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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

INSÔNIA


Quase quatro horas da manhã, os olhos abertos para a escuridão que habita o apartamento, precisei perguntar para mim mesmo se algum parafuso não estava fora do lugar. Uma de minhas três avós costumava usar a expressão parafuso fora do lugar para explicar certas besteiras, aquelas que continuamente nos atormentam nas horas mais inesperadas. Suspeito que, em outra encarnação, apesar da restrição ao poder feminino na Grécia, minha avó foi filósofa em Atenas ou em Corinto. Provavelmente brilhou ao lado daqueles monumentos que os ingleses roubaram (alguns séculos depois), para, agora, cobrar ingresso de quem os quiser ver no British Museum.

Perdi o sono. Algumas noites são insuportáveis. Entre os lençóis empapados de suor e a luz do sol que ainda iria demorar algumas horas, faltou leveza, faltou delicadeza. Sobraram longas e nostálgicas agulhadas na carne. Momentos que relampejam durante um ou dois segundos e, depois, como se fossem fogos de artifício, desaparecem nessas camadas de pó que o existir costuma denominar de esquecimento. Sempre tive dificuldades em olhar para trás. Poucas vezes quis ver os escombros que me perseguem. Falta gosto para flertar com as estátuas de sal. Culpa da educação católica, que deixou traumas profundos. Na infância, rezar o terço todos os dias, no final da tarde, nunca foi a minha diversão favorita. O calendário com a estampa do sangrento sagrado coração de Jesus, pregado na parede, a nos olhar com os olhos da paixão, não era fácil de ignorar. O pecado, ah, o pecado!

Quando tinha seis anos de idade, em 1965, meu pai me levou em uma viagem até o litoral de São Paulo. Lembro pouco daquilo tudo. Lembro muito daquele nada. Fomos de caminhão até Curitiba. Não tenho certeza. Saímos de madrugada, o dia não tinha nascido. Logo em seguida ao embarque na boleia do caminhão fui tomado pelo sono incontrolável. Não houve qualquer coisa significativa naquela manhã. No máximo, uma névoa, uma ilusão, um sonho − daqueles que deixam marcas, palpites para jogar no bicho. Trocamos de condução. Várias vezes. Ônibus, trem, carroça, cavalo, centenas de quilômetros sendo engolidos aos poucos, hotéis de beira de estrada, suco de laranja e pão com manteiga no café da manhã, almoços em lugares estranhos, saudades da comida da mãe.

Nossa viagem não foi feita nas condições ideais. E dai? Éramos dois aventureiros, homens sem medo, dispostos a superar obstáculos, o tempo ruim, a natureza indomável. Éramos os mocinhos de um daqueles filmes de faroeste que passavam na matinê do Cine Tamoio, nas tardes de domingo.

Iguape. Bom Jesus de Iguape. Foi lá o nosso destino. Minha mãe, em momento de desespero, alguma doença, não sei bem o quê, fez uma promessa para o santo. Coube ao pai carregar o filho até o santuário. Fomos cumprir com o dever cristão. Missa, visita à sala de ex−votos, caminhar pelas ruas da cidade. Pode parecer estranho, talvez seja lapso de memória, difícil conjugar todos os detalhes, não me lembro de nenhum soldado nas ruas, não me lembro de homens armados zelando pelo futuro da nação. Demorou alguns anos para que eu percebesse que aqueles eram tempos de violência política. O que lembro, com certa riqueza de detalhes, é que ao lado da igreja tinha um filete d’água, onde quis tomar banho. Antes que tivesse tempo de tirar a roupa, a mão pesada do pai deixou marcas no meu braço. Foi com calças arregaçadas, pequena picareta na mão, que arrebentamos alguns pedaços da rocha sagrada. Essas pedrinhas, mergulhadas dentro de garrafas, transformaram a água benta em líquido milagroso, curava diversas doenças, todo mundo queria beber um pouco.

Quando voltamos para casa, quase uma semana depois da partida, contei as novidades para minha mãe e para os meus irmãos. Disse que ele sempre esteve por perto, foi meu guardião o tempo todo. Muitas vezes me mandava ficar quieto, outras vezes me mandava me apressar, o ônibus não iria esperar por um menino que estava sempre atrasado. Dizia não faça isso, não faça aquilo. Olhava, divertindo−se, a minha curiosidade pelo mundo, as tentativas de ler as placas da rua. O cigarro, Continental sem filtro, nos lábios. Um aceso na guimba do outro. Copos de cerveja sendo esvaziados rapidamente. O olhar perdido em miragens que não estavam ao meu alcance.

Nunca mais viajamos juntos. Exceto em pequenos encontros familiares, nunca mais estivemos tão próximos. Seis anos depois dessa viagem, houve outra situação crítica. Minha mãe pegou meus irmãos pela mão e foi embora. Antes, ela perguntou o que eu queria. Disse−lhe que queria ficar. Tinha minhas razões. Ela aceitou deixar para trás a casa, o marido, o cachorro, o gato e o filho mais velho. Ele não percebeu a extensão de minha escolha.

Foi uma noite tumultuada, gritos e acusações sem fim. Na manhã seguinte, nós dois tínhamos os olhos inchados de tanto chorar. Havia pastéis de carne no café da manhã. E silêncio. Histórias familiares são semelhantes a alguma espécie rara de câncer − desses que se espalham rapidamente, causando danos irreversíveis.

Nos últimos dez anos de vida de meu pai, conversamos o mínimo possível. Faltava assunto, sobrava desconforto. Éramos estranhos. Faz mais de vinte anos que ele morreu. Estava sozinho. Cama de hospital. Nem mesmo a morfina diminuiu suas dores.

Não gosto de passear por essa estrada. Sempre há o perigo de não conseguir escapar dos abismos emocionais. 

Para tentar fugir, liguei a televisão. Estava passando um filme antigo, desses que a gente vê várias vezes ao longo do tempo, Nosso Tipo de Mulher (She's the One. Dir. Edward Burns, 1996), um drama leve, historia de família. Dois irmãos e um pai perdidos entre desencontros amorosos, inconsequências urbanas, competição fraterna, mulheres que não usam sutiã e outras ameaças menores.

Como a vida não poupa lições, Nosso Tipo de Mulher parece dizer que a masculinidade não está expressa em um conjunto limitado de ações (namorar, pescar, beber, fumar). Para ser homem, há que avançar um pouco mais, procurar resposta para os tormentos pessoais em outra esfera. Afeto, carinho, coragem – sei lá, romper os muros que construímos ao redor de nós mesmos.

O pai (interpretado por John Mahoney) é o elo de ligação entre os personagens do filme. Queria um pouco daquela amabilidade rústica que ele dedica aos dois filhos.

Junto com a sessão cinematográfica inesperada, as lembranças escorregaram – outra vez – para dentro da minha vida. Foi uma inundação.

3 comentários:

  1. LI SEU TEXTO E AGORA VOU DORMIR, BOA NOITE, RAUL, SONHE COM OS ANJOS DE RILKE.

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    1. Rafael: os anjos de klee são mais benjaminianos. Prefiro-os!

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  2. Raul, encontrei por acaso o seu texto. Impressionante. não consegui parar de ler. Quanta magia nas palavras. Que vontade de consolar aquele menino. Quanto cansaço as custas das crenças dos adultos. Você é um ótimo escritor.

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