Conta a lenda grega que ninguém acreditava nas profecias formuladas por Cassandra, sacerdotisa de Apolo. São várias as interpretações desse mito, mas contemporaneamente, em um mundo em que as mentiras estabelecem (por algum tempo) o estatuto de verdade, quaisquer avisos sobre os perigos que estão vinculados ao mundo político desaparecem no vento produzido por uma estrutura fluída, líquida, escorregadia.
Eugênio Bucci publicou, no jornal O Estado de São Paulo, uma série de artigos sobre o período 2019-2022. Nesses artigos ele faz diversos alertas, baseado em questões que lhe pareciam evidentes – mas que eram ignoradas por quase todos, principalmente pelo grupo de pessoas que estava apostando no caos. São essas análises que compõem o livro Que não se repita – a quase morte da democracia brasileira (Editora Seja Breve, 2025).
Com argúcia e objetividade, Bucci vai descrevendo a ascensão do irracional. As coisas transcorriam como se seguissem um roteiro de deterioração lento, gradual e inseguro que tinha salvo-conduto para seguir adiante. As ações aparentemente desconjuntadas, um tanto randômicas, tinham uma lógica subterrânea exata. Elas se encadeavam numa obra paulatinamente empenhada em ressuscitar o arbítrio. Avançavam passo a passo, gota a gota, de modo continuado, milimétrico e persistente. Era o golpe em gerúndio.
O processo de erosão estava sendo conduzido, sintomaticamente, pelos “suspeitos de sempre”, mestres no golpismo institucional – qualquer um que conheça um mínimo da história da República pode identificá-los. Mas, houve um erro de estratégia no meio do caminho. Confiaram que poderiam manipular o títere que foi eleito. O que saiu do controle foi uma espécie de golpe dentro do golpe: a presidência da República entregou o poder executivo para o Congresso (emendas parlamentares) e passou a negligenciar todas as políticas públicas que constituem a relação entre o governo e a população brasileira. Basta lembrar o que aconteceu durante a pandemia, em 2021, quando a incompetência estatal se manifestou de forma incontestável.
Mesmo assim, parte da população continuava apoiando esse projeto insensato. Inclusive porque era confortável acreditarem na névoa produzida e reproduzida nas redes sociais. Para algumas pessoas tudo que era publicado na internet, principalmente nas incontáveis páginas políticas conservadoras, adquiria um status de verossimilhança. Os indícios já estavam todos postos. Estavam presentes nos discursos que tentavam erigir um passado de glórias que nunca houve, nas narrativas heroicas que enalteciam a banda mais animalesca da ditadura militar, nas declarações de ódio contra os jornalistas, disseminadas sob o patrocínio do Palácio do Planalto, nas campanhas de moralização violenta dos costumes, que elogiavam o universo masculino como ideal de mando e enalteciam o feminino como selo de obediência. Nessas horas, a corte bolsonarista reproduzia o ambiente da Itália de Mussolini, que instava o homem a ser “pai, marido e soldado”.
Esse ambiente, que incorporou questões religiosas como se fossem itens da prática política, projetou um cenário propício para um coup d’etat – mas que, logo depois das eleições de 2022, se transformou em pantomima, ópera bufa, teatro de terceira classe. Tudo o que parecia sólido se dissolveu no ar. A incompetência também bateu continência na hora em que poderia ter alguma substância.
De qualquer forma, é preciso lembrar uma frase de Bertolt Brecht: a cadela do fascismo está sempre no cio. Uma crise foi superada. Mas, isso não é motivo para ser otimista. Como alerta Bucci, as forças antidemocráticas (...) voltarão pela porta dos fundos, ou mesmo pela porta da frente, e armarão a recidiva. Enquanto isso, não tenhamos dúvida, muita gente continuará repetindo que as instituições estão funcionando normalmente e que você não tem motivo para se preocupar.
Os
textos que constituem Que não se repita são leitura obrigatória para
quem quer entender os acontecimentos recentes da história republicana
brasileira e os métodos utilizados pelas forças reacionárias. O golpismo costuma
hibernar, mas em algum momento há o despertar. O futuro de cada um de nós está
em acreditar (ou não) nos presságios de Cassandra.


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