Em
um tempo distante, antes do mundo ser o que Rodrigo entende como o mundo,
aconteceram muitas coisas estranhas. Esse descompasso pode ser medido por sua
pouca idade (sete, oito anos), pelas relações com os colegas na escola em São
Paulo, pelas visitas aos avós em Porto Alegre, pelas inúmeras descobertas que a
vida vai lhe apresentando a cada instante.
São
muitos os sinais de que algo não está bem. As crises nervosas da mãe, as marcas
no braço da mãe (nove bolinhas espalhadas aleatoriamente do pulso até a
metade do antebraço, pequenos círculos escurecidos e enrugados que mais parecem
as pegadas de um hipopótamo em miniatura), a separação do pai e a mãe (um
dia, muito tempo atrás, numa época tão remota quanto a dos dinossauros, aqueles
dois continentes estiveram unidos), as perguntas recorrentes do pai sobre a
mãe, os namorados da mãe.
Durante
um período das férias, em Porto Alegre, Rodrigo e a mãe saem para comprar
leite. Nesse momento a rotação da Terra é alterada, tudo adquire um outro
andamento. Rodrigo demora um pouco para perceber, dá alguns passos sozinho
até ouvir o estalo atrás de si. Vira e flagra a mãe imóvel, a barra da saia
encharcada de leite, a garrafa quebrada rolando por baixo da gôndola. Ela tem a
boca entreaberta, os braços jogados ao longo do corpo, o olhar fixo para o
fundo do corredor, onde um funcionário etiqueta produtos e um velhinho de boina
escolhe sabão em pó.
Essa
cena, completamente incompreensível para o menino, gera uma mudança nas
relações familiares que aos poucos se torna perceptível e começa a incomodar: quando
voltam para São Paulo, as notas na escola despencam, o isolamento aumenta e
nada parece fazer sentido. Sem conseguir explicar o que está acontecendo
(inclusive porque ficou muito confuso quando viu uma conversa complicada entre
o pai e a mãe), Rodrigo passa a ser outro – diferente daquele que se divertia
com as histórias que o avô contava (inventava) sobre Winnetou.
E
assim, como se estivesse desenhando o percurso com traços pouco nítidos, um
pouco borrados, Rodrigo vai crescendo, vai descobrindo que ultrapassar a
infância e mergulhar na adolescência – essa antecâmara da vida adulta – sempre
será um processo doloroso.
Essa
transição produz algumas compensações. A principal é a que proporciona, onde
era o lugar do isolamento e solidão, a possibilidade de abrir espaço para que ele
adquira voz, e possa expressar todas as suas dúvidas e, ao mesmo tempo, exorcizar
os seus fantasmas e os da mãe.
A
tempestade envolve o carro como um lençol azul. Por um momento nada parece se
mover: o carro roda sem sair do lugar, a mãe dirige sem mexer um músculo; o
próprio Rodrigo parece envolvido por uma casca fria e dura. Seria bom seguir
assim, seria perfeito, estar dentro de algo mas fora do mundo, os dois boiando num
presente puro, uma tarde infinita. Seria perfeito, mas o barulho do limpador o
devolve à realidade, ao metralhar da chuva, aos carros que ultrapassam e
buzinam ao redor, e embora olhe fixamente para a frente a mãe de certa forma
também o observa, suas mãos agarradas ao volante o encaram, e seus braços, e as
marcas em seus braços, e Rodrigo sente que poderia dizer alguma coisa, que esse
seria um ótimo momento para começar a falar.
O
narrador onisciente de O Hipopótamo (Chico Mattoso, Editora Todavia,
2025) conseguiu impor um tom lírico nessa espécie de bildungsroman (romance de
formação), mas sem omitir o quanto é doloroso descobrir que o passado sempre
cobra um tributo ao presente. A história que uniu e separou os pais de Rodrigo
é também uma parte da história do Brasil.
Chico
Mattoso é o autor dos romances Longe de Ramiro (Editora 34, 2007) e Nunca
vai embora (Editora Companhia das Letras, 2011).
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