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terça-feira, 21 de outubro de 2025

SEDA

 


Alguns leitores influenciam outros leitores. Não é frequente, não é raro. Todo comentário ou resenha desperta curiosidade. Ocasionalmente, alguém menciona um livro que não está mais na moda, que perdeu os quinze minutos de fama, que está destinado aos saldos das livrarias ou às estantes dos sebos. Mesmo assim... Mesmo assim, são narrativas que sobrevivem aos interesses descartáveis do capitalismo (que estimula o consumo das novidades e nega qualquer discussão sobre a qualidade). 

Seda, de Alessandro Baricco (Editora Companhia das Letras, 2007. Tradução de Léo Schlafman), é um desses casos. Diversas páginas virtuais de literatura em Espanha, Portugal e Itália não medem esforços para o recomendar constantemente. E fazem isso com tamanha paixão que o contágio se estabelece com facilidade.

Seda conta a história de Hervé Joncour (que mora em Lavilledieu, no sul de França). Ele compra e vende bichos-da-seda (ou melhor, os ovos do inseto). No início, viajava para o Egito e a Síria. Em 1860, uma epidemia de pebrina (doença infecciosa) tornou inviável nessas regiões a criação do animal (como tinha ocorrido antes na Europa). A indústria têxtil então se volta para o Japão – que fica do outro lado do mundo.  

Hervé Joncour precisa atravessar a Europa e a Ásia, em um percurso que dura cerca de seis meses. Pouco se sabe dos perigos que enfrentou nessa aventura (que se repete nas outras viagens). O marco decisivo para que a empreitada adquira sucesso está relacionado com o encontro com uma espécie de senhor feudal japonês: Hara Kei. É ele quem passa a fornecer a matéria-prima, é ele quem acolhe Hervé com um sentimento próximo da amizade – mas que vai se dissolvendo na medida em que Hervé fica fascinado (platonicamente) por uma das companheiras do japonês: Hara Kei estava sentado no chão, com as pernas cruzadas, no canto mais afastado do cômodo. Vestia uma túnica escura, não portava joias. Único sinal visível de seu poder, uma mulher estendida ao lado dele, imóvel, a cabeça apoiada no seu colo, olhos fechados, braços escondidos sob o amplo vestido vermelho que se alargava ao redor, como uma chama, sobre uma esteira cinzenta. Ele passava lentamente uma das mãos nos cabelos dela: parecia acariciar o pelo de um animal precioso, e adormecido.

A mulher se torna objeto do desejo e obsessão – inclusive porque inacessível. A frustração se concretiza toda vez que Hervé volta ao Japão – e a distância entre os corpos vai sendo construída como uma muralha cada vez mais inexpugnável (mas a atração nunca cessa).    

O choque cultural está presente em cada linha dessa narrativa fragmentária (65 capítulos curtos, no máximo duas páginas cada um), sendo que o narrador pouco se detém em detalhar a linha cronológica, preferindo se orientar na construção de imagens que mostram as incontornáveis distâncias entre o Ocidente e o Oriente.

Entre a poesia (expressa na linguagem seca, distante do sentimentalismo) e a prosa de um narrador em terceira pessoa que controla o fluxo narrativo com exatidão, o leitor encontra – na cena final – um Hervé que observa o inexplicável e suave espetáculo que fora a sua vida.    

 

TRECHO ESCOLHIDO

E viu uma árvore, à beira da estrada. E enforcado num galho, o rapazinho que o levara até lá.

Hervé Joncour se aproximou e por algum tempo ficou olhando para ele, como hipnotizado. Então desamarrou a corda, recolheu o corpo do rapazinho, pousou-o no chão e ajoelhou a seu lado. Não conseguia desviar os olhos daquele rosto. Por isso não viu a caravana se pôr a caminho, só ouviu, longínquo, o rumor da procissão que passava por ele, retomando a estrada. Não ergueu o olhar nem mesmo quando ouviu a voz de Hara Kei, a um passo dele, dizendo

– O Japão é um país antigo, sabe? Sua lei é antiga: diz que são doze os crimes pelos quais é lícito condenar um homem à morte. E um deles é levar mensagem de amor da própria patroa.

Hervé Joncour não despregou os olhos do rapazinho assassinado.

– Não tinha mensagem de amor com ele.

– Ele era a mensagem de amor.     


Alessandro Baricco

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