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sexta-feira, 25 de outubro de 2024

OLHAR O MUNDO ATRAVÉS DOS ÓCULOS LITERÁRIOS

 


Os óculos, na falta de melhor expressão, são uma das janelas para ver o mundo. Sou míope desde um tempo que não lembro mais. E não me reconheço sem essa ferramenta para olhar o longe. Por isso, e alguns outros motivos, o embaçar das lentes é um dos incômodos que mais me afeta no dia a dia.

Nas muitas vezes em que os óculos ficam pendurados na camisa, o horizonte se retrai. Uma enorme massa desfigurada se apresenta ao longe. Olho para baixo, para evitar tropeçar nos buracos que enfeiam as ruas da cidade. Caminhar está se tornando o mais perigoso dos deslocamentos urbanos.

O alcance visual desaparece. Lucina, personagem do romance Sangue no Olho (Lina Meruane. São Paulo: Cosac Naify, 2015), vai perdendo a visão aos poucos, uma tortura que vai se esparramando sem que apresente a mínima esperança de reversão. É uma perspectiva muito mais angustiante do que a metáfora política de Ensaio Sobre a Cegueira (José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras, 1995), onde há (pedindo perdão pelo trocadilho ruim) uma luz no fim do túnel.

Jorge Luiz Borges viveu sem enxergar por 32 anos, mas nunca perdeu o costume de comprar livros. É o que relata o jovem Alberto Manguel (16 anos), funcionário da Livraria Pygmalion, em Buenos Aires. Em Com Borges (Belo Horizonte: Âyiné, 2018), Manguel relata: Um dia, após escolher alguns títulos, ele me convidou para visitá-lo e ler para ele à noite, caso eu não tivesse mais nada para fazer. Imagino que esse drama seja similar ao de Glauco Mattoso, que não enxerga faz algum tempo, mas continua compondo os seus poemas fesceninos com assiduidade.

Para João Cabral de Melo Neto, que foi perdendo, aos poucos, o contato com imagens e formas, a escuridão somada com a enxaqueca constante lhe tirou o gosto pela vida. A poesia cerebral, rigorosa na escolha de cada palavra, de cada verso, somente era possível na claridade.

Segundo a lenda grega, Homero era cego, recitava versos para poder sobreviver e a poesia era (literalmente) o seu alimento. John Milton teve glaucoma quando estava preso e ficou completamente cego em 1652 – parte de O Paraíso Perdido foi ditado para que amigos e empregados fossem registrando o poema, que foi publicado em 1667.

James Joyce se submeteu a várias cirurgias oftalmológicas, mas não foi possível atenuar as lesões oculares. Aldous Huxley foi vítima de uma doença rara aos 17 anos – na vida adulta compensou os danos com lentes de aumento. Luiz Vaz de Camões perdeu um dos olhos em uma batalha em África, mas isso não o impediu de produzir uma obra poética espetacular.

Entre os muitos medos que afligem os humanos, a opacidade ocular tem lugar de honra. Não me parece correto viver sem poder ler, sem poder desfrutar do espetáculo das cores. Todos aqueles que estão cientes de que a vida não é justa deveriam frequentar o consultório do oftalmologista com alguma frequência.

O uso de óculos possibilita uma pequena vantagem. A postura social de quem se movimenta pelas cidades exige que as pessoas se cumprimentem, sejam amáveis, finjam civilidade. Eu não sou fã desses procederes – principalmente em alguns casos específicos. Os óculos proporcionam uma desculpa fácil: Desculpe, não te vi.  


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