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quarta-feira, 16 de julho de 2025

ANA CRISTINA CESAR: DEZ POEMAS

 



Lá onde cruzo com a modernidade, e meu pensamento passa como um raio, a pedra no caminho é o time que você tira de campo.

 

casablanca

Te acalma, minha loucura!

Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!

Esse som de serra de afiar as facas não chegará nem perto do meu canteiro de taquicardias...

Essas molas a gemer no quarto ao lado

Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia

O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...

As chaminés espumam pros meus olhos

As hélices do adeus despertam pros meus olhos

Os tamancos e os sinos me acordam depressa na madrugada feita de binóculos de gávea e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano

 



Olho muito tempo o corpo de um poema

até perder de vista o que não seja corpo

e sentir separado dentre os dentes

um filete de sangue

nas gengivas

 

samba-canção

Tantos poemas que perdi.

Tantos que ouvi, de graça,

pelo telefone – tai,

eu fiz tudo pra você gostar,

fui mulher vulgar,

meia-bruxa, meia-fera,

risinho modernista

arranhado na garganta,

malandra, bicha,

bem viada, vândala,

talvez maquiavélica,

e um dia emburrei-me,

vali-me de mesuras

(era uma estratégia),

fiz comércio, avara,

embora um pouco burra,

porque inteligente me punha

logo rubra, ou ao contrário, cara

pálida que desconhece

o próprio cor-de-rosa,

e tantas fiz, talvez

querendo a glória, a outra

cena à luz de spots,

talvez apenas teu carinho,

mas tantas, tantas fiz...

 



Noite de Natal.

Estou bonita que é um desperdício.

Não sinto nada

Não sinto nada, mamãe

Esqueci

Menti de dia

Antigamente eu sabia escrever

Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída

com desvelo técnico.

Freud e eu brigamos muito.

Irene no céu desmente: deixou de

trepar aos 45 anos

Entretanto sou moça

estreando um bico fino que anda feio,

pisa mais que deve,

me leva indesejável pra perto das

botas pretas

pudera

 

“nestas circunstancias o beija-flor vem sempre aos milhares”

Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... ai que enjoo me dá o açúcar do desejo.

 

Inverno europeu

Daqui é mais difícil: país estrangeiro, onde o creme de leite é desconjunturado e a subjetividade se parece com um roubo inicial. Recomendo cautela. Não sou personagem do seu livro e nem que você queira não me recorta no horizonte teórico da década passada. Os militantes sensuais passam a bola: depressão legítima ou charme diante das mulheres inquietas que só elas? Manifesto: segura a bola; eu de conviva não digo nada e indiscretíssima descalço as luvas (no máximo), à direita de quem entra.   

 

mocidade independente

Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as consequências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão? Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão. 

 



Sem você bem que sou lago, montanha.

Penso num homem chamado Herberto.

Me deito a fumar debaixo da janela.

Respiro com vertigem. Rolo no colchão.

E sem bravata, coração, aumento o preço.

 

cabeceira

Intratável.

Não quero mais pôr poemas no papel

nem dar a conhecer minha ternura.

Faço ar de dura,

muito sóbria e dura,

não pergunto

“da sombra daquele beijo

que farei?”

É inútil

ficar à escuta

ou manobrar a lupa

da adivinhação.

Dito isso

o livro de cabeceira cai no chão.

Tua mão que desliza

distraidamente?

sobre a minha mão

 

 


Ana Cristina Cruz Cesar (1952-1983): poeta, crítica literária, tradutora, professora. Fez parte da Geração Mimeógrafo – também chamada de Poesia Marginal (década de 1970). Sua poesia caracteriza-se pelo tom confessional misturado com referências literárias.


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