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segunda-feira, 16 de junho de 2014

DAS PAREDES, MEU AMOR, OS ESCRAVOS NOS CONTEMPLAM



A literatura alimenta o leitor com pequenos prazeres. Os melhores são inesperados. Desafortunadamente, com o avanço das técnicas narrativas e a falta de imaginação de alguns escritores e editores, essas surpresas se tornaram raras. A pasteurização da linguagem e dos temas literários rebaixou a criatividade narrativa. Histórias que não se enquadram no padrão instituído pelos interesses econômicos e pelo mercado de consumo são descartadas. Ou melhor, não são publicadas.

Felizmente, por razões que fogem ao entendimento, algo sempre (ou quase sempre) escapa da normatização. Das Paredes, Meu Amor, os Escravos nos Contemplam, de Marcelo Ferroni, talvez possa ser considerado como uma espécie de curto-circuito no comportamento bem-educado (e sem identidade) que rege a produção brasileira contemporânea. Não é pouco, não é muito, mas parece ser suficiente para distingui-lo no mar de mesmices, embora não identifique o que realmente importa.

O título não é fácil de lembrar. Parece se referir a alguma citação latina, dessas que não interessam a ninguém, seja porque estão muito distantes no tempo, seja porque remetem a algum tipo de conhecimento que não mais faz parte do cotidiano do leitor. Enfim, o seu valor está em introduzir algum estranhamento no contexto.

Narração em primeira pessoa – com todas as complicações que isso acarreta. Aquele que controla o fluxo narrativo condiciona o texto ao seu ritmo e às questões que quer revelar. 

E isso leva ao primeiro ponto problemático: as primeiras páginas de Das Paredes, Meu Amor, os Escravos nos Contemplam caracterizam um romance morno, pretensamente moderno, sem grandes novidades, há tantos outros similares com esse andamento. A possibilidade de ser apenas uma comédia de costumes, adejando ao redor de corações fragilizados pela ausência de romantismo, não pode ser descartada.

Então, se o leitor considerar seriamente o enredo, repleto de descrições, esparramado pelas páginas do livro como instrumento da postergação narrativa, complicação que torna necessário ler páginas e mais páginas para obter alguma informação relevante, talvez haja algumas dificuldades na leitura. Os ansiosos provavelmente não gastarão o fôlego tentando entender a paixão amorosa que move Humberto Mariconda, o frustrado escritor que cumpre a dupla função de narrador e personagem.

Humberto está apaixonado por mulher de classe econômica vários níveis acima do dele. Como de praxe, a paixão não encontra correspondência. “Grudento”, ele aceita passar um final de semana na mansão da família de Júlia, na esperança de se reaproximar da moça. Peixe fora d’água, descobre que o esporte favorito dos ricos oscila entre brigar por dinheiro e humilhar os pobres – no caso, ele.



O segundo ponto problemático surge no início da segunda parte do texto, quando o leitor percebe, depois de 140 páginas, que está lendo um romance policial. O desaparecimento de Carla, que trabalha como restauradora da mansão centenária, parece não ter força suficiente para impulsionar o imobilismo geral. Somente quando o patriarca da família, Ricardo Damasceno, é assassinado em uma sala fechada, vedada aos outros hóspedes da mansão, é que surge alguma movimentação dramática. Qualquer lembrança com um daqueles enigmas literários que fazem as delícias dos admiradores de Agatha Christie não constitui mera coincidência.

A longa noite sem luz, os diálogos repletos de ameaças veladas, os cadáveres – essa é a melhor parte do romance. A ação narrativa se torna mais lúdica, mais próxima do entretenimento. Provavelmente, uma das causas desse relaxamento na tensão está na desconstrução dos gêneros literários, na permeabilidade das dinâmicas que instituem a trama narrativa. O inevitável desfecho e suas trapalhadas surge com o clarear do dia, com o fim do delírio e com o despertar da consciência – tudo volta ao normal, inclusive a carência afetiva de Humberto.

P.S: Particularmente irritante é a maneira com que o narrador nomeia dois dos personagens. Em alguns trechos Julia se transforma em “pequena” e Carlos é o “garoto”. Bobagem.

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