Alguns livros estão acima do elogio. E
pouco importa a quantidade e a qualidade dos adjetivos utilizados. Qualquer
palavra que for utilizada para descrevê-los sempre parecerá insuficiente. O
romance (na falta de um conceito melhor) O Buda no Sótão, de Julie Otsuka,
ilustra essa situação.
No inicio do século XX, milhares de trabalhadores
japoneses cruzaram o Oceano Pacífico para “ganhar a vida” na Costa Oeste de
Estados Unidos. Algum tempo depois, outros navios repetiram essa mesma rota transportando
as futuras esposas desses homens. Infelizmente – e a aventura humana está
repleta desse tipo de situações –, qualquer história que gravite sobre
tentativas de uma classe econômica desfavorecida conquistar a liberdade
financeira resulta na descrição de um grande desastre. Inclusive porque, neste
caso, as condições de trabalho (para os homens, para as mulheres) eram de
semiescravidão. Além disso, as diferenças raciais, sociais, econômicas e
culturais, entre os estadunidenses e os nipônicos, com o passar do tempo,
mostraram-se intransponíveis. Por mais que os imigrantes se esforçassem, dobrando
as jornadas de trabalho na construção de ferrovias, na colheita de frutas, nos
trabalhos domésticos, não houve como superar a posição de inferioridade. De um
lado estão os proprietários dos meios de produção; do outro, os trabalhadores.
São dois mundos muito diferentes. E que se tornam ainda mais conflitantes por
ocasião da Segunda Guerra Mundial, quando os imigrantes japoneses (sob o
pretexto de defesa da segurança nacional) foram desalojados de suas residências
e confinados em campos de concentração. A violência, causada pela soma de
histeria, preconceito e demagogia pode ser resumida em ironia e desassossego: (...)
porque elas sabiam que, por mais que tentassem, jamais conseguiriam se
encaixar. Somos só um bando de “cabeças de Buda”.
Alternando um narrador em terceira
pessoa (isento de sentimentos) com uma voz frágil em primeira pessoa (que somente
aparece em situações especiais), o livro de Julie Otsuka, utilizando-se da
enumeração, expõe um catálogo de atrocidades. Seja nas Japantowns (J-towns),
seja no interior dos condados, nas fazendas, o narrador se concentra no olhar feminino,
impregnado de sensibilidade e coragem. A vida das mulheres japonesas, correndo
em paralelo com a dos homens, descreve uma grande tragédia.
O título do livro foi retirado de um
trecho quase imperceptível e que se encontra no capítulo sobre a partida dos
japoneses para um lugar não identificado: Haruko partiu deixando uma pequena
imagem de latão de um Buda risonho lá no alto, em um canto do sótão, onde ele
ri até hoje.
O Buda no Sótão, centrado no conceito
documental (a autora precisou consultar uma interminável lista de textos sobre
o tema), traduz, de forma intensa e criativa, um dos mais cruéis capítulos da
história estadunidense – e que, em nome da “democracia”, foi silenciado.
Somente em 1988, o governo reconheceu publicamente ter agido de forma inadequada. O Ato de Liberdades Civis, assinado por Ronald
Reagan, garantiu uma indenização para os sobreviventes e a abertura de um fundo
de educação para tentar evitar que esse tipo de incidente volte a
acontecer.
P.S: De forma mais romântica, menos
dramática, e em outro contexto, a imigração japonesa para Estados Unidos está retratada em Neve sobre
os Cedros, de David Guterson. Há uma versão cinematográfica (Dir. Scott Hicks, 1999), com Max von Sydow e Ethan Hawke no elenco.
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