Olho para baixo, para evitar tropeçar nos buracos que
enfeiam as ruas da cidade. Caminhar está se tornando o mais perigoso dos
deslocamentos urbanos.
O alcance visual desaparece. Lucina,
personagem do romance Sangue no Olho (Lina Meruane. São Paulo:
Cosac Naify, 2015), vai perdendo a visão aos poucos, uma tortura que vai se
esparramando sem que apresente a mínima esperança de reversão. É uma
perspectiva muito mais angustiante do que a metáfora política de Ensaio
Sobre a Cegueira (José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras,
1995), onde há (pedindo perdão pelo trocadilho ruim) uma luz no fim do túnel.
Jorge Luiz Borges viveu sem enxergar
por 32 anos, mas nunca perdeu o costume de comprar livros. É o que relata o
jovem Alberto Manguel (16 anos), funcionário da Livraria Pygmalion, em Buenos
Aires. Em Com Borges (Belo Horizonte: Âyiné, 2018), Manguel
relata: Um dia, após escolher alguns títulos, ele me convidou para
visitá-lo e ler para ele à noite, caso eu não tivesse mais nada para fazer.
Imagino que esse drama seja similar ao de Glauco Mattoso, que não enxerga faz
algum tempo, mas continua compondo os seus poemas fesceninos com assiduidade.
Para João Cabral de Melo Neto, que
foi perdendo, aos poucos, o contato com imagens e formas, a escuridão somada
com a enxaqueca constante lhe tirou o gosto pela vida. A poesia cerebral,
rigorosa na escolha de cada palavra, de cada verso, somente era possível na
claridade.
Segundo a lenda grega, Homero era cego, recitava versos para poder sobreviver e a poesia era (literalmente) o seu alimento. John Milton teve glaucoma quando estava preso e ficou completamente cego em 1652 – parte de O Paraíso Perdido foi ditado para que amigos e empregados fossem registrando o poema, que foi publicado em 1667.
James Joyce se submeteu a várias
cirurgias oftalmológicas, mas não foi possível atenuar as lesões oculares. Aldous Huxley
foi vítima de uma doença rara aos 17 anos – na vida adulta compensou os danos
com lentes de aumento. Luiz Vaz de Camões perdeu um dos olhos em uma batalha em
África, mas isso não o impediu de produzir uma obra poética espetacular.
Entre os muitos medos que afligem os humanos, a opacidade ocular tem lugar de honra. Não me parece correto viver sem poder ler, sem poder desfrutar do espetáculo das cores. Todos aqueles que estão cientes de que a vida não é justa deveriam frequentar o consultório do oftalmologista com alguma frequência.
O uso de óculos possibilita uma pequena vantagem. A postura social de quem se movimenta pelas cidades exige que as pessoas se cumprimentem, sejam amáveis, finjam civilidade. Eu não sou fã desses procederes – principalmente em alguns casos específicos. Os óculos proporcionam uma desculpa fácil: Desculpe, não te vi.
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