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terça-feira, 5 de abril de 2016

GATO


"A vida é transitória. Até as sete vidas dos gatos têm prazo de validade." Foi isso, na falta de argumento melhor, o que disse ao Mítia – quando ele me comunicou que Gato deixou de existir. Nenhuma surpresa. Gato estava doente. E o veterinário havia sugerido o fim do sofrimento algum tempo antes. Apesar de tudo, como compete aos gatos que professam o estoicismo, Gato resistiu bravamente aos seus últimos dias.

Gato entrou nas nossas vidas de forma ardilosa. Escrevo “nossas vidas” ciente de que existe uma imprecisão terminológica nessa frase, já faz bastante tempo que não pertenço à família. De qualquer forma, o que gostaria de esclarecer é que também fui afetado pela existência do gato.

Mítia foi passar alguns dias no litoral, durante as férias. Não lembro exatamente da data. Faz, provavelmente, uns dez ou doze anos. O gato vivia por lá, sem domicílio regular. Comia quando havia o que comer, dormia onde era possível. Era, na falta de uma expressão melhor, um sem-teto. Por razões que a razão desconhece, em determinado momento, o animal resolveu adotar o turista. Além disso, permitiu que ele fosse contaminado pelo autoengano. Ao imaginar que estava perfilhando um gato, Mítia ignorou que era o felino que detinha o poder sobre ele. Uma nova versão da velha história de “vender gato por lebre”, se é que posso usar aqui um péssimo trocadilho.

O fato concreto é que, quando as férias terminaram, o bichano subiu a serra. Imediatamente tomou posse do novo lar. Esse gesto de bondade com os humanos lhe custou caro. Foi castrado. Protestei contra, mas – como sempre – fui voto vencido. Aliás, nem eu nem o gato tínhamos direito ao voto.

Pois é, comida e proteção equivalem à escravidão. Não sei se Gato chegou a essa conclusão, no momento que perdeu a virilidade. Eu, testemunha ocular da história, fiquei triste com o desfecho, imaginando que ele, o gato, se transformaria em um bibelô gordo, desses que ornamentam a sala de visitas dos burgueses. Claro que estava enganado. Gato tinha personalidade. Sempre se recusou a ser domesticado. Extremamente curioso, corria para lá e para cá toda vez que havia algum movimento suspeito.  Adorava infernizar a vida de Tutu (a outra gata da casa). Cometia pequenos e grandes delitos. Transformava os humanos em brincadeira de “gato e sapato”. A verdade é que ele tinha uma péssima personalidade. Somente fazia o que queria. E quando queria.

A escolha do nome de Gato foi outra epopeia. Creio que aqueles que tiveram o prazer de conviver com ele testaram várias alternativas e nenhuma se mostrou satisfatória. Com a altivez de um deus egípcio, Gato fazia questão de descartar as mais óbvias possibilidades. Também recusou algumas tentativas exóticas. Não respondia aos chamados, mostrava cara feia, miava com intensidade. Sem escolhas, o seu dono (dono?) concordou em chamá-lo Gato (assim, com G maiúsculo).

Não é desses fatos corriqueiros que quero lembrar. A imagem que vou guardar é outra. Quando eu ia até o apartamento em que Mítia morava, Gato costumava se aproximar de mansinho (aquela velha manha de quem não quer nada e fica feliz quando leva tudo), e subia no meu colo. Se eu não manifestasse contrariedade, ele subia mais um pouco, deitava no meu peito, fechava os olhos e ficava em doce ronronar até que um de nós dois se cansasse e modificasse a situação.

Pensando bem, não era somente comigo. Muitas vezes o vi fazer isso com Mítia. Ao transmitir o calor de seu corpo para algum outro corpo, ele estava passando uma mensagem de carinho. Era uma forma de interação social? Não sei. Talvez fosse uma concessão para aqueles que o protegiam. Gato era um enigma. E isso contribuía para que olhássemos para ele com ternura. Com a ternura que merecem os rebeldes.

Apesar de ser um animal independente, egocêntrico e próximo do anarquismo, Gato era simpático – desde que isso lhe fosse conveniente. Sabia conquistar atenção e afeto na mesma proporção com que declarava aversão com aqueles que não se submetiam aos seus caprichos. E não foi para poucos que mostrou alguma hostilidade. 

Agora, que não o temos mais entre nós, percebo que esta elegia fúnebre é uma forma de dizer que Gato deixou uma imensa saudade, dessas que não tem conserto.

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