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segunda-feira, 4 de abril de 2016

ASCO - Thomas Bernhard em San Salvador

Ninguém resiste aos mecanismos de sedução da iconoclastia. A vontade de jogar farofa no ventilador costuma ser uma receita fácil para quem alimenta desejos de romper com o establishment. Isso fica evidente em Asco, novela escrita por Horacio Castelllanos Moya (nascido em Honduras, mas cidadão de El Salvador), onde quase todos os pecados de um pequeno país centro-americano são revelados através de um discurso ressentido.

O subtítulo da narrativa – Thomas Bernhard em San Salvador – indica as origens literárias de Asco. Também aponta para o uso de uma formula pronta (parágrafo monolítico, variações espaçadas e repetitivas do mesmo tema, doses maciças de ressentimento, descontrole emocional), onde Horacio Castellanos Moya preencheu os espaços em branco e produziu um texto ad hoc.

Em Asco, Edgardo Vega, que mora no Canadá, regressa a El Salvador para assistir ao enterro da mãe. Hospeda-se na casa do irmão, enquanto aguarda que os tramites burocráticos referentes à herança se completem.

Depois de quinze dias em San Salvador, Edgardo convida para uma conversa o amigo de infância, Moya (que exerce, no texto, as funções de narratário. Ou seja, surge no texto apenas para complementar a ação narrativa. Não possui voz e a sua presença não se materializa no conjunto de fatos que estão sendo narrados. Não deve ser confundido com o autor). Eles tomam uísque e ouvem o Concerto em Si Bemol para Piano e Orquestra, de Tchaikovsky.

As 91 páginas do texto, composto por um único parágrafo, organizam uma exposição de motivos inflamada por litros de intolerância e falta de bom senso. Embora, o que está mesmo em falta é outra coisa: boa educação. O verborrágico Edgardo Vega não possui um mínimo de urbanidade ou de consciência social. Sua metralhadora giratória não perdoa nada e ninguém.O ódio alimenta o discurso: (...) estou aqui depois de dezoito anos, voltei apenas para constatar que fiz muito bem em ir embora, que o melhor que pode ter acontecido comigo foi sair desta miséria, que este país é uma alucinação, Moya, só existe pelos seus crimes, por isso agi de forma correta ao partir, ao mudar de nacionalidade, em não querer mais saber mais nada do país, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo, me disse Vega.

Sem dar chances aos vínculos afetivos, Edgardo Vega despeja os piores insultos à cerveja produzida no país, à comida típica de El Salvador (“pupusas”), às equipes de futebol, aos políticos, aos militares, ao irmão, à cunhada, à empregada do irmão e da cunhada, aos sobrinhos, aos amigos do irmão. Como se não bastasse, fala mal dos monumentos, do transporte público, do colégio onde estudou (e, por extensão, dos irmãos maristas, que dirigem a instituição educacional). Nada escapa das camadas de fel que vai espalhando pelas páginas da narrativa. Se essa situação não fosse ridícula, proporcionando alguns momentos bastante engraçados, provavelmente seria insuportável – e obrigaria a interrupção da leitura. Ninguém tem paciência com aqueles que escolhem o pessimismo extremado como razão de vida.

Nas últimas páginas, Edgardo Vega revela o único elemento capaz de lhe causar algum tipo de afeição sincera: o passaporte canadense, documento que transforma em uma espécie de rota de fuga do ambiente que detesta e o oprime.

P.S.: Seguindo pela mesma estrada, mas rejeitando o modelo instituído por Thomas Bernhard, dois outros escritores latino-americanos merecem atenção – quando o tema é o desprezo pelo país que nasceram: o brasileiro Diogo Mainardi (principalmente em Contra o Brasil) e o colombiano Fernando Vallejo (A Virgem dos Sicários e O Despenhadeiro).


TRECHO ESCOLHIDO


Já no ápice do meu delírio, Moya, imaginava o pior: que o meu passaporte canadense tinha caído no bar ou na boate e que eu teria problemas enormes para conseguir um novo documento, me disse Vega. Eu suava, as minhas mãos tremiam, a história me deixava prestes a arrebentar. Gritei a meu irmão que o meu passaporte canadense não estava dentro do carro, deveríamos voltar imediatamente aos dois antros pelos quais passamos. Meu irmão me falou que ele procuraria, eu precisava me acalmar, não havia motivos para me preocupar, logo encontraríamos o meu documento. Um imbecil desses, Moya, pedindo que me acalmasse. Eu me afastei para que ele procurasse na parte de frente do carro, me disse Vega. Estava prestes a estourar, meus nervos não aguentavam mais, prestes a urrar e bater em alguém porque tinha perdido o passaporte canadense e a culpa era do meu irmão e desse crioulo, por ter aceitado o convite desses seres sórdidos para sair à noite e comer alguém, estava prestes a estourar quando meu irmão deu um grito de alegria: “Encontrei.” E lá estava, Moya, a mão de meu irmão me alcançando o passaporte canadense, o sorriso idiota do meu irmão por trás da mão com o passaporte canadense, que tinha caído sem que eu percebesse quando entrei no carro para fugir da asfixiante discoteca onde o crioulo dono de ferragem havia me deixado tonto com sua verborragia ao relatar suas aventuras sexuais extraordinárias, me disse Vega. Agarrei o passaporte de sua mão e, sem falar uma palavra, sem nem olhar para eles, corri até um taxi estacionado alguns metros adiante. Saí dali como se estivesse sendo perseguido pelo diabo, Moya. E não consegui me acalmar antes de entrar no quarto da casa de meu irmão e entrar debaixo dos lençóis com a certeza de que meu passaporte canadense estava seguro sob o travesseiro, me disse Vega. O pior susto de minha vida, Moya. Inclusive, durante o trajeto entre o bordel e a casa de meu irmão no taxi, fiquei folheando meu passaporte canadense, constatando que aquela pessoa na foto era eu, Thomas Bernhard, um cidadão canadense nascido, 38 anos atrás, em uma cidade asquerosa chamada San Salvador. Isso eu não contei, Moya: não apenas mudei de nacionalidade como também mudei de nome, me disse Vega. No Canadá, não me chamo Edgardo Vega, um nome horrível, por sinal, um nome que para mim só me faz recordar o bairro La Vega, um bairro execrável onde me assaltaram quando eu era adolescente, um bairro antigo que nem sei se ainda existe. Meu nome é Thomas Bernhard, me disse Vega, um nome que peguei emprestado de um escritor austríaco que admiro e que, com certeza, nem você nem os outros imitadores dessa infame província conhecem. 

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