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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

DIAS PERFEITOS




Os romances policiais estão sofrendo interessantes transformações. Em outros tempos, os enredos relacionavam a ação narrativa com habilidade dedutiva de Sherlock Homes e Nero Wolfe. Depois de analisar a situação, o detetive puxava um fio solto e fornecia visibilidade ao que estava aparentemente escondido. Simples e bonito. Esta proposta literária rapidamente saiu de moda. O dinamismo, refletindo a industrialização da sociedade capitalista, criou um ambiente social onde a delicadeza humana foi substituída pela violência física. A barbárie se tornou sinônimo de glamour. Por exemplo, Sam Spade transitando entre os lábios de alguma loura de farmácia e trocas de tiros no meio da noite. Nesse esquema, o detetive, digo, o anti-herói, misto de cafajeste e policial, queria, em princípio, resolver a tarefa que lhe era designada ou contratada. Entre encontrar um objeto roubado ou descobrir evidências de alguma traição conjugal, a situação se complicava, surgiam novos elementos.  Mas, isso era – quase sempre – um recurso ficcional para justificar novas agressões, para outros cadáveres empilhados em um beco escuro.

O romance policial moderno trabalha com outra lógica. O lirismo se transformou em sua vítima favorita. O maniqueísmo, que divide o mundo entre mocinhos e bandidos, desapareceu. Ninguém é de confiança. A segurança social urbana foi substituída pelo medo. Todos precisam conviver com os estragos produzidos pela violência psicológica. As entranhas do ser humano foram expostas em outdoors. Entraram em cena as diversas patologias mentais e os desvios de comportamento, os serial killers e os psicopatas. A nova configuração da tragédia contemporânea está expressa na curva dramática, que oscila entre a tranquilidade aparente e o medo constante. Tudo se tornou difuso, líquido, brilho sem conteúdo.

Dias Perfeitos, romance policial de Raphael Montes, conta uma história de obsessão. Teodoro (Téo) Avelar Guimarães, estudante de medicina, vegetariano, órfão de pai, morando com a mãe paraplégica, vida social e sexual zero, não passa de um catálogo ambulante de clichês. Parece personagem recortado de algum manual básico de psicologia. Tanto que a sua demonstração mais significativa de afeto é com Gertrudes, o cadáver residente da sala de anatomia da faculdade. Seus problemas emocionais são potencializados quando conhece Clarice Manhães em um churrasco – que sua mãe o obrigou a comparecer. A menina está escrevendo o roteiro de um road movie chamado Dias Perfeitos.

A história do indivíduo que sequestra o objeto amoroso e o sujeita – pedagogicamente – a uma série de torturas físicas e psicológicas está dissecada nos romances O Colecionador, de John Flowles, e Angústia, de Stephen King, clássicos do gênero. Qualquer elemento que for acrescentado ao tema, seja na vilania que fornece cor e sabor aos rituais de sadismo, seja nas variações que constituem a Stockholmssyndromet (Síndrome de Estocolmo, que é o sentimento de amor ou amizade que a vítima sente por seu agressor), em nada modifica o básico: o horror anda de mãos dadas com a perversão.

Em Dias Perfeitos, Téo quebra todas as regras de civilidade que caracterizam o viver em sociedade. Obcecado por Clarice, submete-a ao cárcere privado, sedação com anestésico, tortura psicológica e estupro, entre outras demonstrações de carinho e afeto. O nível patológico que caracteriza a sua relação com a mulher que diz amar não tem limites. Os delírios persecutórios o empurram na direção do inominável. O assassinato de um ex-namorado de Clarice, que é esquartejado em reprise das aulas de anatomia, não passa de detalhe em um conjunto de horrores.

O enredo de Dias Perfeitos é conduzido por um narrador onisciente, parcial, e sem muita consistência. Nos momentos em que a ação narrativa não consegue se manter com os truques baratos do diálogo incessante e das cenas minimalistas, o texto descamba para o piegas, como comprova o desfecho, que é arrastado, inverossímil, quase uma reprodução sem importância de qualquer narrativa secundária, publicada no século XVIII.

Talvez o pior defeito de Dias Perfeitos seja a visível preocupação com a metalinguagem cinematográfica e com a possibilidade paranoica de estar integrando algum reality show, o mais significativo espelho do egoísmo moderno, Com frequência, tinha a sensação de que vivia num filme em que pessoas do outro lado do mundo o acompanhavam através de câmeras ligadas vinte e quatro horas por dia. Em alguns momentos, percebe-se a tentativa canhestra do narrador em dialogar com o enredo de filmes como O Colecionador (The Collector. Dir. William Wyler, 1965), Louca Obsessão (Misery. Dir. Rob Rainer, 1990), Ata-me! (¡Atame!, Dir. Pedro Almodóvar, 1990) e A Pele que Habito (La Piel que Habito, Dir. Pedro Almodóvar, 2011) – baseado em Mygale, romance de Thierry Jonquet. Como se não bastasse tanta variação do mesmo tema, um leitor atento poderá encontrar alguns vestígios de 3096 Dias de Cativeiro (3096 Tage. Dir. Sherry Horman, 2013) e de um dos grandes clássicos das relações amorosas pouco convencionais, Atração Fatal (Fatal Atraction. Dir. Adrian Lyne, 1987). 

Traduzindo em miúdos, apesar do verniz contemporâneo, Dias Perfeitos não consegue empolgar. Remake não passa de remake.

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