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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

TEÇO-ME

Em Ithaca, Penélope aguarda pelo retorno de Ulisses. São mais de vinte anos de espera. Durante o dia, tece uma colcha. Durante a noite, desmancha-a. E, nesse abrir e fechar das portas do tempo, encena o tumulto emocional, posterga os acontecimentos, foge do horror.

Os versos e os poemas de Teço-me, livro de Arriete Vilela, flertam com aventuras épicas e figuras mitológicas – construções oníricas em que o amor e o sexo, a alegria e a solidão, o céu e o inferno são reinventados. Utilizando-se da palavra como uma máquina bélica empregada para derrubar muralhas e arrombar portas, Arriete não poupa esforços para multiplicar o poder mágico do discurso poético. Nada a detém. Quer transformar a matéria humana em enlevo. A palavra me capacita para o que devo ser: / flor de cacto em ponta de lança.  

Ciente de que não é apenas o empilhamento de versos que caracteriza a poesia, Arriete prossegue na direção do êxtase. Sobrevivente da luta inglória que travou contra o exagero sentimental – momento em que é possível perceber a impossibilidade de isolar os surtos de emoção da objetividade proposta pela razão –, soube separar os fios da linguagem e, ponto a ponto, com cuidado e atenção, teceu o poema.  Gravadas na pele nua das páginas do livro, as palavras exprimem contenção, clareza e criatividade. Avançam até o zênite e descobrem que Enquanto tardas, / reteço-me, / e, nas brechas do bordado, / o destino vai compondo os meus dias, / de modo ora gentil, / ora quase isso.    

Quando não se escora no feitiço que emana dos substantivos, verbos e adjetivos, o poema desafina, desaba, definha. Para tentar impedir essa erosão, Arriete elabora uma estratégia (ou um ardil) que está aquém dos portões gradeados, / sem acesso aos pretextos / da ficção. O poder de fabular (confabular) com as imagens que se perderam nas voragens humanas se expande nas vertigens originárias da poética e tenta exprimir  o relato da ausência de apenas um homem solitário / banido de si mesmo ou de uma mulher que tudo faz para que Deus fique sabendo de mim, / todo dia, / verso a verso.  

No espaço geográfico das sensibilidades propostas por Teço-me, os interstícios são preenchidos com entusiasmo, deslumbramento, excitação, pathos e hybris. É na tecelagem do poema, imagem simbólica daquele (homem, tema, desassossego) que um dia foi embora e deixou para trás um rastro de inconstâncias, que surge o retecer da dor, o desenlace das felicidades artificiais. Diante das âncoras prisioneiras / dos rochedos, as tormentas no peito angustiado, / aprisionado pela saudade, a inquietação não se transforma em calmaria. Nada é preciso ou precioso formas com que multiplica as agonias.

Acho que a poesia estava entranhada / na minha pele, / sempre à tua disposição, declara Arriete, evocando o canto das sereias. Entre ser amarrado ao mastro do navio e o mergulho nas profundezas do mar, ao leitor (Ulisses a-pós-a-moderna-idade) não é fornecida a mínima possibilidade de fuga. O poema grego, alagoano, brasileiro é tessitura, teia, rede, tecido, colcha, concha, imensidão.  


Poema 39


Enquanto tardas,

teço-me.

 

Com finíssimos fios

de aço, inscrevo-me na linguagem que sou

e busco a sintonia dos fossos

– inconscientes? –

nas entrelinhas. 

 

Enquanto tardas,

desteço-me

– e é quando os açoites da tua palavra ferina

esporeiam o dorso da minha poesia.

 

Enquanto tardas,

reteço-me,

e, nas brechas do bordado,

o destino vai compondo os meus dias,

de modo ora gentil,

ora quase isso.

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